A Harpa do Crente/IX
I
Eu nunca fiz soar meus pobres cantos
Nos paços dos senhores!
Eu jamais consagrei hino mentido
Da terra dos opressores.
Mal haja o trovador que vai sentar-se
À porta do abastado,
O qual com ouro paga a própria infâmia,
Louvor que foi comprado.
Desonra àquele, que ao poder e ao ouro
Prostitui o alaúde!
Deus à poesia deu por alvo a pátria,
Deu a glória e a virtude.
Feliz ou infeliz, triste ou contente,
Livre o poeta seja,
E em hino isento a inspiração transforme
Que na sua alma adeja.
II
No despontar da vida, do infortúnio
Murchou-me o sopro ardente;
E saudades curti em longes terras
Da minha terra ausente.
O solo do desterro, ai, quanto ingrato
É para o foragido,
E nevoado o céu, árido o prado,
O rio adormecido!
E lá chorei, na idade da esperança,
Da pátria a dura sorte;
Esta alma encaneceu; e antes de tempo
Ergueu hinos à morte;
Que a morte é para o mísero risonha,
Santa da campa a imagem
Ali é que se aferra o porto amigo,
Depois de árdua viagem.
III
Mas quando o pranto me sulcava as faces,
Pranto de atroz saudade,
Deus escutou do vagabundo as preces,
Dele teve piedade.
«Armas», bradaram no desterro os fortes,
Como bradar de um só:
Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os
Indissolúvel nó.
Com seus irmãos as sacrossantas juras,
Beijando a cruz da espada,
Repetiu o poeta: «Eia, partamos!
Ao mar!» Partia a armada,
Pelas ondas azuis correndo afoutos,
As praias demandámos
Do velho Portugal, e o balção negro
Da guerra despregámos;
De guerra em que era infâmia o ser piedoso,
Nobreza o ser cruel,
E em que o golpe mortal descia envolto
Das maldições no fel.
IV
Fanatismo brutal, ódio fraterno,
De fogo céus toldados,
A fome, a peste, o mar avaro, as turbas
De inúmeros soldados;
Comprar com sangue pão, com sangue o lume
Em regelado Inverno;
Eis contra o que, por dias de amargura,
Nos fez lutar o Inferno.
Mas de fera vitória, enfim, colhemos
A c'roa de cipreste;
Que a fronte ao vencedor em ímpia luta
Só essa c'roa veste.
Como ela torvo, soltarei um hino
Depois do triunfar.
Oh, meus irmãos, da embriaguez da guerra
Bem triste é o acordar!
Nessa alta encosta sobranceira aos campos,
De sangue ainda impuros,
Onde o canhão troou por mais de um ano
Contra invencíveis muros,
Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me,
Pedir inspirações
À noite queda, ao génio que me ensina
Segredos das canções.
V
Reina em silêncio a lua; o mar não brame,
Os ventos nem bafejam;
Rasas co'a terra, só nocturnas aves
Em giros mil adejam.
No plaino pardacento, junto ao marco
Tombado, ou rota sebe,
Aqui e ali, de ossadas insepultas
O alvejar se percebe.
É que essa veiga, tão festiva outrora,
Da paz tranquilo império,
Onde ao carvalho a vide se enlaçava,
É hoje um cemitério!
VI
Eis de esforçados mil inglórios restos,
Depois de brava lida;
De longo combater atroz memento
Em guerra fratricida.
Nenhum padrão recordará aos homens
Seus feitos derradeiros.
Nem dirá: – «Aqui dormem portugueses;
Aqui dormem guerreiros.»
Nenhum padrão, que peça aos que passarem
Reza fervente e pia,
E junto ao qual entes queridos vertam
O pranto da agonia!
Nem hasteada cruz, consolo ao morto;
Nem lájea que os proteja
Do ardente sol, da noite húmida e fria,
Que passa e que roreja!
Não! Lá hão-de jazer no esquecimento
De desonrada morte,
Enquanto, pelo tempo em pó desfeitos,
Não os dispersa o norte.
VII
Quem, pois, consolará gementes sombras,
Que ondeiam junto a mim?
Quem seu perdão da Pátria implorar ousa,
Seu perdão do Elohim?
Eu, o cristão, o trovador do exílio,
Contrário em guerra crua,
Mas que não sei verter o fel da afronta
Sobre uma ossada nua.
VIII
Lavradores, zagais, descem dos montes,
Deixando terras, gados,
Para as armas vestir, dos céus em nome,
Por fariseus chamados.
De um Deus de paz hipócritas ministros
Os tristes enganaram:
Foram eles, não nós, que estas caveiras
Aos vermes consagraram.
Maldito sejas tu, monstro do Inferno,
Que do Senhor no templo,
Junto da eterna Cruz, ao crime incitas,
Dás do furor o exemplo!
Sobre as cinzas da Pátria, ímpio, pensaste
Folgar de nosso mal,
E, entre as ruínas de cidade ilustre,
Soltar riso infernal.
Tu, no teu coração incipiente,
Disseste: – «Deus não há!»
Ele existe, malvado; e nós vencemos:
Treme; que tempo é já!
IX
Mas esses, cujos ossos espalhados
No campo da peleja
Jazem, exoram a piedade nossa;
Piedoso o livre seja!
Eu pedirei a paz dos inimigos,
Mortos coma valentes,
Ao Deus nosso juiz, ao que distingue
Culpados de inocentes.
X
Perdoou, expirando, o Filho do Homem
Aos seus perseguidores;
Perdão, também, às cinzas de infelizes;
Perdão, oh vencedores!
Não insulteis o morto. Ele há comprado
Bem caro o esquecimento,
Vencido adormecendo em morte ignóbil,
Sem dobre ou monumento.
C tempo d'olvidar ódios profundos
De guerra deplorável.
O forte é generoso, e deixa ao fraco
O ser inexorável.
Oh, perdão para aquele a quem a morte
No seio agasalhou!
Ele é mudo: pedi-lo já não pode;
O dá-lo a nós deixou.
Além do limiar da eternidade
Cl mundo não tem réus,
O que levou à terra o pó da terra
Julgá-lo cabe a Deus.
E vós, meus companheiros, que não vistes
Nossa triste vitória,
Não precisais do trovador o canto:
Vosso nome é da história.
XI
Assim, foi do infeliz sobre a jazida
Que um hino murmurei,
E, do vencido consolando a sombra,
Por vós eu perdoei.
Este fragmento, que segue, e que servirá para inteligência dos precedentes versos, pertence a um livro já todo escrito no entendimento, mas de que só alguns capítulos estão trasladados ao papel. A Guerra da Restauração de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e mais poético deste século. Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava connosco o autor de D. Branca, do Camões. de João Mínimo; o Sr. Lopes de Lima, e outros: mas a política engodou todos os engenhos, e levou-os consigo. Os homens de bronze, os sete mil de Mindelo, não tiveram um cantor; e apenas en, o mais obscuro de todos, salvei em minha humilde prosa uma diminuta porção de tanta riqueza poética. Oxalá que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviatã da política. Todos nós temos vendido a nossa alma ao espírito imundo do jornalismo. E o mais é que poucos conhecem uma coisa: que política de poetas vale, por via de regra, tanto como poesia de políticos.
Fragmento. – O combate da antevéspera estava ainda vivo na minha imaginação: eu cria ver ainda os cadáveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal reduto, em que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu clamor de entusiasmo ao acometê-lo, o sibilar das balas, o grito dos feridos, o som das armas, caindo-lhes das mãos, o gemido doloroso e longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer. Os dentes me rangeram de cólera, e a lágrima envergonhada de soldado me escorregou pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes caíram nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadáveres dos vencidos, que ainda por aí jaziam; porém, pareceu-me que eles se alevantavam e me diziam: «lembra-te de que também fomos soldados; lembra-te de que fomos vencidos!» E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de expirarem, as ideias de soldado e de vencimento, conglobadas numa só, como tremenda e indelével ignomínia, estampada na fronte do que ia transpor os umbrais do outro mundo. Então orei a Deus por eles: antes de irmão de armas eu tinha sido cristão; e Jesus Cristo perdoara, entre as afrontas da Cruz, aos seus assassinos. A ideia de perdão parecia me consolava da perda de tantos e tão valentes amigos. Havia nessa ideia torrentes de poesia; e eu te devia então, ó crença do Evangelho, talvez a melhor das minhas pobres canções. (Da Minha Mocidade – Poesia e Meditação.)