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A Harpa do Crente/VII

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I


Veia tranquila e pura

De meu paterno rio,

Dos campos, que ele rega,

Mansíssimo armentio.


Rocio matutino,

Prados tão deleitosos,

Vales, que assombravam selvas

De sinceirais frondosos,


Terra da minha infância,

Tecto de meus maiores,

Meu breve jardinzinho,

Minhas pendidas flores,


Harmonioso e santo

Sino do presbitério,

Cruzeiro venerando

Do humilde cemitério,


Onde os avós dormiram,

E dormirão os pais;

Onde eu talvez não durma,

Nem reze, talvez, mais,


Eu vos saúdo!, e o longo

Suspiro amargurado

Vos mando. E quanto pode

Mandar pobre soldado.


Sobre as cavadas ondas

Dos mares procelosos,

Por vós já fiz soar

Meus cantos dolorosos.


Na proa ressonante

Eu me assentava mudo,

E aspirava ansioso

O vento frio e agudo;


Porque em meu sangue ardia

A febre da saudade,

Febre que só minora

Sopro de tempestade;


Mas que se irrita, e dura

Quando é tranquilo o mar;

Quando da pátria o céu

Céu puro vem lembrar;


Quando, no extremo ocaso,

A nuvem vaporosa,

À frouxa luz da tarde,

Na cor imita a rosa;


Quando, do Sol vermelho

O disco ardente cresce,

E paira sobre as águas,

E enfim desaparece;


Quando no mar se estende

Manto de negro dó;

Quando, ao quebrar do vento,

Noite e silêncio é só;


Quando sussurram meigas

Ondas que a nau separa,

E a rápida ardentia

Em torno a sombra aclara.


II


Eu já ouvi, de noite,

Entre o pinhal fechado,

Um frémito soturno

Passando o vento irado:


Assim o murmúrio

Do mar, fervendo à proa,

Com o gemer do aflito,

Sumido, acorde soa;


E o cintilar das águas

Gera amargura e dor,

Qual lâmpada, que pende

No templo do Senhor,


Lá pela madrugada,

Se o óleo lhe escasseia,

E a espaços expirando.

Afrouxa e bruxuleia.


III


Bem abundante messe

De pranto e de saudade

O foragido errante

Colhe na soledade!


Para o que a pátria perde

É o universo mudo;

Nada lhe ri na vida;

Mora o fastio em tudo;


No meio das procelas,

Na calma do oceano,

No sopro do galerno,

Que enfuna o largo pano.


E no entestar coa terra

Por abrigado esteiro,

E no pousar à sombra

Do tecto do estrangeiro.


IV


E essas memórias tristes

Minha alma laceraram,

E a senda da existência

Bem agra me tornaram:


Porém nem sempre férreo

Foi meu destino escuro;

Sufocou de luz um raio

As trevas do futuro.


Do meu país querido

A praia ainda beijei,

E o velho e amigo cedro

No vale ainda abracei!


Nesta alma regelada

Surgiu ainda o gozo,

E um sonho lhe sorriu

Fugaz, mas amoroso.


Oh, foi sonho da infância

Desse momento o sonho!

Paz e esperança vinham

Ao coração tristonho.


Mas o sonhar que monta,

Se passa, e não conforta?

Minh'alma deu em terra,

Como se fosse morta.


Foi a esperança nuvem,

Que o vento some á tarde:

Facho de guerra aceso

Em labaredas arde!


Do fratricídio a luva

Irmão a irmão lançara,

E o grito: ai do vencido!

Nos montes retumbara.


As armas se hão cruzado:

O pó mordeu o fone;

Caiu: dorme tranquilo:

Deu-lhe repouso a morte.


Ao menos, nestes campos

Sepulcro conquistou,

E o adro dos estranhos

Seus ossos não guardou.


Ele herdará, ao menos,

Aos seus honrado nome;

Paga de curta vida

Ser-lhe-á largo renome.


V


E a bala sibilando,

E o trom da artilharia,

E a tuba clamorosa,

Que os peitos acendia,


E as ameaças torvas,

E os gritos de furor,

E desses que expiravam

Som cavo de estertor,


E as pragas do vencido,

Do vencedor o insulto.

E a palidez do morto,

Nu, sanguento, insepulto,


Eram um caos de dores

Em convulsão horrível,

Sonho de acesa febre,

Cena tremenda e incrível!


E suspirei: nos olhos

Me borbulhava o pranto,

E a dor, que trasbordava,

Pediu-me infernal canto.


Oh, sim!, maldisse o instante,

Em que buscar viera,

Por entre as tempestades,

A terra em que nascera.


Que é, em fraternas lides,

Um canto de vitória?

É delirar maldito;

É triunfar sem glória.


Maldito era o triunfo,

Que rodeava o horror,

Que me tingia tudo

De sanguinosa cor!


Então olhei saudoso

Para o sonoro mar;

Da nau do vagabundo

Meigo me riu o arfar.


De desespero um brado

Soltou, ímpio, o poeta,

Perdão! Chegara o mísero

Da desventura à meta.


VI


Terra infame! – de servos aprisco,

Mais chamar-me teu filho não sei;

Desterrado, mendigo serei:

De outra terra meus ossos serão!


Mas a escravo, que pugna por ferros,

Que herdará desonrada memória,

Renegando da terra sem glória,

Nunca mais darei nome de irmão!


Onde é livre tem pátria o poeta,

Que ao exílio condena ímpia sorte.

Sobre os plainos gelados do norte

Luz do Sol também desce do céu;


Também lá se erguem montes. e o prado

De boninas, em Maio. se veste;

Também lá se meneia o cipreste

Sobre o corpo que à terra desceu.


Que me importa o loureiro da encosta?

Que me importa da fonte o ruído?

Que me importa o saudoso gemido

Da rolinha sedenta de amor?


Que me importam outeiros cobertos

Da verdura da vinha, no Estio?

Que me importa o remanso do rio,

E, na calma, da selva o frescor?


Que me importa o perfume dos campos,

Quando passa da tarde a bafagem,

Que se embebe, na sua passagem,

Na fragrância da rosa e alecrim?


Que me importa? Pergunta insensata!

É meu berço: a minha alma está lá...

Que me importa... Esta boca o dirá?!

Minha pátria, estou louco... menti!


Eia, servos! O ferro se cruze,

Assobie o pelouro nos ares;

Estes campos convertam-se em mares,

Onde o sangue se possa beber!


Larga a vala!, que, após a peleja,

Todos nós dormiremos unidos!

Lá, vingados, e do ódio esquecidos,

Paz faremos... depois do morrer!


VII


Assim, entre amarguras,

Me delirava a mente;

E o Sol ia fugindo

No termo do Ocidente.


E os fortes lá jaziam

Coa face ao céu voltada;

Sorria a noite aos monos,

Passando sossegada.


Porém, a noite deles

Não era a que passava!

Na eternidade a sua

Corria, e não findava.


Contrários ainda há pouco,

Irmãos, enfim, lá eram!

O seu tesouro de ódio,

Mordendo o pó, cederam.


No limiar da morte

Assim tudo fenece:

Inimizades calam,

E até o amor esquece!


Meus dias rodeados

Foram de amor outrora;

E nem um vão suspiro

Terei, morrendo, agora,


Nem o apertar da dextra

Ao desprender da vida,

Nem lágrima fraterna

Sobre a feral jazida!


Meu derradeiro alento

Não colherão os meus.

Por minha alma aterrada

Quem pedirá a Deus?


Ninguém! Aos pés o servo


Meus restos calcará,

E o riso ímpio, odiento,

Mofando soltará.


O sino lutuoso

Não lembrará meu fim:

Preces, que o morto afagam,

Não se erguerão por mim!


O filho dos desertos,

O lobo carniceiro,

Há-de escutar alegre

Meu grito derradeiro!


Ó morte, o sono teu


Só é sono mais largo;

Porém, na juventude,

É o dormi-lo amargo:


Quando na vida nasce

Essa mimosa flor,

Como a cecém suave,

Delicioso amor;


Quando a mente acendida

Crê na ventura e glória;

Quando o presente é tudo.

E inda nada a memória!


Deixar a cara vida,

Então é doloroso,

E o moribundo à Terra

Lança um olhar saudoso.


A taça da existência

No fundo fezes tem;

Mas os primeiros tragos

Doces, bem doces, vem.


E eu morrerei agora

Sem abraçar os meus,

Sem jubiloso um hino

Alevantar aos Céus?


Morrer, morrer, que importa?

Final suspiro, ouvi-lo

Há-de a pátria. Na terra

Irei dormir tranquilo.


Dormir? Só dorme o frio

Cadáver, que não sente;

A alma voa a abrigar-se

Aos pés do Omnipotente.


Reclinar-me-ei à sombra

Do amplo perdão do Eterno;

Que não conheço o crime,

E erros não pune o Inferno.


E vós, entes queridos,

Entes que tanto amei,

Dando-vos liberdade

Contente acabarei.


Por mim livres chorar

Vós podereis um dia,

E às cinzas do soldado

Erguer memória pia.