A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXIX
O brigue á caça da canôa
Francisco tinha corrido até se metter na rua de Santa Catharina. Parou alli, dizendo com o seu cachimbo:
― Ora deixa estar Joaquininha da bréca que não me tornas a lançar o arpéo! Arreda!... Ainda me doe o braço. E que tal se cá um homem se embarcava pela egreja com a tal menina!... O peior foi o garôto sumir-se. Má peste impéça o meirinho de saia que me não deixou vir na piugada d'elle!
Olhou para cima, para baixo, nem fumos do rapaz. Foi andando de vagar, e mettendo a cára em todos os portaes. Avistou n'uma loja de merciaria quem buscava. José tinha a cesta pousada no mostrador e comprava algumas coisas.
― Bem! pensou o marujo, o melro cá está. E se deteve a deitar tabaco no cachimbo. Entrementes o rapaz sahiu da loja e seguiu pela rua acima. Francisco metteu o cachimbo na bôcca e foi seguindo de longe. De repente José párou, mecheu na cesta com gésto de impaciencia e voltou para traz.
― Que temos de novo? murmurou Francisco. Torna a entrar na loja? Então esqueceu-lhe alguma coisa, e para cá tornará.
Dava meio dia na torre de Santo Ildefonso.
― Ah! Lá está o pobresinho na Praça de D. Pedro, derretendo-se á minha espera.
Entrou n'uma taverna. Pediu vinho, pão, papel e tinta; e em quanto trincava o pão, e um bôccado de queijo rijo como um penêdo, escrevia a seguinte carta:
― «Cá vou pela rua de Santa Catharina a riba. Não sei se acharei o porto, mas parece-me que sim. Se não apparecer á noite, é porque a navegação é longa. Não posso escrever mais; receio que me escape a maré. Dê seis vintens ao portador. Não lh'os dou eu, para que a carta lhe chegue.
Seu criado,
Francisco»
Chamou um gallego, deu-lhe um pataco e mandou-o levar a carta a Maximino muito depressa: o gallego prometteu ir como o vento, e partiu com o passo pesado e vagaroso, tão habitual nos da sua raça, a quem os grandes pesos têem augmentado a força, e diminuido a agilidade.
O marinheiro não teve tempo de apressar mais o portador da carta: viu já vir José para o seu lado. Pegou no cópo de vinho, dizendo comsigo:
― Se elle gostasse da pinga!..
― Chegou á porta quando o rapaz passava.
― Amiguinho, disse elle mostrando-lhe o cópo, bebe á nossa saude. Olha que é pinga de se lhe tirar o chapeu.
O rapaz olhou-o de revez, e sem responder, talvez por ter mêdo, apressou o passo.
― Não gosta?! Paciencia. Beberei eu só.
Esgotou o cópo, pagou e sahiu. Seguiu em distancia José, regulando o seu passo pelo d'elle. Ao chegarem á Aguardente, o rapaz, que se não tinha detido, nem olhado para a retaguarda, fez pausa. Pousou a cesta, e descançou um pouco; torceu um guardanapo, que metteu debaixo do bonnet, e poz a cesta á cabeça. N'estes arranjos olhou para traz e reparou no marujo, que compunha o cachimbo, e que, ao vêr-se observado, fez dois ziguezagues, como se estivesse embriagado. Riu-se o rapaz, e foi para diante. Passado algum tempo voltou-se. O filho de Carolina tinha encortado a distancia que o separava do criado d'Ermelinda, e ao vêr o movimento d'este para observar o caminho percorrido, pôz-se a caminhar de travez e a cantar em alta voz:
― O mestre logo se estriba,
dizendo d'esta maneira:
Moços, ferra a cabadeira
e joanêtes. ― Dom, dom.
O rapaz tornou-se a rir olhando por um pedaço, mas, vendo aproximar o marujo, apressou o passo, para se arreda d'elle.
― Ah! temos pressa! pensou Francisco e caminhou com largos passos, mas sem ligeireza. Não quizera perder de vista o rapaz, nem assustal-o. Este não ouvindo cantar o embriagado, cuidou tel-o já longe. Pousou a cesta, para descançar e voltou-se.
Francisco não teve tempo de se esconder, e tinha-se assentado junto a uma parêde. Não foi visto primeiro. José procurava-o ao longe. Assentou-se tambem, e tirou da cesta alguma coisa que se pôz a comer.
― Ah! tratante! pensou o marujo, estás comendo da ração que não era para ti!
E divertiu-se ao vel-o mecher na cesta, e escolher as coisas em que podia metter o dente. Olhava elle a todos os momentos para um e outro lado, para que não fosse surprehendido, e n'um d'estes golpes de vista deu fé do marujo. D'um pulo pôz-se em pé. Francisco fingia estar com os olhos fechados; mas isto não socegou José. A' pressa metteu tudo na cesta, dizendo a meia voz:
― O demonio do bêbado tem maravelho!
Poz á cabeça a cesta e partiu; porém d'alli a pouco tornou a olhar para a retaguarda. Vinha o marujo fazendo ziguezagues e entôando a cópla:
― Melhor me fôra ser visto
ás portas d'um botequim,
Do que vêr agora o fim
da minha vida. ― Dom, dom.
O rapaz pôz-se a correr quando lh'o permittia o peso da cesta. Estavam na aldeia, e poucas pessôas encontravam. Francisco deixou de cantar e regulou o seu largo passo pela corrida do rapaz: quando o via olhar para o seu lado, fingia-se embriagado, e, para lhe fazer perder o mêdo, deixou-o affastar-se: o que queria era não perdel-o de vista.
― Sou o gato, dizia comsigo, deixar correr o rato.
Viu-o parar ao pé d'uma casa, e tornar-se a affirmar se era seguido.
― Cá vou! murmurou Francisco, fingindo que cahia; pódes caminhar marióla.
José porém não continuou a carreira; entrou na casa.
― Ora por fim de contas chegamos!
E Francisco se deteve a considerar no que havia de fazer.
― Antes de tudo, continuou elle no seu monologo, devo reconhecer a costa bem.
Adiantou-se. A casa em que José entrára era uma taverna. Francisco entrou tambem. Pediu vinho, e, em quanto o serviram, olhou por todos os cantos. Não avistou o fugitivo.
― O demonio é negro! pensou elle. Evadiu-se o marióla.
E com placidez disse ao taverneiro:
― Que é feito de um marióla que trazia uma cesta, e que me fez uma diabrura? Vi-o entrar para cá.
― Deixe ir o coitado, respondeu o taverneiro, vinha tranzido de mêdo e safou-se por aquella porta que dá para os campos. Cuidava que o freguez vinha entre as dez e as onze, e que o queria esfolar vivo.
― Quero só puchar-lhe as orelhas. Vou a isso, e virei depois petiscar alguma coisa.
― Pois vá; mas puche-lhe as orelhas com tento. O rapaz parece criado de gente rica.
― Não tenha medo. Sei manobrar a minha barca.
E Francisco sahiu pela porta que dava para um caminho estreito entre campos.
― Vai, que não o pilhas, ficou dizendo o taverneiro.
Caminhou o filho de Carolina com passos de gigante um longo espaço sem vêr viva alma.
― O diabinho escapou-se, pensava elle, mas sempre fico sabendo que o pouso é para estas paragens. Se elle não fôr fazer levantar o vôo ás corujas que guardam a pômba; pondo-as d'aviso da perseguição que lhe fiz.
O caminho fazia muitas voltas: n'uma d'ellas avistou o rapaz a alguma distancia. José, que a todos os momentos olhava para a retaguarda, viu-o logo, e pôz-se a correr agarrando a cesta com as mãos ambas. Foi então uma caça desesperada. Francisco já não procurava disfarçar que o seguia, e corria tanto como o rapaz, para o não perder de vista. Só quando via alguem, moderava um pouco sua corrida, para que o não detivessem com perguntas. N'uma d'essas occasiões fazia o caminho um cotovêlo, e tornou a perder de vista o fugitivo. Caminhou, caminhou, e não o tornou a avistar. Era o caminho coberto de muitos atalhos. Teria o rapaz tomado por algum d'elles? mas por qual?
― Agora perdi-o, pensou elle. Que o leve a bréca!
E assentou-se para descançar e limpar o suor.
― O diabinho fez a sua a limpo.
Tornou a levantar-se. Custava-lhe a dar-se por vencido.
Subiu a uma parede. Olhou em volta. Não avistou o que procurava. Dirigiu-se a um pinheiral fallando comsigo mesmo, e voltando-se a todos os instantes para o lado em que o tinha perdido de vista.
― O rato logrou o gato, concluiu elle no seu monologo; mas o sitio é para aqui, se elle não se desviou do buraco para me escapar: hei-de dar com a malhoada.
Tirou a jaqueta, os sapatos e as meias, e subiu ao pinheiro mais alto. Olhou para todos os lados; o rapaz tinha-se sumido. Revistou então os sitios que a sua vista alcançava. Um caminho largo lhe ficava em frente e se communicava com a estrada. N'este caminho havia uma quinta com sua casa enegrecida pelo tempo, e defronte a ruinas d'uma outra casa pequena. Tornou-se-lhe suspeita aquella casa de quinta; não tinha visinhos; era ao nó para uma tratantada; mas o rapaz tinha-se desviado d'ella, mettendo-se por entre os campos. Voltou-se para o lado em que perdera José de vista.
― Vejamos para o sueste, dizia o marujo. Está alli uma aldeia!... Nada! Tem as casas muito juntas. Outra aldeia... Tambem não. Tem muitos visinhos. As aves de rapina não poem o seu ninho entre gente.
Virou-se outra vez para a quinta, que mostrava abandono. Parecia namoral-a. Não podia desviar os olhos d'ella. De repente gritou:
― Olé!... Lá vai o rato metter-se no buraco!...
José com a cesta á cabeça tinha sahido de uma azinhaga, que ficava occulta entre umas devezas, caminhou pelo caminho largo fronteiro e entrou pelo portão da quinta.