A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXXV
Amaral ia furioso. Tinha conhecido de longe Maximino, e para não ser d'elle reconhecido encaminhou-se para a casa onde Maria Isabel estivera. No sitio em que era preciso deixar a estrada, parou, e olhou para trás. Avistou ao longe o seu criado Damião, que vinha para elle; esperou-o, e disse-lhe:
― Então, mariola, que ha de novo?
― A rapariga, snr. barão, lá fica guardada por quatro galfarros. D'alli é perder-lhe o sentido.
― Tratante! se tu tivesses sido mais previdente!... Mas que diabo será aquillo?! Entrou gente na nossa propriedade. Será a justiça d'el-rei que irá procurar a nossa fugitiva?
― V. excellencia não viu roupas feminis? A justiça não anda de saias.
― Eu não vi senão gente.
― E porque está com as vistas perturbadas pela cholera. V. excellencia não devia agoniar-se tanto, quando perde uma mão; ganha tantas!...
― Mariola!.... queres-me pôr de boa avença. Vae vêr quem são aquelles hospedes que nos chegam em hora tão aziaga... Mas não, quero eu mesmo tirar as informações.
Adiantaram-se. O pequeno José foi o primeiro que encontraram no pateo.
― Quem entrou para cá? Perguntou Amaral.
― Foi um fidalgo com uma linda fidalguinha.
― Linda? e procura-me a mim?
― Parece que sim.
― Eu bem dizia a v. excellencia, apressou-se de dizer Damião em ajudando seu amo a desmontar, que se v. excellencia perde uma mão como bom jogador, ganha uma duzia.
― Amaral, sorriu-se.
Saía da casa um mancebo que lhe disse:
― V. excellencia é que é o snr. barão?
― Assim me chamam agora.
― Pois snr. barão, servime da casa de v. excellencia porque foi a primeira que achei mais á mão para dar alguns momentos de descanço a uma menina que viaja comigo.
― E que é essa menina ao senhor!
O desconhecido sorriu-se, e replicou:
― E' minha mulher.
― Sua esposa ligitima?
― Não esperava do senhor barão tantos escrupulos. O que me acabou de contar um rustico d'uma menina que fugiu agora d'esta casa, fazia-me esperar de v. exc.a mais indulgencia para as fragilidades alheias.
― A minha gente é discreta! ― murmurou Amaral carregando as sobrancelhas, mas logo replicou com ar alegre:
― Essa menina que fugiu d'aqui, é minha pupila.
― Pois tambem a que me acompanha está debaixo da minha tutella.
― Então póde tambem fugir-lhe, e não quero depois que se queixe da minha casa.
― Não fugirá. Prendi-a bem antes de trazel-a comigo.
― Prendeu-a, como?
― Com as prisões d'amor que são as mais fortes.
― Até a prender com os laços do himeneu?
― Sim, meu senhor.
― Então é ella rica: se o não fôra não quereria o senhor para esposa uma rapariga que se poz debaixo da sua tutella para correr o mundo.
― É como diz, snr. barão.
― Dou-lhe então os meus sinceros parabens; e sirva-se d'esta casa como sua; mas, queria saber a quem tenho a honra de fallar.
― Ao filho de um grande fidalgo, ou filho d'um ladrão. Fica isso á escolha de v. excellencia, e mesmo póde ser que meu pai fosse uma e outra coisa. Sou engeitado, chamam-me Porcopio, e não tenho nem eira, nem beira, nem ramo de figueira. Alguns vintens que ganhei a negociar... (eu sou franco) a negociar em contrabandos, serviu-me a pôr apto para conquistar uma fortuna.
― Pode-se saber o nome a essa fortuna?
― Porque não? A fortuna é o dote que me ha de trazer a minha esposa que Deus fará.
― Mas se ella tem familia que se opponha ao seu casamento...
― Ella tem vinte e cinco annos e um dote independente da sua familia; se a tirei de casa occultamente, foi para nos livrar-mos das prepotencias do pai, que é homem, do que dizem, muito enfatuado.
Amaral tinha subido com o seu hospede. Não estava á sua vontade. Alguma coisa havia n'este dialogo que o incommodava.
― Eu vou apresentar a minha pupila a v. exc.a, continuou o senhor Procopio, e voltando-se para a porta que dava para um quarto, chamou por Julio. Amaral estremeceu a este nome e deu dois passos para a porta do quarto. Appareceu a ella Ermelinda, que disse com enfase:
― Julia partiu desde que os senhores subiram.
― E essa Julia... balbuciou Amaral, fazendo-se rubro, quem é?
― E' ao que parece, senhor Amaral, a sua filha mais velha.
― Ah! exclamou Procopio, tenho a honra ao que vejo de fallar com o meu sogro!..
― Amaral quiz lançar-se sobre o atrevido, que evitou o seu furor recuando, e tirando do seio uma pistola. Esta arma impoz respeito ao pai de Julia, que não tinha espiritos guerreiros.
― Senhor Amaral, proseguiu o amante de Julia, não nos agoniemos. Se lhe fiz uma injuria roubando-lhe sua filha, estou prompto a reparal-a, dando-lhe o meu nome.
― O seu nome?! acaba de me confessar que é um quidam, que o seu nome é zéro.
― Agradeço-lhe a descoberta. Nenhum apellido me agradava, tomarei esse que me indica. Terá gosto de ver a sua filha assignar-se: ― Amaral Zéro, ― Vou procural-a; e sei aonde a devo achar. Aqui era só um logar de descanso.
― Os tribunaes me despicarão.
― Como quizer. Se lhe agrada fazer isto dominio do publico, eu não tenho vergonha d'essas coisas, e os meus parentes tiveram a cautela de se porém atraz da cortina. Adeus, senhor barão.
E o motijador saîo. Amaral quiz oppor-se á saîda, mas tremia todo de raiva. Arrastou-se á janella e quiz bradar a Damião, que prendesse aquelle homem e que fosse em busca de sua filha; porém soltou apenas um rugido, e a palavra prendam, ficou em meio. Procopio montou no cavallo, que tinha prezo no pateo, e disse para cima:
― Sim, senhor barão. Até á vista.
― O pequeno José, que era quem estava no pateo, abriu-lhe a porta, serviço que já tinha feito a Julia e ao criado que a acompanhára. Procopio atirou-lhe com uma corôa e partiu. Se Damião estivera no pateo não correriam as cousas tambem para os fugitivos, porque conhecendo a filha de seu amo, a não deixaria sair, mas tinha ido tratar dos cavallos, que estavam muito fatigados.
― Ermelinda tinha visto tudo o que se passára á sua vista com muito gosto. Tinha soffrido tantos insultos d'Amaral, que se regosijava de vêl-o castigado, e tambem toda a mulher quə caîo, gosta de ter companheiras: a não ser uma rára excepção. Ella approximou-se d'elle, e lhe disse:
― Meu rico, aonde se dão, aî se apanham. Eu nunca agourei bem d'esta tua loucura pela minha parenta. Já era tempo que tu te deixasses de rapaziadas.
― O sermão seria maior, mas viu resvalar para o chão o seu antigo amante. Chamou soccorro em altos gritos. Amaral estava com um ataque de paralesia. Veio a escapar; mas ficou leso.
― Julia casou com Procopio, mas foi muito desgraçada. Depois que seu marido lhe desbaratou quanto ella tinha herdado de uma tia acolheu-se á casa paterna com tres filhos, para não morrer de fome.
Tres semanas depois, que a filha de Ricardo de Oliveira se escapára da sua prisão, havia um jantar de bôdas em casa de Custodio da Cunha. Os convidados eram só os dois amigos de Maximino, que o tinham ajudado a procurar sua noiva, Francisco e sua mãe.
Todos mostravam satisfação e alegria, mas nenhum mais que o pai do noivo. Estava-se á sobremesa. Vieram dizer ao senhor da casa, que uma pessoa o procurava, dizendo que tinha absoluta necessidade de lhe fallar.
― Ora!... disse Custodio da Cunha, agora não sahia d'aqui nem pelo rei. Se essa pessoa quer vir fazer uma saude aos noivos, que suba.
Entrou um desconhecido de cabellos brancos: desconhecido, menos para Francisco, que se levantou, exclamando:
― O senhor Luiz José!..
― Adeus, Francisco, disse o desconhecido, é um excellente rapaz.
― Vejo, acudiu o pai de Maximino, que o senhor conhece a perola dos marinheiros. Queira assentar-se, e servir-se do que por ahi ha, que não é tão bom como eu queria para o dia d'hoje; mas, as governantes cá da casa, são muito sumiticas; e agora são duas!.. E entendem-se ás mil maravilhas. Se uma diz que morramos á fome, a outra diz que morrámos tambem á sêde.
Continuou a conversação alegre e desceremoniosa, como se não estivera alli um entruso.
― Pelo que vejo, disse Luiz José, veio assistir a umas bôdas. Não obedeci ao rifão, a bôdas e baptisado, não vás sem ser convidado.
― Ainda que não foi convidado, atalhou o senhor da casa, que estava em maré de rosas, é muito bem vindo.
― Obrigado. Vejo que se festeja um casamento ao gosto de todos, o que é de estimar. Raras vezes se reunem n'esta materia, as vontades de pais e filhos.
― Aqui reunem-se todas as vontades, graças a Deus.
― Então a menina é rica?
― Maria Isabel abaixou os olhos triste. Sabia que ia servir de peso á familia de seu marido, que não era rica.
― Que vem cá o senhor com a cabeça de medusa entristecer a minha filha!.. Maria, não dou licença que mostres tristeza. Maria, senhor Luiz José, é mais rica que a filha d'um milionario. Tem genio economico e trabalhador: sem fallar dos outros dotes de sua alma, que só a familia lhe conhece. A belleza e as prendas que ella possue, podem ser availados por todos, mas...
― Maria Isabel estendeu o braço para seu sogro, pedia-lhe corando que a poupasse.
― Elle rindo-lhe, apretou a mão, e mudou de assumpto.
― Quero pedir licença, disse Luiz José, de dar uma prenda á noiva, já que vejo que ella não tem parentes que a brindem.
― E elle lhe apresentou uma carteira muito bonita, Maria Isabel agradeceu, mas não pegou n'ella, dizendo que só de seu pai recebia prendas. Custodio da Cunha pegou na carteira que Luiz José offerecia, e disse sorrindo:
― Está bom, serei eu que lh'a dou.
― Porém ao pegar-lhe, pareceu lhe volumosa. Olhou para Luiz José, e em seguida abriu a carteira.
― Ah! exclamou elle com assombro, tanto dinheiro! Seja o senhor Luiz José quem fôr, faço como Maria, agradeço e regeito o presente. A minha filha não acceita dinheiro de estranhos.
― Se essa é a razão, póde a sua filha Maria, acceitar esta bagatella. Ella ha-de ser a minha herdeira. Gostarei de occultar o meu nome.... porém, tudo bem considerado, tambem terei satisfação em abraçar a minha querida sobrinha!
― Ah, senhor, atalhou Maria Isabel, meu tio morreu ha muitos annos.
― Assim o fiz crêr, porque num casamento desgraçado que (fiz com essa mulher que tanto tem desgostado), me fez expatriar e mudar de nome. Posso dar-te provas da verdade.
― Será possivel?!.. O meu querido tio, que tanto me amava?..
E a filha de Ricardo de Oliveira se levantou duvidosa, se se lançaria ou não nos braços do tio que tinha chorado em criança. Elle porém não esperou que ella se resolvesse, e levantando-se, correu a ella e apertou-a ao coração, recordando-lhe passagens antigas. Depois que os animos socegaram tornaram a assentar-se, e o tio de Maria Isabel, partiu logo que lhe constára a desgraça da familia de seu irmão Ricardo; arranjára os seus negocios no Brasil e viéra a Portugal, para proteger sua sobrinha.
― E, como eu era, disse elle, amigo do capitão da Carolina, quiz vir no seu barco. Na viagem fiz particular conhecimento com Francisco, e d'elle soube tudo o que havia succedido á minha pobre sobrinha.
― Por isso v. s.a me fazia tantas perguntas!..
― Disse Francisco.
― E por ellas compreendi que eras o rei dos rapazes. Hontem, soube tambem por Francisco, que era hoje o dia do noivado da minha sobrinha. Agora é preciso que elle nos dê um dia tambem de bôdas. Nas suas narrações figurava muito a sua namorada numero dois, o que prova que ha o numero um.
― Essa senhor Luiz José, ou como é a graça de v.a s.a, é filha da senhora Josefa, que tem bons tostões, e não ha-de querer dar a sua filha a um pobre marinheiro.
― Não tem duvida. Eu offereço-me para levantar as difficuldades.
Alguns mezes depois casára Francisco com a filha da senhora Josefa; e a mãe do bom moço tinha o gosto de tomar posse d'uma casa que lhe comprou o tio de Maria Isabel.
Ermelinda foi viver longe com uma pensão que lhe estabeleceu seu marido, que reassumiu seu verdadeiro nome.
Maria Isabel foi feliz quanto se póde sêl-o n'este mundo cheio de agruras e tristezas, e fez feliz a familia a que se uniu.
E' coisa muito para lamentar que sogra e cunhada seja (como desgraçadamente é muitas vezes) o synonimo de inimiga. Na familia de Custodio da Cunha não era: amavam-se todos. Rufina e Maria Isabel, eram duas irmãs affeiçoadas. Adelaide amava-as a ambas egualmente.