A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXXII

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XXXII

A fuga

Ainda José não tinha dado meia duzia de passos e sentiu fechar-se a porta por onde sahira.

― Lá vos avinde! disse elle affastando-se rapido. Não quero nada com almas do outro mundo. Só é que lá não tendes de ver-me. Ao ar livre está-se melhor.

O marujo fechou o mais succinto que pôde a porta com todos os ferrolhos, e subiu os degraus que levavam ás sallas. Abriu a porta, que tinha a chave na fechadura e caminhou por um corredor comprido. Viu a porta d'um quarto aberta. Entrou. Era quarto de mulher, e pela desordem da roupa e da cama conheceu que era de quem se tinha levantado á pressa. Devia ser o quarto de Miquelina, e por elle ia-se ao de Maria Isabel. Adiantou-se. Viu outra porta fechada. Não tinha a chave. Começou a tirar os gonzos d'um lado. De dentro ouviu a voz de Maria Isabel perguntando quem estava alli.

― Sou eu, respondeu Francisco, pelo buraco da fechadura. Não tenha medo, e arranje-se para fugir d'este encalhadouro do pecado.

A porta em breve franqueou passagem á donzella que estava tremula e agitada de susto.

― Meu salvador, disse ella com voz reconhecida, quanto lhe devo! Tentei arrombar a janella de noite, mas não tinha senão uma thesoura, e receiava fazer bulha. Que seria de mim se não fosse o senhor Francisco?!.

― Siga-me, e não falle, nem tenha medo.

― E se esses homens dão com nosco e matam o senhor Francisco?

― Não me matariam assim como um gato, havia de custar-lhes; mas fechei-os todos na quinta, menos o alcoviteiro-mór.

Sahiram do quarto, foram por o corredor e chegaram á cosinha. Francisco fechou com a chave a porta que dava para o corredor, atravessaram a cosinha e sahiram para o pateo. Não pôde o moço fechar a porta da cosinha por fóra como queria; ella não tinha chave. Abriu o portão e viram-se no caminho publico.

― Graças a Deus! disse a orphã, estou fóra d'aquelles muros! Quanto lhe devo senhor Francisco?..

― O peior, replicou o marujo, é que a senhora D. Mariquinhas não poderá ir a pé até ao Porto.

― Deus me dará forças. Vamos mais depressa.

― A senhora D. Mariquinhas cança-se se vai muito de pressa. Mas espere... Este sitio é muito solitario. Dê-me licença de leval-a ao cólo até chegar á estrada.

― Obrigada... Não é preciso. Caminhemos depressa.

― Dê-me ao menos essa capa que vai a incommodal-a; e deite o chaile pela cabeça. Vai sem chapeu e o nord'este está de levar coiro e cabello: e logo nos bate de prôa! Temos de navegar á bolina; mas em chegando á estrada, virar-lhe-hemos o costado. Se o snr. Maximino adivinhasse... Ter-me-ia trazido reforço e conducção.

― Deus me livre d'isso, senhor Francisco!.. O snr. Custodio da Cunha podia levar isso a mal; e mesmo seria desairoso para mim que o snr. Maximino viesse ajudar a libertar-me; poderia suppor-se... que...

― Que elle lhe quer bem; não é isso? Pois senhora D. Mariquinhas suppunha-se a verdade. E v. s.a não lhe quer bem a elle? Perdoe a minha confiança; e falle-me como se eu tivesse a honra de ser seu irmão. Diga, diga, não lhe quer bem?

― Meu irmão?.. Bem o tem sido. Não tenho a felicidade de ter irmão, mas achei um dos mais dedicados no snr. Francisco.

― Então porque não responde á minha pergunta?

― Meu bom irmão, acha-me tão pouca delicadesa, que me deixasse ir a sentimentos demasiado ternos pelo filho dos meus bemfeitores?

― Não entendo bem a resposta; mas se é, como se me afigura, contraria ao amôr do senhor Maximino, é uma ingratidão de que não julgava capaz a senhora D. Mariquinhas. E então agora que o snr. Custodio da Cunha tinha dito que a queria para nóra...

― O senhor Custorio da Cunha disse?... disse?..

― Disse que a queria para noiva de seu filho. Então agora?.. Mas a noticia fez-lhe mal!.. Parece que não póde andar.

― Estou fatigada.

― Apegue-se ao meu braço, se não tem vergonha d'ir pelo braço d'um marinheiro. ― Vergonha, meu bom Francisco?

― Ah! é assim que me chama o senhor Maximino quando fallamos de v. s.a Apegue-se bem, e não tenha medo. Estamos na estrada d'el-rei, e aqui não poderão os piratas agarral-a. Teremos quem acuda se for preciso. Mas deixei-os todos a refrescar na quinta do démo, e o capataz vai viajar. Póde assentar-se um pouco. Já vai muito cançadinha.

― Não, meu bom amigo, não. Caminhemos.

Foram indo já de vagar. Maria Isabel não fazia exercício ha muito; e quasi não comêra, nem dormira desde que fôra arrebatada da casa de Custodio da Cunha. Francisco de tempos a tempos olhava para traz. D'uma das vezes avistou ao longe dois cavalheiros e conheceu em um Damião.

― Não se volte para traz, disse Francisco.

― Pois que é?...

― Se me não engano é o mastareu chamado Damião que volta para o chaveco de piratas, com o capitão que foi chamar.

― Ah! meu Deus!.. meu Deus!..

― Não tenha medo. Se estivessemos na cosinha defumada, poderiam talvez matar-me e pôr-me ao fumeiro; mas cá no mar largo não se desfarão de mim facilmente, e eu não a deixarei levar ainda que me esfolem.

Maria Isabel queria correr; mas não podia já dar passada. Pouco depois o filho de Carolina parou e disse.

A snr.a D. Mariquinhas não póde mais. Entremos n'aquella casa.

A filha de Maria Carlota queria continuar a andar, mas arrastava-se, não caminhava. Tiveram breve disputa, depois disse elle forçando-a a entrar n'uma pequena casa:

― Entre... entre. Já vejo vir os demonios dos piratas.

E elle disse á dona da casa que lhes perguntava o que queriam:

― Esta senhora não póde já dar um passo, e vem fugida d'uns mariolas que a roubaram de casa.

― Então, disse a mulher; são uns que vêem a galope. Não tardam a apanhal-a.

― Pois, mulhersinha, feiche a porta, e se elles baterem, diga que não abre sem vir o maioral que governa cá na terra.

A porta fechou-se, mas não era preciso grande exforço para a metter dentro. Francisco promettia pagar o estrago, se fosse arrombada.

A dona da casa tinha desembaraço e achava do seu gosto a façanha em que a mettiam. As mulheres do campo estão quasi sempre promptas a guerriar os seductores malvistos das raparigas que querem conquistar, e perder. O estado de fadiga em que estava a orphã, tornou a sua hospedeira ainda mais compassiva. Chamou esta uma pequena e ordenou-lhe de levar aquella senhora para a caseta e de fechar a porta por dentro.

A mulher e Francisco ficaram na sala. Batiam já á porta.