A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXV

Wikisource, a biblioteca livre

XXV

Ou boçaes ou tratantes

Estava a filha de Ricardo d'Oliveira cogitando no que devia fazer e dizer, para que os seus bemfeitores se não agoniassem, quando ouviu fallar na escada, e pronunciar o seu nome. André, um criado que fôra da casa, recolhia-se ha dias alli, por estar sem amo; e era elle que fallava na escada com Rosa, a velha criada de D. Adelaide. Lembrou-se a orphã que a Rufina lhe esquecera o oculo ou o leque, que mandava buscar, e foi vêr o que era. André disse-lhe bocejando e com os olhos meios fechados:

― Estava eu já perto de caminha, quando o demonio d'um... d'um lôrpa veio bater á porta e fazer-me tornar cá para desincommodar tamem, a snr.a D. Maria Isabel.

― Então elle que me quer?! Se tinha que me dizer, não podia vir de dia?

― Isso mesmo, lhe disse eu: mas pelos modos traz um recado de muita pressa da snr.a Carolina, aquella que esteve cá domingo passado.

― Se a snr.a Rosa permitte, mande-o subir.

― Oh, minha snr.a!.. respondeu a creada, na ausencia de meus amos, é v. s.a que manda aqui.

― Olé! gritou a criado para baixo, debruçando-se no corrimão, suba cá arriba, sû marmanjo.

Subiu um homem dos seus quarenta annos, forte como um Hercules, de cabellos emaranhados e ar de basbaque. Seu traje era de homem do campom seu andar e gestos os d'um boçal na gêma.

― Que recado me traz da snr.a Carolina? disse logo Maria Isabel meio assustada. A estas horas mandar cá!..

― Eu... lhe conto... tartamudeou o homem, coçando na cabeça e fazendo tregeitos com os olhos e bocca. Gosto de... dizer as coisas do... comecilho. Assisto... n'uma casa a... escapulir para fóra... da cidade. Eu e a... minha companheira gostamos de... vêr aos domingos os... ranchos de...

― Pelo amôr de Deus dê-me o recado da snr.a Carolina!

― Já... lá vou. Hoje vimos... eu e a minha companheira uma mulher... já veterana, de corpo esguio e... cára de arremeter, a... dar ao braço e á perna que parecia um home! Seguia-a... um frangote a modo de marujo... com cachimbo na bocca e ares de namorante. Dizia graçolas ás... moças que encontrava...

― Bom homem, acabe com isso. A snr.a Carolina que manda dizer? Succedeu-lhe alguma coisa?

― Eu lhe conto. Pelos módos foi ahi... para fóra fazer uma jantaróla...

― Marendóla, atalhou André. Ouvi-lhe domingo passado dizer na despedida á snr.a D. Maria Isabel que haviam hoje de...

― Merendóla... ou... jantaróla... Era coisa de comer. E lá que a snr.a D. Maria Zabel vá á mão.. á gente!.. vá d'empace, mas voncecê!..

― Por Nossa Senhora lhe peço, exclamou a donzella, diga-me o que tem a dizer com brevidade!

― Eu... lhe conto. A tal mulheraça arrecolhia-se com o marujo... do cachimbo, quando... um cariolé... záz!.. vai per riba d'ella...

― Jesus!..

― E o marujo a querer ter mão no... cariolé...

― O' meu Deus!.. E ficou mal tratada?

― Eu... lhe conto. Passou-lhe só por riba... d'uma perna... Cuido que lhe não fez... muito mal. Não a mêche... e tem-a... inchada como a... minha barriga; mas ella só se desgraceia pelo mal de... seu filho.

― Seu filho?! Que mal lhe succedeu a elle tambem?

― Eu lhe... conto. Queria livrar sua mãe.. e... e... zás. Ficou debaixo do carriolé.

― Jesus!.. E está muito mal?

― Eu... lhe conto. Por uma unha negra... não lhe passou.. por riba do.. gasganete.. (salvo.. seja..) uma ro.. da; mas emagou-lhe.. (salvo.. seja..) este braço por aqui, e.. esta mão por alli.. e o peito.. (salvo.. seja) aqui ao pé do... estamago. Ficou como uma rãa.. estirado; por esse.. chão, sem dizer um ai Jesus, e a mãe a.. barregar que.. mettia terror! Eu e a minha companheira arrecadamol-os ambos para nossa casa.. e.. lhe fizemos o que podemos.

Maria Isabel pallida e com os olhos cheios de lagrimas perguntou se Francisco morrera.

― Ainda.. não,. ― tornou o rustico ― mas só por milagre póde.. pôde escapar. Havia de ser levado logo.. para o hósprital; mas a mãe barrega, que.. tem coisa má! Não quer que.. lhe levem.. o filho; e me.. disse que.. vossa merceia lhe havia.. de valer, que viesse eu.. assim.. e assim.., contar-lhe tudo e pedir-lhe, que a fosse.. confortar.

― Na ausencia dos meus bemfeitores, disse a orphã voltada para Rosa, é a vocemecê a quem peço para ir com este homem e mandar André buscar um cirurgião.

― O' minha snr.a faça o que quizer. Até tinha vontade de acompanhal-a.

― Eu lhe conto.. Não é preciso levar lá outro mata-gente.. Chamamos o.. da terra, e.. amarrou-lhe uns pannos.. e.. disse torcendo o nariz:

Hosprital com elles.

― E onde estão?

― Na minha casa.

― Onde é? perguntou Rosa. Será preciso mandar alugar uma carruagem?

― Eu lhe conto, Está lá.. na rua um.. cariolé. O.. marujo arregalava.. os olhos, quando a mãe me dava.. o recado, e disse ― Leve dinheiro.. do meu.. cintro e apalavre um cariolé para a senhora vir.. dentro.

― Então vá menina. Mas espere um poucochinho.

― Vai passar a noite a pé e em casas mal reparadas. Hade levar uma capa e um chaile pela cabeça.

― E voltando agasalhou a orphã com o chaile e a capa. Andre dizia bocejando:

― Acabe com isso!.. Está a gente aqui á sua espera...

E tornava a abrir a bocca estrondosamente.

Maria Isabel desceu acompanhada pela creada e seguida pelos dois homens. No portal disse Rosa:

― Aonde é que vai esta menina? Preciso sabel-o para o dizer a meus amos quando vierem.

― Eu lhe conto.. ― dizia o rustsico emquanto que Maria Isabel tremula e aterrada subia ao carro. ―

― Eu lhe conto.. eu lhe conto... ― atalhou André ― e leva-lhe uma hora a dizer duas palavras.

Voncencê é... muito mal cre... ado.

E com uma ligeiresa que ninguem lhe podia suppór, fechou a portinhola, e saltou para o lado do boleeiro, onde se collocou como o mais bem amestrado lacaio. Ao mesmo tempo André agarrava Rosa pela cinta, dizendo:

― Que frio!.. A snr.a Rosa constipa-se!

E arrebatadamente a puchou para dentro do portal e fechou a porta. A carruagem partiu immediatamente.

― Sempre és muito atrevido e muito tôlo!.. ― bradou a velha criada muito agonisada ― . Obrigares-me a entrar e fechares a porta na cara á senhora D. Maria!

― Não lh'a fechei na cara, fechei-a na hombreira.

― Pateta! Não ver partir a carruagem!

― Pois isso que tem que vêr?

― Queria vêr se ia para cima, se para baixo.

― Foi para baixo.

― Os cavallos estavam voltados para cima.

― Pois então foi para riba.

― Não sei porque estou inquieta...

― Não devia deixar partir a carruagem sem saber aonde levaria a snr.a D. Maria.

― Ella dirá depois onde foi. O que fôr soará. Vou para valle de lençoes, que estou cahindo com somno.

E metteu-se para o quarto.