A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXXI

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XXXI

Descanso interrompido

Sahiu o marinheiro da sua incommoda posição. Tinha os membros inteiriçados.

― Se eu fizesse lume para me aquecer, pensava elle, lenha não falta.

Aquelles demonios comeram até lhe chegar com o dêdo... Não deixaram senão espinhas. Era a quem mais comia. Eu tambem ainda trago algum mantimento na minha barca.

Chegou ás apalpadellas ao lar. Assentou-se e tirou do bolso um pão e um bocado de queijo.

― Bom conselho, proseguiu elle, é o do nosso capitão, de trazer sempre mantimentos de sóbra.

Trincou e comeu o pão, o queijo guardou-o. Este faria sêde, e não queria Francisco fazer bulha a procurar agua, e vinho não o tinha. Depois que engoliu o pão, estirou-se no preguiçeiro do lar, especie de sofá sem almofadas nem mólas. Queria descançar os membros e pensar no que havia de fazer.

A senhora D. Mariquinhas, dizia elle consigo, está por ora sem perigo. O meliante não está cá. O mastareu grande, que governa este barco de piratas, irá chamal-o de madrugada. Se eu fosse chamar o senhor Maximino, estariamos aqui antes d'elles virem. Mas as portas fazem um barulho ao correr os ferrôlhos... e ainda que podesse sahir sem fazer bulha, ficariam as portas abertas. Se todos tivessem mêdo do diabo, poderia elle ficar com as culpas; mas ha aqui dous demonios em carne que não temem os seus companheiros em espirito. Que hei-de pois fazer?

O somno o colheu no meio das suas cogitações. Dormia a somno solto; e sonhava com um vendaval no mar, quando accordou sobresaltado. Pareceu-lhe que lhe puchavam pela jaqueta e sem consciencia ainda da situação em que estava, disse com voz alta e rouca pelo frio:

― Chega já o meu quarto? Que cerração da breca! Temos temporal?

Mas deitando a mão á jaqueta do lado que sentia bolirem-lhe, deu com um rato que o cheiro do queijo que tinha no bolso attraira e que fugiu com o movimento do marujo.

― Ah! pensou elle já disperto de todo, não estou na Carolina, mas sim na casa dos ratos e do diabo.

Espreguiçou-se e levantou meio corpo, para se pôr em pé. A este tempo abriu-se a porta que dava para as salas e appareceu Damião em camisa com uma luz na mão. Francisco tornou a estender-se no preguiceiro, pôs o chapeu sobre o rosto e metteu as mãos no bolso, deixando um dos olhos meio descoberto para vêr o que ia. Damião desceu os degraus, trazia na mão direita uma pistola.

― Estou aqui, pensou o filho de Carolina, e estou nas praias da eternidade. Pois hei-de morrer deitado. A pé acertaria a balla mais em cheio. E se o mastareu grande desfecha, atiro-me a elle. Ainda não me viu.

Damião olhava para todos os lados, e punha a luz alta para ver melhor. Caminhava em direitura ao lar, e parando na cosinha no meio murmnrou a meia voz:

― Havia de jurar que ouvi aqui fallar um homem. Andará na verdade por aqui o diabo?

― Anda, que eu bem o vejo; pensou o marinheiro, e em fralda por causa do calôr.

Damião foi á porta que dava para a quinta, abriu-a, e chamou em altas vozes por Gabriel.

Este respondeu ao segundo chamo.

― Anda para a cosinha, tornou Damião, e faze lume. Está um frio dos diabos! Vem depressa. Quero partir logo.

E arremeçando a porta, murmurou:

― Gabriel está no quente e eu ando por aqui a pilhar um catarral.

Estou fresco, disse lá comsigo Francisco, vão fazer lume, dão comigo e assam-me. Pois este frango, amiguinhos, não se ha-de deixar degolar sem vos picar as ventas. E apalpou a navalha que trazia no bolso.

Damião deu meia volta e foi correndo para o lado d'onde tinha vindo. Francisco d'um pulo pôz-se em pé apenas ficou só, e ás apalpadellas se foi esconder no seu posto de observação, mettendo-se bem entre o moliço.

Era tempo. Gabriel entrava na cosinha, resmungando;

― Não deixarem dormir a gente! Mas que será isto? Ouvi a voz de Damião, vi luz e agora está tudo calado e negro como um fôrno!... Serão isto coisas do dianho?

E levantando a voz continuou:

― Senhor Damião, senhor Damião, chamou por mim?

― Espera, gritou Damião do quarto, que era perto da entrada que dava para a cosinha, também tens mêdo? Eu lá vou já.

― Não tenho mêdo, mas gosto mais de estar de noite no palheiro, do que n'este casareo escuro e frio como a casa do dianho.

― Essa dizem que ha-de ser quente. Mas para fazer lume é que te chamei, pultrão. Eu fui em camisa chamar-te, e tu tens a pelle mais dura; não devias queixar-te do frio.

Gabriel foi ás apalpadellas ao quarto em que se mettêra o marujo, começou a tirar lenha e rame de pinheiro que arremeçava para fóra colerico. N'este exercicio roçou com as costas d'uma das mãos pela cára de Francisco, mas a sua pelle era muito dura e a sua cólera muita para dar pelo contacto.

Damião voltou com luz. Accendeu-se a fogueira e os dois aquentaram-se. O criado dava as suas instrucções ao campesino e recommendava-lhe que sobre tudo guardasse a casa de noite; porque aos outros havia particularmente recommendado que vigiassem de dia.

― Vá descançado, replicou o aldeão, desejando fazer muitos serviços, para receber maior paga. Guardarei bem as mulheres cá de casa. Não lhes deixarei na sua ausencia, pôr pé em ramo verde.

― As mulheres?!.. De que mulheres me fallas?

― Da fidalguinha e de Miquelina.

― Que nos importa a nós Miquelina? Esse estupôr ninguem o quererá roubar. O que quero é que se guarde a fidalguinha.

― Mas olhe que a Miquelina anda namoriscada com Antonio.

― Ande ella namoriscada com o démo! A mim que se me dá d'isso?

― Cuidava que o snr. Damião gostava d'ella.

― Eu?!.. Eu?. Julgavas que eu podia olhar para um tal estafermo?

― Assim como Antonio gosta d'ella, podia o snr. Damião gostar.

― O que é bom para Antonio e para ti, não é para mim. Case qualquer de vocês com ella. Teria muito gosto em vel-a suja como um escaravelho a cortar mato no monte, e a sachar milho no campo.

Gabriel olhou sobre o hombro para o lacaio que o motejava. Para maior affronta os campesinos d'aquellas aldêas têem em pouco os criados das cidades, e olham com certo despreso para os que vestem libré. Damião não deu por isso. Tractou de fazer café e de almoçar ainda que fosse noite. Apenas reluzio o dia, mandou Gabriel buscar o cavallo á cavalharice, recommendo-lhe que o apparelhasse em quanto elle se aquecia á fogueira.

Gabriel obedeceu de má vontade. Os cavallos são animaes com que a maior parte dos aldeãos imbirram n'aquelles sitios. Dá-se-lhes de comer á larga, são bem tractados e não trabalham nos campos. Parece-lhes que isto é um roubo feito aos bois, animaes da sua predilecção. O rustico conduziu o cavallo, com a sella ás avessas e sem freio.

Damião sahiu á porta, ralhou sobranceiro ao rustico, apparelhou o cavallo, montou e partiu.

Francisco observára tudo, e considerou:

― Fica só um. Lanço-me a elle quando o vir a geito, ou esperarei que elle saia?

Estando n'estas consultas entraram Antonia e José do lado da quinta, e Miquelina desceu das salas.

Gabriel, ainda muito mal encarado, disse pegando n'uma enchada e pondo-a ao hombro:

― O meu serviço aqui é de noite. Vou sachar o milho até serem horas de almoçar. Se fôr cá preciso, chamem-me da porta.

E sahiu.

― Eu vou buscar flôres para as jarras, disse Miquelina, indo tambem para a quinta. Tu José, faze ferver as panellas. Chamem por mim se fôr mister.

E da porta voltou-se para Antonio piscando-lhe os olhos. Este coçou na cabeça, deu uma volta na cosinha, pegou d'outra sachóla que pôz tambem ao hombro e titubiou:

― Preciso d'ir ao pomar sachar as batatas. Se precisarem de mim, chamem.

E levou o mesmo caminho.

Francisco estava encantado. Tinha só José, e esse não lhe seria difficil segural-o. O peior era se elle gritava. O rapaz livrou-o d'este receio. Pegou n'um sacho e imitando a acção dos dois aldeãos, disse:

― Vou sachar as beldruegas. Se precisarem de mim, chamem, que eu ouço bem.

Parou à porta, murmurando:

― Cuidaveis que me lograveis? Hei-de ver o que ides fazer.

E sahiu vagaroso.