A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXVI
Um pesar de menos, um receio de mais
A pobresinha filha de D. Maria Carlota occupou algum tempo a resar por todos os seus bemfeitores; em particular, por aqueles que ia vêr maltractados. Mas se o coração a atraia para estes, pela força da gratidão e da compaixão, sentimentos mais ternos e doces a faziam pensar com melancolia n'aquelles que deixava, sem mesmo se ter despedido. Tinha agora ensejo de ficar com Carolina, sem que houvesse n'isso que estranhar. Em pensando n'isto Maria Isabel sentia as lagrimas cahirem-lhe quatro a quatro; mas estava resolvida a ficar em casa da mãe de Francisco, se ella consentisse.
Tão embebida ia em suas divagações umas vezes, outras, em suas ferventes preces que não reparava, nem cogitava no caminho que tomava. De repente, a carruagem pôz-se em movimento mais rapido. Isto a tirou do seu embebecimento[errata 1]. Olhou para fóra. Pareceu-lhe estar n'um arrabalde. O escuro da noite e a escaça illuminação, que o nevoeiro empanava, não lhe deixavam distinguir os objectos. Conheçeu por fim que tinha sahido da cidade. Bateu nos vidros para perguntar se iriam ainda longe; mas o boleeiro assobiava e parecia ser surdo; o rustico, embalado pelo movimento do carro, de certo dormia. Nenhum dos dois voltava a cabeça. E a carruagem corria cada vez mais veloz.
Maria Isabel assustou-se. Que significava tudo aquillo? Ainda lhe não vinha á ideia um rapto, e comtudo sentia um vago temor. Ganhou coragem vendo parar a carruagem. Via á sua direita uma casinha. Deviam estar alli Carolina e Francisco. Se fosse de dia, ou que a noite estivesse clara, conheceria que aquella casa não podia ser habitada; tinha só quatro paredes
desmoronadas em parte. O laponio saltou ao chão com presteza, e abriu a portinhola do lado opposto á casa arruinada; tirou o chapeu e offereceu o braço por apeio á donzella. Ella sem reparar n'estas maneiras tão pouco proprias d'um rustico, desceu. Quiz dirigir-se á casa em que julgava estavam penando os seus amigos; mas o rustico com a voz rude com que havia fallado primeiro, só mais expedita, disse indicando a porta d'uma quinta:― Para aqui é que mora o mordomo. E fujamos... Não vá este cariolé fazer-nos o que o outro fez á senhora Carolina e senhor Francisco.
― Mas, disse Maria Isabel, não é n'aquella casa que elles estão?
― Eu lhe conto... Mas fuja...
E pegando sem ceremonia n'um braço da donzella a levou para o portão que estava aberto. Os cavallos voltavam; e a prudencia aconselhava esta manobra. O laponio proseguiu, fazendo entrar a orphã no pateo da quinta:
― O meu pequeno disse-me da ginella que trouxeram para aqui os estupiados.
No fim do pateo via-se luz a uma das portas da casa O campesino precipitou-se para diante, tirou a luz da mão de Miquelina e deu-lhe um empurrão para que se escondesse atraz da porta.
Maria Isebel correu tambem para diante receiosa de que lhe quizessem occultar a morte d'algum dos seus amigos.
― Que ha de novo? disse ella assustada.
― Eu lhe conto... E' tudo velho aqui.
― Vi uma mulher...
― Era a minha companheira que ia buscar de beber para os molestados.
― Não morreu nenhum?
― Ninguem quer morrer. Suba e verá.
O homem levava a luz adiante. No meio da escada voltou-se para se assegurar que era seguido por a donzella. Avistou Miquelina que sahia do escondrijo em que elle a fizera metter, atirou-lhe com toda a força o chapeu á cara, dizendo:
― São aqui tantas as ratazanas..... Avistei agora uma, que lhe morderia, se podesse.
A filha de Ricardo d'Oliveira, que não era muito aguerrida com os ratos, subiu mais apressada. Chegaram á porta da sala, que o rustico abriu, dizendo:
― A senhora D. Maria Isabel.
Já não receiava que ella lhe fugisse; e se pôz ao lado com ar de fingida submissão, para deixal-a passar.
Maria Isabel entrou e soltou um grito. Tinha diante de si Ermelinda. Quiz retroceder, a porta estava fechada.
― Onde está a senhora Carolina e o senhor Francisco, disse ella com voz alterada? Quero vel-os.
Custava-lhe a persuadir-se que tinha sido victima de um logro. Pensava que Ermelinda estava alli por acaso.
― Envergonhe-se! disse Ermelinda. Uma menina delicada e da nossa familia, namorar um tosco marinheiro?.. Mandei-a buscar para minha companhia por que sou a sua parenta proxima.
― Ah! Então foi peta o que me disseram do desastre dos meus bemfeitores e amigos!? Deus seja louvado! Mas quero retirar-me d'aqui.
― Não cuide que se ausentará. Como precisa ser guardada...
Maria Isabel sem attendel-a, bateu na porta furiosamente bradando por soccorro.
― Que vergonha!.. tornou Ermelinda. Se quem Deus tem visse como se porta a sobrinha, que elle tanto amava, lançar-se-ia ao mar.
A donzella esgotada de forças, e vendo que ninguem accudia a seus brados, lançou-se sobre uma cadeira a derramar lagrimas amargas. Ermelinda continuava com as suas admoestações. A donzella não replicava; pensava nos riscos que ia correr e no que podiam imaginar os amigos de quem parecia ter fugido.
A porta da sala abriu-se, e disse uma voz entre zombadora e ceremoniosa:
― O chá está prompto. V. exc.as querem tomal-o aqui?
A orphã voltou-se sobresaltada. Parecia-lhe que a voz do homem rude que a trouxera ao engano. A figura era a mesma forte e atletica; mas o trage, a presença e as maneiras eram outras. Parecia um homem inteiramente differente. Maria Isabel foi para elle e o examinou com ar carregado. Elle soffreu o exame muito respeitoso.
― O senhor, disse a donzella com modo imperioso, foi que me trouxe aqui cavilosamente?
O creado cortejou profundamente, sahiu e foi dizer a Miquelina:
― Ora o amo tem razão! Cada vez me parece mais linda a nossa prisioneira. Olho vivo!... Ha-de ser ruim de guardar.