A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXXIII
Retrocedemos algumas horas.
Damião sahira da quinta, em que deixava a captiva, com tenções de chegar a Braga, mas com grande espanto seu encontrou Amaral, que vinha para os lados do Porto, a cavallo e só.
― V. exc.a por aqui ― disse o criado.
― Eu mesmo. Onde ias tu? Devias estar no teu posto.
― Dirigia-me a Braga para dizer a v. exc.a que temos a sua pupila na quinta que alugamos.
― Já sei. Vamos indo para o nosso albergue deslabrado. Mas olha que o snr. Amaral anda fazendo um giro pela provincia. Eu chamo-me João e sou teu companheiro. Nosso amo anda a divertir-se.
― V. exc.a ha-de permittir...
― O snr. João contenta-se com um você. Que queres que eu permitta?
― Que lhe pergunte como soube tão depressa que trouxemos a menina para a quinta?
― Soube-o pelo telegrapho. Deixei alguem com essa incumbencia.
― Pois como vossa... como o snr. João queria o maior segredo, nem me atrevi a escrever-lhe pelo correio, quanto mais pelo telegrapho! Partiria hontem em busca do... snr. João, se não quizesse antes de sahir de casa dar todas as providencias para que a menina não nos escapasse, e para que tivesse todas as commodidades possiveis no casareu de ratos e de toda a qualidade de bichos.
― Fizestes bem em tudo; até em não me escrever. Vocês não sabem dizer as coisas senão muito claras. Gostaes de pôr os pontos nos ii. E a minha pupila, como lhe chamaste, desesperou-se muito? Esta inconsolavel?
No primeiro momento em que conheceu ter sido trazida ao engano fez bravuras. Agora está socegada e em perfeita mudez. Come pouco e creio que ainda dorme menos.
― Será preciso dar-lhe alguma coisa que lhe concilie o somno.
― Miquelina até diz que não se deita, nem se despe.
― Mau sinal! Quer ver se foge de noite.
― Mas não tem por onde. A janella de seu quarto está pregada, e a porta é para o quarto de Miquelina e fecha por fóra com chave muito segura. O meu quarto é no fim do corredor e eu tenho o somno muito leve. O pateo fica tambem fechado, e do lado da quinta tenho dois homens e José promptos a accudirem de dia e de noite ao menor signal.
― Esses homens são bem fieis?
― Não podem sel-o mais, porque esperam grande recompensa, e sabem que a fidalguinha quer desobedecer a sua tia e ao seu tutor, que é um alto personagem, e desejam ajudar a manter os direitos paternaes da tia e do tutor.
― Muito bem disposto tudo. Então não sou o snr. João.
― Sou o tutor da fidalguinha. Sou o snr. barão.
― Isso agrada-mê mais.
― Caminhei quasi toda a noite. Devo estar desfigurado. Não quero apparecer á minha pupila antes de descançar. Nunca lhe fallei d'amor rasgadamente, hei de fazêl-o agora. Trouxeste para o meu quarto interino roupas e objectos precisos para a minha toilete?
― Trouxe todas as cousas, senhor barão.
― Caminhemos a trote.
Chegaram á quinta. Damião desmontou-se e ia bater ao portão; mas estava já aberto. Isto desagradou-lhe, mas não o assustou ainda. Entraram.
Um barulho e gritos confusos vinham do lado da cosinha, e a uma janella estava Ermelinda embrulhada n'um chaile e toda desgrenhada.
― Não sei o que ha, disse ella, estou a tremer? Ou andam ladrões em casa, ou o diabo.
― O diabo és tu! ― murmurou Damião entrando na cosinha. O motim era á porta que dava para a quinta. O criado abriu-a. Precipitaram-se para dentro Antonio, José e Miquelina. Esta bradou assodada:
― Quem fechou esta porta? Tenham juizo! Que barulho! Está alli o snr. barão nosso amo. A porta havia de ser Gabriel que a fechou.
― Pois não fostes!... disse José, Gabriel anda a sachar nos campos.
― Pra queira Deus ou o diabo, exclamou o lacaio fazendo-se escarlate de cólera, que deixasseis escapar a fidalguinha!
― Não tenha mêdo! replicou Miquelina avivando o lume. Está fechada e trago comigo a chave. Mas são horas de almoçar e...
― Deixa isso, (com mil demonios) e vai vêr se a fidalguinha está lá e o que faz.
― Dorme ou chora... mas eu vou, Antonio, faze lume.
Ella subiu e disse:
― Vê?... a porta está fechada como a deixei quando sahi.
Abriu e entrou.
― Que é isto? ― exclamou José apanhando do chão alguma coisa.
― E' um cachimbo como trazia o demonio do marujo que hontem me perseguiu.
― Está entre a lenha um lenço, disse Antonio, e parece ter estado aqui gente agachada!
― Dormiu então o bebado cá dentro! Arrenego-te purqui-sujo! O homem tem mandinga! Procure bem, senhor Antonio, não esteja mettido n'algum canto.
Damião estava de braços cruzados no meio da cosinha. Tinha impetos de estrangular José e Antonio e de bater em si. Estivera alli um homem que o fez levantar de noite, e elle, que trazia uma pistola, não o matou.
― E foi antão o tal borracho, replicou Antonio que nos fechou a porta para roubar alguma coisa e pôr-se ao fresco, sem que lhe podessemos ser bôs.
― Se não roubasse a rapariga, pensava Damião, tudo o mais pouco se me dá.
Miquelina assomava á porta.
― Então? bradou elle, está lá?
― A porta do quarto está arrombada, e a fidalguinha desappareceu.
― Fugiu?! Desgraçados, que tão mal cumpriste as minhas ordens!.. ― e elle correu a mão pela testa. Tinha uma vertigem.
― A cavallo!.. ― gritou da porta do pateo Amaral com voz fote.
Damião reanimou-se e correu para seu amo, e partiram ambos a meio trote, para examinar para todos os lados, não lhes ficasse a fugitiva para traz.
― Agora, senhora Marculininha, disse Antonio, não temos que guardar pelos modos.
― Por ora ao menos não. Vamos tractar de arranjar o almoço para nós, e para a fidalga velha, que está lá em cima com tanta fome como má cara. Parece uma furia. Disse-lhe que anediasse o topête em quanto eu vinha arranjar o almoço.