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A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXX

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XXX

O quarto escuro

Francisco retrocedeu para voltar á taverna que deixára. Foi de vagar e pensativo. Fazia planos sobre planos e nenhum lhe agradava. Do sitio em que estava a filha de Ricardo d'Oliveira não tinha já duvida, mas de modo que havia de libertal-a, é que não tinha certeza.

O taverneiro disse-lhe com ar desconfiado:

― Tardou tanto! Teve tempo d'esfollar o rapaz.

― Não pude pilhal-o, respondeu o marujo assentando-se a uma mesa; e ao voltar para cá perdi-me n'aquelles estreitos de má morte. Entendo-me mais com a derrota sobre o mar. Lá não ha bêcos nem encruzilhadas. O caminho é largo e desaffrontado. Dê-me alguma coisa que se mastigue e que se bêba patrão. Tenho fóme e sêde.

Este discurso pôz o taverneiro de bôa avença. Perdeu toda a má disposição em que estava com aquelle marujo desconhecido. Este comeu e bebeu e conversou muito. Não fez perguntas que o podessem tornar suspeito, e algumas que disfarçadamente arriscou sobre a visinhança de nada lhe serviram. Quando se levantou para se retirar era já perto da noite. O taverneiro observou que tinha onde se dormisse, que fazia melhor em não se metter ao caminho só, que se ficasse alli, dormiria como um rei. Francisco respondeu que não tinha mêdo, e que ia ficar a casa do senhor José. E pagou e sahiu fazendo ziguezagues.

― E' um frangote, disse um freguez da taverna; pouco vinho lhe faz dar volta á cachóla.

― Elle já vinha enfarinhado quando cá chegou, disse outro.

― E o meu vinho, atalhou o taverneiro, não tem agua.

Mentia desaforadamente.

Foram os dois freguezes á porta; viram o marujo para o a fumar no seu cachimbo; mas, ao vêl-os assomar á porta, pôz-se a andar de travez e a cantar:

― Quando descançado estamos
no rancho a socegar
então é que oiço gritar:
Olé, leva a riba: dom, dom.

Os freguezes da taverna recolheram-se para dentro rindo. Francisco continuou o seu caminho cantando. Quando o filho de Caroliua se viu distante da taverna cessou de cantar e caminhou com passo firme. Encontrou passado algum tempo oo caminho largo que avistára de cima do pinheiro. Metteu-se por elle. Caminhou um longo pedaço. Já desconfiava que se teria enganado quando avistou o portão da quinta. Era já busque-fusque. Abriu a porta, depois de ter visto pelaas fendas, que não estava ninguem no pateo. Não tinha plano. Tinha assentado de se entregar a Deus e á ventura. Entrou resolutamente, e atravessou o pateo, dirigindo-se á casa.

― Se eu tivesse aqui dois moços da minha companha... pensava elle, mas vamos com Deus e Santa Maria.

Achou a porta principal fechada. Bateria?

― Não façamos por ora motim, pensou, tendo scismado um pouco. Não sei a gente que ha na casa.

Viu no fim da casa outra porta. Dirigiu-se lá. Aproximou-se estava cerrada. Abriu e entrou. Viu-se n'uma grande e desmantellada cosinha muito escura e defumada: térria como costumam sel-o ordinariamente as cosinhas na aldêa. No lar ardia uma bôa fogueira, mas ninguem estava alli. Em frente da porta por onde entrou o marinheiro havia outra que dava para a quinta e estava aberta. Servia de janella, porque a cosinha não tinha outra. Pouco distante havia uma pequena porta d'um quarto escuro em que havia lenha e rama sêcca de pinheiro, a que chamam, n'uns sitios moinha, n'outros agulhar, e por alli, moliço. No tôpo da cosinha defronte do lar haviam alguns degraus, e em cima outra porta. Por alli devia de ir-se para o resto da casa.

Com rapidez incrivel fez o moço analyse de tudo. Punha já o pé no primeiro degrau que levava ao interior da casa: ouviu fallar gente da parte da quinta e as vozes aproximavam-se; e ouviu passos do lado da casa. Recuou e metteu-se no quarto da lenha. Era prudente examinar as forças inimigas. Cerrou a porta porque entrou e metteu-se entre as agulhas de pinheiro; nome muito proprio n'esta occasião em que Francisco soffria picadellas de fazer gritar alguem mais melindroso.

O crepitar do lume, o miar d'um gato, e as vozes dos que entravam na cosinha, occultaram o rugido que o marujo fazia para se metter entre a rama de pinheiro, a que não chamaria moliço, ao sentil-a tão aspera. Depois que se ageitou no seu esconderijo, ficou soffrivelmente.

― Miquelina, disse a voz d'um homem, para que tens esta porta fechada? As ratazanas acoitam-se aqui. Olha como o rabujo mia. Melhor tu tivesses fechada a porta de fóra.

― Não tem duvida, respondeu a irmã de Joaquina. Ainda agora venho lá de cima, e deixei as portas dos quartos fechadas. A senhorita tinha de arrombar duas portas para sahir para o corredôr, e ainda não se punha ao fresco.

― Falla com mais respeito da fidalga nova. Já t'o tenho dito. Dentro em pouco será ella que dará aqui as cartas.

― Mas então talvez eu não queira jogar. Ella tornou-se muito nariz torcido.

― Chitão!

Tinham fechado as portas de fóra, e abriram a do quarto da lenha, e José atirou lá para dentro com o gato, que fugiu miando. Os gatos não caçam ratos á força; demais o rato, que por sua vontade se mettêra n'aquella ratoeira, não era para rabujo caçar.

Francisco via agora por entre a sua cortina d'espinhos tudo o que ia na cosinha. Estavam assentados ao lar dois camponios, um novo com cara de parvo, outro mais idoso com semblante de poucos amigos. José que compunha e soprava a fogueira, e um criado aceiado, alto e robusto. Este esperava em pé que fervesse a agua, para fazer chá. Miquelina estava assentada. Continuou a conversa que interromperam ao entrar na cosinha.

― Tu és um medrica, José, disse o criado alto. Se era preciso fazer tanta bulha porque encontrastes um marinheiro bêbado!

― Eu queria vêr o senhor Damião no meu lugar! Se lhe não fujo pelo meio das agras, elle furtava-me a cesta; era um ladrão.

― Boa novidade! observou Miquelina. Os marinheiros são todos bêbados e ladrões.

― Ah! bruxa, disse mentalmente o escondido, se te torno a pilhar a geito, ficas sem um dente n'essa boca mentirosa.

― Corri, proseguiu o rapaz, até deitar os bófes pela bôcca fóra. Mas cheguei cá a salvamento.

― O que não chegou a salvamento foi o que trouxestes. Vinha tudo untado e misturado; e a manteiga vistel-a? nem eu! A'manhã mandarei uma mulher á cidade.

― José deve tornar lá por seu castigo, atalhou Miquelina.

― Não quero. Em quanto eu cá não estiver, ninguem arreda pé de casa.

Damião tinha aberto o chá e levou o bule para dentro. Miquelina foi tambem, mas voltou logo. Namorava o aldeão mais novo, que se derretia a seu modo por ella.

― O' senhora Marculininha, disse elle, a fedalguinha já está mais acommodada?... Hontem barregava!... Se eu não soubesse o que era, cuidava que as coisas ruins andavam lá por dentro. E antão esta casa que não tem bôa toada....

― Não sejas tôlo, Antonio, as coisas ruins não andam por entre a gente. A fidalguinha (Damião quer que a respeitemos, e é uma grande tôla) vai-se accommodando. Que remedio tem ella?

― Mas porque não ha-de a fidalga velha deixal-a casar com o rapaz a quem quer bem? O casamento deve ser á vontade da gente; senão negregados casamentos.

― E's tôlo, Antonio, atalhou o trabalhador de má cara, havia d'uma fidalga deixar casar sua sobrinha com um rapaz que não professa vintem?

― Se fosse só isso, tornou Miquelina, mas é um marujo bulhento, e mal procedido, um valdurinos e ladrão, e filho d'uma viuva de má vida, que anda de casa em casa a fingir que trabalha, para surripiar alguma coisa e desencaminhar meninas honestas; como quiz desencaminhar a sobrinha da fidalga.

Ouviu-se rugir no quarto da lenha.

― Que é aquilo? Disse Antonio estendendo o pescoço com ar assustado.

― Ha-de ser o gato que caça alguma ratazana entre a lenha, replicou Damião, que voltava. Pareces-me medroso!

― Eu lhe digo, sinhor Dimion, de gente viva, e de coisa que se apalpe com um varapau não tenho mêdo nenhum; mas lá com almas do outro mundo, ou com o maravelho não quero brincadeiraas... E esta casa, como já lhe disse, tem má toada.

Pois quero para me substituir quem não tenha mêdo de vivos, nem de mortos. De madrugada vou avisa o tutôr da fidalguinha da sua vinda para casa, e saber as ordens que elle me dá. Se na minha ausencia vocês a deixavam fugir, em vez de paga d'oiro, recebiam-n'a de chicote.

O aldeão carregou as sobrancelhas e olhou Damião altaneiro, mas a ambição lhe fez reprimir a cólera e replicou:

― Eu cá não tenho arreceio de nada. Nem o diabo com a sua armação e garras me faria medo.

― Pois então Gabriel ficas tu no meu lugar. Antonio e José ficam teus ajudantes d'ordens. De dia poderás descançar n'elles, de noite vigia tu. E todos lume no olho...

O filho de Carolina quando ouvira Miquelina fallar no pertendido namoro de Maria Isabel com elle, e alcunhal-o a elle e a sua mãe de ladrões e mal procedido, esteve a ponto de sahir do seu esconderijo e lançar-se sobre a calumniadora. A reflexão e prudencia o fez deter.

― E o caso que é, pensava elle, que se os tratantes me apanhavam aqui escondido, podiam prender-me por ladrão! Essa era uma de todos os diabos! Em tanto que me levavam preso fugiriam d'aqui com a senhora D. Mariquinhas.

Estas ideias aterradôras lhe foram passando. A sua posição tinha tanto de perigosa e incommodativa, como tinha de divertida e de ilucidadôra. Via o namoro de Antonio e Miquelina, e ao mesmo tempo as maneiras d'esta requebradas e provocadôras para Damião que a tractava com desdem. Foi colhendo informações pela noite adiante do quarto da prisioneira e d'outras coisas precisas. Damião que tinha de se levantar de madrugada, retirou-se cedo. Miquelina ficou então só com um namorado e por isso mais á vontade. Foi buscar lenha ao quarto escuro, e parou á porta.

― O mafarrico da mulher, pensou Francisco, vê-me. Preparou-se para se lançar sobre ella e fugir. O movimento que fez não foi presentido, porque ella mechia já na lenha, e disse alto:

― Antonio, vem cá. Esta lenha está tão apertada...

O camponio aproximou-se. Ella lhe disse em voz baixa:

― Vai ámanhã assim que me vires a pé ao laranjal; irei lá fallar comtigo. Gabriel e José não tiram os olhos de nós. Receio que vão dizer alguma coisa a Damião. Elle morre por mim e eu não posso encaral-o.

Antonio queria prolongar o coloquio, mas ella adiou-o para a manhã seguinte.

Depois cearam, e separaram-se. Os homens sahiram para o lado da quinta para se recolherem no quarto dos criados da lavoira, Miquelina fechou a porta por dentro, e subiu para a casa. Francisco ficou só e ás escuras.