A Igreja

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"E se tardar para que saibas como deves portar-te na Casa de Deus que é a Igreja do Deus vivo, coluna e firmamento da verdade" I Timóteo 3:15

Pondo de parte qualquer outra asserção do Apóstolo no texto, é meu intento, prezados irmãos, indagar nesta hora alguma coisa sobre a natureza do Deus vivo, que afirma S. Paulo ser a Casa de Deus, coluna e firmamento da verdade. Em face das idéias errôneas que sobre este ponto reinam em nossa sociedade e das tremendas conseqüências que delas se tiram, a importância do assunto se recomenda por si mesma. Cristo prometeu estar com a sua Igreja até a consumação dos séculos, e edificá-la sobre a rocha inabalável, de modo que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Diante dessas promessas importantes, ensina-se a nosso povo que a Igreja de Cristo é uma congregação visível a palpável de pessoas contidas dentro de uma organização determinada, e que essas pessoas pelo simples fato de estarem dentro dessa organização, são herdeiros das promessas, e por conseqüência, não podem errar, são coletivamente infalíveis. E quando a história mostra que em nome dessa Igreja infalível e com sua autoridade se tem praticado horrendas carnificinas e acendido milhares de fogueiras homicidas; e quando com as Santas Escrituras se provam que, sob essa autoridade que não podem errar, espalham hoje mesmo as doutrinas mais anticristãs, respondem: “Cale-se a ímpia história fementida, cale-se a orgulhosa razão ante a Santa Madre infalível!” Com tais preconceitos, a voz da Igreja, como o disse alguém, torna-se uma espécie de cabeça de Medusa, que tem petrificado o bom senso de muitos.

No curto espaço desta hora só poderei apresentar-vos a verdadeira noção ou concepção bíblica da Igreja, mostrando ao mesmo tempo o sentido em que as promessas se têm cumprido e se cumprirão. Procurarei evidenciar que a Igreja é um reino espiritual e, por conseqüência, não pode encerrar-se necessariamente nos limites materiais de uma organização qualquer, e, si bem que não seja meu propósito refutar de uma maneira direta, neste momento, os erros mencionados, espero, todavia, que ante a representação da verdade, clara e simples, desmorone-se aos nossos olhos o soberbo edifício que tem levado séculos a se construir sobre os alicerces levadiços da ignorância e indiferença religiosas.

Abrindo o Novo Testamento encontramos em muitos lugares a palavra “Igreja”: o exame desses lugares é o meio mais fácil e seguro de chegarmos à compreensão daquilo que o Espírito Santo designa por essa palavra. S. Paulo, nas duas epístolas escritas aos cristãos da cidade de Corinto, projeta brilhantíssima luz sobre o sentido religioso da palavra “igreja”.

Tão claras são as palavras do Apóstolo, que nos podem servir de chave segura para a interpretação de todos os textos em que se encontra mesma palavra. Principiando, a primeira palavra declara que ele a dirige a “Igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Jesus Cristo, chamados santos com todos os que invocam o Nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. É claro que o Apóstolo chama “Igreja de Deus” a reunião dos santificados em Jesus Cristo, dos que invocam com sinceridade o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, dos fiéis que, segundo a Escritura, são chamados santos. Este mesmo sentido manifesta o Apóstolo claramente no primeiro versículo de sua segunda epístola aos Coríntios: “A Igreja de Deus que está em Corinto, e a todos os Santos, que há por toda a Acaia.” É, portanto, incontestável que nesses dois lugares entende Paulo por igreja, a sociedade dos fiéis, a congregação dos santos. Um exame atencioso de todos os outros lugares levar-nos-á à conclusão de que este é o único sentido religioso em que a palavra é empregada. Esta significação apostólica da palavra “igreja” está de acordo com sua etimologia. Ela tem sua origem num coletivo grego – Ekklesia que, por sua vez, deriva-se dum verbo Kaleo, que significa chamar denotando conseqüentemente a assembléia ou sociedade daqueles que são eficazmente chamados por Deus. O profeta do Apocalipse torna bem saliente esse sentido quando declara no capítulo 17, versículo 14, que os que estão com o Cordeiro de Deus “são os Chamados, os Escolhidos, e os Fiéis.” Assim a verdadeira Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo, aquela que é chamada a Esposa imaculada do Cordeiro, é composta unicamente dos que são verdadeiramente chamados, dos escolhidos e dos fiéis de todos os tempos e lugares. “Não sabeis vós” diz ainda S. Paulo à Igreja de Deus em Corinto, “que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (1 Co 3:16). Afirmando a mesma sublime verdade escreve S. Pedro aos escolhidos de Deus que receberam a santificação do Espírito para prestarem obediência a Deus e terem parte na aspersão do sangue de Jesus Cristo. A estes cristãos admoesta S. Pedro: “Chegai-vos para ele (Cristo), como para a pedra viva, que os homens tinham sim rejeitado, mas que Deus escolheu, e honrou; também sobre ela vós mesmos, como pedras vivas, sede edificados em casa espiritual, em Sacerdócio Santo, para oferecer sacrifícios espirituais, que sejam aceitos a Deus por Jesus Cristo” (1 Pe 2:4,5).

Todos estes ensinos das Escrituras vêm esclarecerem o nosso texto com refulgente luz: “A Casa de Deus vivo que é a Igreja do Deus vivo, a coluna e o firmamento da verdade” é, não resta a menor dúvida, diante do Novo Testamento, a congregação dos eleitos, dos verdadeiros fiéis.

Conservando sempre a mesma compreensão, variam os apóstolos muitas vezes a extensão do termo. Ora, o termo “igreja” designa congregação, ora particulares, ora a Igreja única, universal ou católica, que abrange no vasto seio maternal a universalidade dos verdadeiros fiéis, dos que estão na terra e dos que estão no céu.

Essa Igreja universal é nas Escrituras representada por várias corporações designativas de sua natureza, e relações com seu único chefe. É comparada a um templo, a uma casa, e neste caso Cristo é a pedra angular (Mt 16:18); Ef 2:20); a um corpo, e Cristo é cabeça (Ef 1:23); a uma esposa, e Cristo é o Esposo (Ap 21:3); a uma videira, e Cristo é o tronco que alimenta os galhos (Jô 15); a um rebanho, e Cristo é o Supremo Pastor. É também chamado o Reino de Deus, que se divide em duas províncias, a Igreja Triunfante no Céu e a Igreja Militante na terra. Esse povo, esse reino, essa Igreja, reuniu sempre em si todos os caracteres da verdadeira Igreja. Desde que seus membros são unicamente os convertidos pela palavra da vida e pelo Espírito Santo, “os santificados em Jesus Cristo”, ela não pode deixar de ser uma santa, católica e apostólica. Uma – não na uniformidade monótona, ou no automatismo estéril de uma liturgia pomposa; mas, na unidade maravilhosa de seus credos, na comunhão viva das doutrinas fundamentais do Cristianismo, na fraternidade cristã de seus membros: “santa” – não pelo calendário de nomes próprios canonizados pelo voto falibilíssimo de homens pretensiosos, mas, na santidade de suas doutrinas emanadas diretamente de uma fonte pura – o Livro Sagrado da Revelação Divina, e na pureza de seus membros; “católica” – não na universalidade de um cadáver, que realizando as profecias, estende os seus membros inertes entre todas as tribos, línguas e nações, mas porque abrange a universalidade daqueles que em todos os tempos e lugares mantiveram-se firmes no único fundamento, cabeça e pedra angular, a saber, Cristo (At 4:11, Ef 3:20); apostólica – não na transmissão absurda de uma consciência apostólica através dos séculos, pelo contato manual, mas na sustentação diligente das doutrinas pregadas pelos santos apóstolos. A preservação desses caracteres através dos tempos, em um grupo de pessoas escolhidas, a despeito de todas as circunstâncias e falibilidade humana, só pode ser atribuída à ação poderosa e sempre presente do Vigário de Cristo que é a terceira pessoa da Santa Trindade. Graças à presença eficacíssima do Espírito Santo, a Igreja de Deus vivo tem conservado em todas as idades seus títulos gloriosos, suas gloriosas prerrogativas, e tem sido em todos os tempos coluna e firmamento da verdade, a luz do mundo e o sal da terra.

A sua história é o testemunho constante do amor de Deus; sua conservação em todos os tempos, o monumento imperecível do seu poder. Um olhar rápido sobre seu passado confirmando o que tinha dito, ajudar-nos-á a compreender a natureza das promessas que lhe foram feitas. Logo depois da queda do homem separar a humanidade nos dois grupos que a dividem hoje – os filhos de Deus e os filhos dos homens na expressão de Gênesis. As águas do dilúvio exterminam os filhos dos homens, mas, sobre seu dorso imenso flutua na Arca de Noé a Igreja de Deus vivo, composta de oito pessoas. Manifesta-se a apostasia e na descendência de Abraão é preservada a linhagem santa. Retirado do cativeiro do Egito esse povo de Deus é introduzido na terra da promissão. Aí estabelecido no reinado do ímpio Acabe, manifesta-se a apostasia em larga escala. A idolatria domina a Igreja: o ídolo de Baal parece divorciá-la completamente de seu Deus.

Só um homem permanece de pé, procurando debalde em torno de si a Igreja de Deus: é o profeta Elias. “Senhor, mataram os teus Profetas, derribaram os seus Altares: e eu fiquei sozinho, e eles me procuram tirar a vida” (Rm 11:3). Porém a resposta de Deus patenteia o engano do Profeta: “Eu reservei para mim sete mil homens que não dobraram seus joelhos diante de Baal” (v. 4). Chegam, afinal, os dias gloriosos da última Dispensação. O Verbo se fez carne e “veio para o que era seu, e os seus não no receberam.” Os edificadores rejeitaram a pedra angular, preciosa, que anunciará o Profeta (Is 26) dever ser posta em Sião. O pontífice, e os sacerdotes, os levitas, a nação judaica, a Igreja quase que em peso, apostatou, rejeitando o Cabeça, renunciando solenemente a Jesus Cristo. Teria pela primeira vez desaparecida a Igreja do Deus vivo? Não, responde S. Paulo: “Do mesmo modo que no tempo de Elias, Deus, segundo sua graça, salvou a um pequeno número, que ele reservou para si” (Rm 11:5).

De seu Chefe recebe esse “pequeno número”, que era a Igreja de Deus, ordem de marchar é a conquista do mundo: “Ide por todo o mundo”. Durante 300 anos, sublevam-se contra a Igreja as forças tremendas das potências infernais. O dragão procura afogá-la num rio de sangue (Ap 12:15), porém o sangue dos mártires é a semente da Igreja.

Vendo a inutilidade da guerra franca, muda satanás de tática, e inaugura uma nova fase de luta, fase que dura até nossos dias. Cessaram as perseguições, sobre o trono imperial; no princípio do 4º século, senta-se Constantino e declara-se protetor dos perseguidos. Manifesta-se a corrupção no seio da Igreja que se torna oficial. Desencadeiam-se sobre ela os ventos pestíferos da heresia: levanta-se Ário no ano 317 e nega a divindade de Cristo, e “o orbe todo gemeu”, diz S. Jerônimo, admirado de se ver ariano – ingemuit totus orbis terrarum, et Arianum se esse miratus est.

O concílio de Selêucia no Oriente, e o de Rimini no Ocidente, compreendendo quase 800 bispos, sustentavam a heresia Ariana, e a maioria dos bispos, inclusive Libério, bispo de Roma, “papa infalível”, subscreveram às heréticas decisões. Atanásio e o pequeno número dos que sustentavam a divindade do Senhor Jesus, perseguidos, tomaram caminho do exílio. Ter-se-iam acaso falhado as promessas de Cristo? Teriam, porventura, as portas do inferno prevalecido contra sua Igreja? “Não”, responde S. Jerônimo, “a Igreja não consiste nas paredes das ricas catedrais, mas na verdade dos dogmas, onde estava a verdadeira fé, aí estava a Igreja”. Ecclesia ibi es, ubi fides Vera est.

Reproduzia-se, portanto, o que já se tinha dado no tempo de Elias e dos Apóstolos: verificava-se no seio da Igreja a defecção em grande número; mas então, como em todos os tempos, cumpriam-se as promessas, manifestava-se a graça de Deus, na conservação de “um pequeno número” de testemunhas fiéis, oprimidas, é certo, mas possuidoras legítimas das ricas e gloriosas prerrogativas da Igreja cristã.

Soou, porém, a hora da derrota para a heresia triunfante de Ário; mas nem por isso deixou satanás a tentativa de eliminar da superfície da terra a Igreja do Deus vivo. Mistura a astúcia à violência, sobe aos púlpitos cristãos e anuncia aos povos, mergulhados em trevas, um cristianismo a pouco e pouco falsificado. Foi lento o novo trabalho da destruição; durou do 4º século ao 16º.

Mas, durante esse longo período, esse cristianismo bastardo e perseguidor aniquilou, porventura, o legítimo cristianismo? Foi de fato destruída a Igreja cristã? Não, porque ela é imperecível. Onde estava ela então? O Profeta do Apocalipse nos ajuda a descobrir seu esconderijo apontando-nos para o deserto. Aí, diz ele, foi-lhe preparado um lugar de retiro onde Deus a sustentaria por 1260 dias (Ap 12:6).

Ajudados por estas indicações do Profeta, ser-nos-á mais ou menos fácil acompanhar, através das grandes agitações e catástrofes dos povos, a história dos grandes sofrimentos e fidelidade da Igreja desde Constantino até a Reforma do século 16º.

Mas, é crível que o cativeiro da Igreja cristã se prolongasse por tantos séculos, sem, entretanto, falharem as promessas de Cristo: A credulidade desse cativeiro ou dessa opressão secular não se firma só em fatos históricos irrefragáveis, mas em expressas profecias. Anuncia S. Paulo claramente o desenvolvimento do mistério da iniqüidade, e, sossegando os Tessalonicenses aterrados pela próxima vinda do fim do mundo, diz o Apóstolo: “Não virá sem que antes venha a apostasia e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, aquele, que se opõe, e se eleva sobre tudo, que se chama Deus, ou que é adorado, de sorte que se assentará no Templo de Deus, ostentando-se como se fosse Deus” (2 Ts 2:3,4). Referindo-se sem dúvida a essa mesma “apostasia”, ensina S. Paulo que importava serem os bispos e os diáconos esposos de uma só mulher e acrescenta: “Ora, o Espírito manifestamente diz, que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos de erro e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia falarão mentira, e que terão cauterizada sua consciência, que proibirão casarem-se, que se faça uso das viandas que Deus criou” (1 Tm 4:1-3). E o Profeta, nas visões do Apocalipse, escrevendo sem dúvida a história futura da Igreja, fala-nos largamente nos capítulos 13 e 17, dessa apostasia a que se refere S. Paulo, e que já Daniel anunciara em visões bem significativas (Dn 7, Ap 13 e 17). Levantar-se-á, diz o Profeta, um poder, uma besta com sete cabeças, que o Anjo explica serem sete montes; sobre ela senta-se uma mulher, vestida de púrpura, tendo em sua mão uma taça de ouro cheia de abominação, de imundícia da sua prostituição. Essa mulher, diz o Anjo, é a grande cidade que reina sobre os reis da terra. A essa besta foi dado o poder de fazer guerra por 42 meses, 1260 dias, ou segundo os intérpretes, 1260 anos, foi-lhe dado poder sobre toda tribo, língua e nação. E agora repare no que diz o Profeta no capítulo 8, versículo 7: “E foi-lhe concedido que fizesse guerra aos Santos, e que os vencesse.” Assim estava decretado nos impenetráveis conselhos do Todo Poderoso que se levantaria no seio da Igreja um poder apostato que venceria os santos, isto é, os fiéis cristãos, ou ainda a Igreja do Deus vivo por 1260 anos. Assim os fatos históricos vêm confirmar as declarações do Profeta; estas declarações confirmadas pelos fatos vêm explicar-nos a natureza das firmíssimas promessas feitas por Cristo à sua Igreja. Ele prometeu estar com ela até a consumação dos séculos, de modo que as portas dos infernos, isso é, (segundo o original grego, as portas de hades, que é a região dos mortos), as portas da sepultura, em suma, o poder da morte, que prevalece contra tudo, não prevaleceria contra sua Igreja, não a extinguiria da face da terra. Jamais, enquanto houvesse mundo, fechar-se-iam as portas da sepultura sobre os cadáveres dos últimos de seus membros.

O Senhor Jesus assegura, pois, nas suas promessas, não a infalibilidade de uma corporação determinada, muito menos o uso-fruto dessa infalibilidade como monopólio de uma classe; porém a perpetuidade de uma igreja na preservação graciosa e providencial de um certo número de fiéis.

E aí estão dezenove séculos para atestarem a fidelidade de suas promessas. Em todos os tempos de grandes apostasias, constitui sempre a sua verdadeira Igreja, fiel depositário das doutrinas reveladas, coluna e firmamento da verdade. Nos dias de Noé, como nos dias de Abraão; no tempo de Elias, como no tempo dos Apóstolos; na época do arianismo, como nos 1260 anos da supremacia do anticristo: houve sempre um grupo fiel, os 7000 que não dobraram seus joelhos a Baal.

Eis a resposta que, com a Escritura e história na mão, podemos dar aos nossos adversários, que nos perguntam ironicamente: “Se a vossa igreja é a Igreja de Cristo, onde estava a Igreja de Cristo antes da Reforma?”. Desde os primeiros passos da grande apostasia anunciada pelos Apóstolos e por Daniel, surgiram em todos os tempos, fiéis testemunhas da verdade, que não eram vozes isoladas, porém, antes, marcos históricos, que assinalam, na estrada dos séculos, a marca da Igreja do Deus vivente. Compulse a história eclesiástica e vereis em todo o período anterior à Reforma, grupos mais ou menos numerosos, perseguidos como hereges, sob nomes diversos, nomes que traduziam, em grande parte, a ironia e desprezo de seus adversários. Lede os credos desses hereges, contra os quais se invoca da espada secular horríveis morticínios, e reconhecereis, na constância inquebrantável desses grupos mártires, a Igreja de Cristo servindo de coluna inabalável às pura verdades do Evangelho. Diante desses fatos históricos, diante dos Valdenses, Albigenses, Paulicianos, Hussitas, Wiclifitas, e muitos outros, perguntar-se-á ainda: “Se a Igreja de Roma não é a de Cristo, onde estava a Igreja de Cristo, antes de Lutero?” Pois bem, a resposta acaba de ser dada.

Ela se acha no mesmo lugar em que já se tinha achado no tempo do ímpio Acabe, no tempo de Anás e Caifás, no tempo dos sucessores de Constantino, que sustentaram a ferro e fogo a heresia ariana; ela tinha tomado o caminho do deserto e do exílio; ocultava-se nos vales do Piemonte e defendia-se nas regiões da Hungria, contra o jugo apóstata dos bispos prepotentes de Roma, e muitos de seus membros que não tinham logrado retirar-se para esses esconderijos, morriam nas fogueiras inquisitórias ou gemiam no cativeiro dessa nova Babilônia, cujas muralhas derribaram os reformadores do século XVI.

Este relancear de olhos sobre a história da Igreja vem impor-nos uma verdade, já implicitamente contida na definição do termo Igreja. É que em nenhum tempo pode o homem traçar com exatidão os limites da Igreja do Deus vivo sobre a terra, porque os padrões materiais não podem servir de marcos ao Reino espiritual de Deus. Os ritos diversos que separam as corporações visíveis, não podem limitar o espírito católico, não podem restringir a expansão espiritual do Reino de Deus. Esta verdade é diretamente ensinada por S. Paulo, no seguinte lugar: “Não é o judeu o que é manifestamente, nem é circuncisão o que se faz exteriormente na carne; mas é judeu o que é no interior: e a circuncisão do coração é no espírito, não segundo a letra: cujo louvor não vem dos homens, senão de Deus” (Rm 2:28,29). Ensina, pois, o Apóstolo que a circuncisão, que era um sacramento da Igreja antes de Cristo, e, conseguintemente, todas as cerimônias por Deus prescritas, mesmo quando observadas regularmente, não davam por si só o direito a um judeu de ser verdadeiramente um israelita, um filho de Abraão. Era necessário mais do que essas exterioridades, era necessário um coração crente e um espírito reto. Esta verdade é de uma aplicação intuitiva em todos os tempos. Os sacramentos e a organização exterior da Igreja são como que a cabeça: a fé verdadeira, a caridade sincera, eis propriamente o fruto. O homem vê o exterior, enxerga os atos e presume a fé e a caridade. Deus, porém, antes de ver a aparência sonda os corações. Finalmente não podemos traçar com exatidão a linha divisória que separa a Igreja de Deus do resto dos homens, visto que as qualidades espirituais para ser-se membro dessa Igreja – a fé, o arrependimento, a caridade, a circuncisão do coração – escapam à nossa limitada intenção. Por isso declara S. Paulo: “O fundamento de Deus tem este selo: - o Senhor conhece os que são dele: aparte-se da iniqüidade os que invocam o nome do Senhor.”

É pois de necessidade que se faça uma distinção entre a igreja interior e a exterior, entre a igreja vista pelos olhos infalíveis de Deus e a contemplada pelos olhos falíveis dos homens – entre Igreja invisível e Igreja visível.

É a Igreja invisível, composta unicamente dos santificados em Jesus Cristo, dos que em todos os países invocam com sinceridade o nome do Senhor, é a ela unicamente que pertencem as gloriosas promessas do Evangelho: as ricas esperanças de seus membros não se firmam nem em Pedro nem em Paulo, mas na Rocha inabalável confessada por Pedro e e anunciada pelo Profeta (Is 28:16) “Cristo o Filho de Deus Vivo”.

Porém, a Igreja de Deus, como vos disse, apresenta-se a nossos olhos, sob um aspecto visível, isto é, como uma vasta associação, que tem atravessado os tempos estendendo-se sobre todos os países. Na sua organização exterior esta vasta sociedade dos fiéis apresenta não só no tempo, mas também no espaço um aspecto múltiplo.

A Igreja como um todo, tem, no tempo, assumido três formas fundamentais: a Igreja patriarcal, a Igreja mosaica ou levítica, e a Igreja cristã. Cada uma destas formas é caracterizada por um aspecto exterior bem distinto. Mas, porventura, não é uma só e mesma igreja, que varia de aspecto, reveste formas diversas, segundo as circunstâncias de tempo e lugar?

Entre os diversos símiles ou comparações por que é representada na Santa Escritura a Igreja de Deus, há um que nos pode servir de ilustração apropriada. S. Paulo a compara no capítulo 9 dos Romanos a uma oliveira. Os judeus comparam os Apóstolos aos ramos naturais, e as igrejas particulares organizadas no mundo gentílico, a galhos de zambujeiro enxertados na oliveira sagrada. Uma árvore traz, com efeito, a idéia de um conjunto de galhos e ramos diferenciados pela distância e aparência, muitos dos quais não se ligam entre si diretamente, senão por meio do tronco. Basta, porém, um pouco de observação para descobrir, nessa imensa variedade, perfeita semelhança ou unidade. Assim a Igreja que naturalmente tinha um aspecto uniforme nas dispensações patriarcal e levítica, porque compreendia uma só família e um só povo, necessariamente assumiria um aspecto variado desde que abrangesse todas as famílias e povos da terra. É pois natural que nesta dispensação cristã, essencialmente universal, ela realize plenamente o símile do Apóstolo. Diante destas considerações tornam-se evidentes as judiciosas observações de um autor, tendentes a demonstrar que sob a nova economia, a Igreja deve organizar-se exteriormente segundo a sabedoria e prudência de seus membros, tendo em vista seus fins e os princípios do Evangelho. Ora, como esta sabedoria e prudência variam necessariamente, a variedade no aspecto da organização externa é uma conseqüência natural da liberdade. Com efeito, não há uma forma exterior por Deus imposta à Igreja Cristã. Sob a Velha Dispensação, há o livro de Levítico prescrevendo à igreja judaica, com minuciosa exatidão. Todos os ritos, cerimônias, governo, disciplina.

O Novo Testamento declara na epístola aos Hebreus que toda esta organização exterior do culto judaico. Todo esse “jugo de escravidão”, na expressão de S. Paulo, foi abolido – “eram sombras de bens vindouros, eram figuras postas até o tempo da reforma” (Hb 10:1,9,10). Onde está no Novo Testamento o livro que preserve os ritos que deviam substituir o cerimonial levítico? Não existe. O Novo Testamento contrariamente do Velho ocupa-se muito com a essência ou doutrina e pouco com a forma. Respondendo a perguntas da Igreja de Corinto sobre certas cerimônias e costumes, S. Paulo indica o livro que os cristãos devem consultar sobre essas coisas secundárias que não se acham reveladas no Novo Testamento: “Julgai lá vós mesmos” “nem a natureza vo-lo ensina” diz em 1 Co 11:13,14; 13:26,40). Os ritualistas de hoje se escandalizam com semelhante liberdade, mas seus antecessores nos tempos apostólico, já tiveram do ilustre Apóstolo dos Gentios, digna resposta quando este declarou-lhes que não vivemos mais debaixo de tutores e curadores, por termos no “Ministério do Espírito”, na dispensação cristã, atingido a nossa maioridade espiritual.

De fato, o regime da liberdade pode ser abusado pelos sérios efeitos do jugo da escravidão, pelos menores que não têm bastante natureza para dispensar tutela: nunca pelos que gozam da liberdade dos Filhos de Deus, dos que têm alcançado a maioridade na plena luz e ardente caridade do Evangelho.

No gozo desta liberdade, foram os apóstolos e discípulos em cumprimento da ordem recebida, fundando igrejas ou comunidades particulares entre todos os povos. É assim que o Novo Testamento fala-nos de igrejas organizadas em Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Roma, etc. Nenhuma dessas igrejas era mãe e senhora das outras. Isto é ponto incontroverso para quem lê o Novo Testamento, ou a história da Igreja Primitiva.

Jerusalém não recebia ordens da igreja de Roma; Roma, por sua vez, era independente das outras igrejas. Cada uma dessas igrejas era um organismo particular, autônomo, unido aos outros pelo laço áureo da caridade e profunda simpatia fraterna, fomentado pela identidade das crenças emanadas de um Código comum, cuja autoridade infalível todos reconhecem. Eram repúblicas confederadas, cujos pontos controversos se decidiam em assembléias ou concílios de seus pastores chamados bispos ou presbíteros.

Quanto à organização externa, quanto à hierarquia eclesiástica e disciplina dessas diversas repúblicas ou congregações, na parte em que não havia recomendações expressas servia naturalmente de norma segura o exemplo ou a práxis apostólica. Os mesmos Apóstolos, reconhecendo a liberdade nestas coisas secundárias, permitiam certa diversidade no aspecto exterior das diversas igrejas. É assim que, permitindo às igrejas da Judéia conservarem certos costumes ou cerimônias da Lei mosaica, proibiam, todavia, imporem certas cerimônias às igrejas dos gentios, que tinham outros costumes mais adaptados ao caráter delas (At 15:20-27). Circunstâncias incidentais foram, com o correr dos tempos, traçando linhas divisórias, cada vez mais visíveis, na forma exterior dessas igrejas separadas pela distância, pelas raças e costumes sociais. Mas, essas diferenças que se acentuavam cada vez mais, eram o fruto natural da liberdade e o produto espontâneo da atividade inteira.

Assim hoje as mesmas coisas devem produzir os mesmos efeitos. Em todos os países e cidades em que os cristãos invocam com sinceridade o nome do Senhor, eles se congregam para o culto divino e administração dos sacramentos. Essas congregações, organizando-se regularmente, sob influência da atividade e liberdade cristãs, hão de forçosamente divergir, em sua organização externa, de outras corporações congêneres. Desde que não temos um livro de Levítico, nem mesmo um capítulo do Novo Testamento prescrevendo diretamente uma liturgia ou mesmo uma determinada forma de governo à Igreja Cristã, é evidente que o temperamento, a diversidade do meio e educação social, os modos diversos por que o espírito humano encara a mesma verdade, são coisas que mui naturalmente atuam de modo a produzir a diversidade ou variedade na forma exterior das corporações cristãs.

Para evitar essa diversidade era necessário mutilar-se o cristianismo, abolindo aquilo que justamente caracteriza a última fase da Igreja sobre a terra – a liberdade. Para que isso se efetuasse, era preciso que, nos impenetráveis decretos de Deus, uma dessas igrejas particulares, ensoberbecendo-se, tivesse a sacrílega audácia de se proclamar – “mãe e senhora” de suas irmãs. Depois, sob pena de excomunhão, procuraria impor sua liturgia, sua forma exterior às igreja do Oriente e do Ocidente. Porém, na evolução natural das coisas humanas, um abismo chama outro abismo, e essa igreja, ensoberbecendo-se, sentir-lhe-ia crescer a ambição na embriaguez dos primeiros triunfos. De particular tornar-se-ia universal ou católica, de falível, infalível.

A simplicidade evangélica da Igreja Primitiva foi perdida na engrenagem complicada de pompas luxuosas de uma cleresia aristocrática. E não contente em mutilar exteriormente o cristianismo, ela estenderia mão profana sobre a essência, ou sobre o corpo doutrinário e novos dogmas ir-se-iam agregando ao credo dos Apóstolos. Porém, no dia em que essa igreja particular começasse a assassinar moral e espiritualmente suas irmãs, nesse dia a mão da Justiça divina cortaria esse ramo da árvore do cristianismo, e ela, como Caim, sairia da presença de Deus levando em sua fronte entre todas as tribos, línguas e nações as palavras que já o Profeta lera, nas visões apocalípticas: “Mistério: a grande Babilônia, a mãe das prostituições e abominações da terra” (Ap 17:5).

E coisa por certo admirável, meus ouvintes, é que estas oposições sejam não somente fatos históricos, mas previsões proféticas. Lançando um olhar retrospectivo sobre a Igreja falei-vos de um período de 1260 anos em que ela devia ser vencida, porém, não aniquilada. Não me refiro agora a essas predições, mas a um pressentimento profético do grande Apóstolo dos gentios que tem de certo com eles relações íntimas e que é bem significativo sobre o ponto que nos ocupa. S. Paulo, como sabeis, escreveu nove cartas, que constam no Novo Testamento, a igrejas particulares. Entre estas existe uma dirigida à igreja particular de Roma. No capítulo nove dirigi-lhes S. Paulo, com os olhos do futuro, uma solene admoestação: declara-lhe que os ramos judaicos foram cortados da oliveira santa por causa da sua incredulidade, e que ela, igreja de Roma, fora enxertada para ser um ramo dessa oliveira. Pois bem – acrescenta o Apóstolo, versículos 20 a 22 - não te ensoberbeças, mas teme, porque se não permaneceres na benignidade de Deus, também tu serás cortado. Coisa singular! Realizaram-se os pressentimentos do Apóstolo: o galho do zambujeiro enxertado quis ser a árvores, e ameaçou cortar todo o ramo que não declarasse ser ela a oliveira santa. Deus, porém, executou a sentença, e o galho do romanismo foi cortado da árvores cristã, realizando a grade apostasia de que fala S. Paulo aos Tessalonicenses (2 Ts 2:3, 1 Tm 4:1,2).

Os membros da verdadeira igreja católica, que rejeitaram o jugo de Roma, usando da liberdade evangélica nas coisas que o Espírito Santo deixou ao critério de sua fé e caridade, amoldam os princípios de governo, disciplina e liturgia, de sua natureza variáveis, a seu ponto de vista peculiar; e, retendo sempre o plano evangélico da salvação, e essência divina da religião cristã, encaram diversamente certas verdades secundárias sobre a predestinação e sobre a forma e tempo do batismo. Essas divergências secundárias, sob o influxo da atividade pujante do cristianismo, dão origem à formação das diversas denominações irmãs ou igrejas particulares que se chamam – luterana, anglicana, metodista, batista, congregacionalista, prebiteriana. Cada um desses nomes, porém, significa uma força na grandiosa liberdade do cristianismo: são galhos da mesma oliveira que realizam plenamente a comparação do Apóstolo: separam-se na diversidade da aparência; ligam-se, porém, na unidade da árvore; unem-se no mesmo tronco e alimentam-se do suco da mesma raiz.

Se, em alguma coisa, esses grupos diversos denotam a estreiteza e fraqueza inerentes ao espírito humano, em não poder contemplar uma verdade do mesmo modo e com a mesma clareza, ou aplicar um princípio com a mesma exatidão: em outras, revelam que o espírito ativo e livre do cristianismo não morreu. Ali, pois, onde o observador prevenido só enxerga imperfeição, o observador imparcial descobre a liberdade! E coisa admirável! Esses frutos diversos da contingência humana, se assim o quisermos considerar, revertem em grande bem para a igreja em geral! Essas corporações diversas no seio da vasta corporação cristã dão origem a uma emulação vigilante (Hb 10:24) que, temperada pela caridade, produz os maravilhosos resultados que, gratos, contemplamos em nossos dias. Louvemos a Deus tirando o louvor perfeito da boca dos que mamam!

Desgraçadamente em todas as harmonias humanas soa sempre a nota discordante. Nessas corporações particulares há muitos membros indignos: eles fazem parte da igreja visível, mas falta-lhes inteiramente os títulos para serem membros da igreja invisível. Um olhar atencioso descobre às vezes em uma árvores frondosa certas folhas que não pertencem à árvore, mas a certa erva parasita, que oculta facilmente sua natureza a um observador inexperiente. Esses membros são os parasitas das igrejas. Debaixo deste ponto de vista, compara S. Paulo a Igreja a uma grande casa onde há vasos de honra e de desonra (2 Tm 2:20), e nosso Divino Mestre, a um campo onde ao lado do trigo cresce a cizânia (Mt 13). Esse elemento hipócrita no seio das congregações, coadjuvado pelo fanatismo, lamentável fruto da estreiteza de nossas inteligências, tem infelizmente muitas vezes convertido essa nobre emulação em uma sabedoria terrena, animal, diabólica (Tg 3:15), em um zelo amargo e orgulho sectário. Estas coisas, porém, são inevitáveis. Nosso Senhor a declara na parábola do campo e da cizânia, e também quando diz: “É necessário que haja escândalos”.

Do que ficou dito é fácil concluir-se que essas igrejas independentes, cuja totalidade constitui a Igreja católica, essas organizações autônomas, várias na forma e idêntica no fundo, têm plena razão de ser nas leis naturais do espírito humano, e plena sanção na liberdade do Evangelho. É na esfera religiosa a aplicação da lei da variedade no seio da unidade, lei que faz ressaltar por toda a parte na criação a beleza e sabedoria de Deus.

A diversidade exterior da Igreja visível é, portanto, a manifestação livre e característica de sua atividade católica, e diante desta verdade solidamente estabelecida pelo fato de não haver preceito sobre a forma e a ordem das cerimônias do culto externo, nem mesmo prescrições positivas sobre o governo eclesiástico, oferece um interesse secundário o indagar-se qual das formas existentes é a melhor. Talvez que fosse mais edificante perguntar-se qual dessas igrejas irmãs, ou ramos cristãos, é a mais excelente? É a metodista? A batista? A presbiteriana ou a congregacionalista? A resposta é fácil em tese. Qual dos galhos da árvore frutífera é o mais estimável? É aquele que sustenta com mais simetria seus ramos, ou aquele que projeto sobre o solo uma sombra mais vasta? Não, é o que mais se carrega de frutos. Pois bem, a melhor de todas essas comunidades autônomas no seio do cristianismo não é aquela com maior número de membros, nem maior soma na arca de seus tesouros, nem maior regularidade nas formas litúrgicas ou disciplinares; mas, sim, aquela em cujo seio há mais piedade e consagração ao Mestre, maior número de membros pertencentes à Igreja invisível; aquela que produz em maior quantidade o fruto saboroso do cristianismo – a caridade evangélica.

Seja-me permitido, meus irmãos, ao concluir, tirar do que tenho dito algumas considerações práticas.

A verdadeira Igreja do Deus vivo, composta dos santificados em Jesus Cristo, tem sido através dos séculos a coluna firmíssima da verdade revelada nas Sagradas Escrituras. A sua indefectibilidade lhe tem sido garantida peal eleição do Pai, pela intercessão do Filho seu único Chefe, e pela assistência poderosíssima do Espírito Santo, único Vigário de Cristo sobre a terra. Mas é bom lembrarmo-nos que a perpetuidade da árvore não quer dizer estabilidade perpétua do galho e muito menos das ervas parasitas que enroscam em seus galhos. A história da Igreja no tempo de Elias, a severidade de Deus para com os ramos judaicos, e, sobretudo, a solene admoestação dirigida por S. Paulo à igreja de Roma, devem trazer a salutar advertência a nós igrejas particulares de uma cidade, que constituímos os ramos, a nós organizações mais vastas, que formamos os galhos da Oliveira. Para que tenhamos direito de fazer para, aos olhos de Deus, da árvores do cristianismo, não basta conservarmos em nossos credos a ortodoxia das doutrinas; é indispensável mantermos em nossa prática a ortodoxia dos sentimentos.

“Eu tenho contra ti – diz o Senhor à igreja de Éfeso – que deixaste tua primeira caridade” (Ap 3:5). Se somos zelosos em cortar os membros que apregoam doutrinas heterodoxas, imitemos particularmente ao Senhor, dobremos esse zelo em lançar fora de nossa comunhão os que, perdendo a sua caridade, que é a vida divina da Igreja, mostram um zelo amargo, um espírito de seita, que é a morte dessa vida no seio de nossas comunidades. É no domínio da liberdade que se ostenta plenamente a índole celeste da imortal caridade. Quando outras razões não houvesse, pois, para essa diversidade exterior do cristianismo, seria razão aceitável o dar ela excelente oportunidade à tolerância evangélica, a essa virtude “que não ensoberbece, que não busca seus próprios interesses e que tudo tolera” – se há uma verdade que acima das outras deva ser mantida por essa “coluna e firmamento da verdade”, é, meus irmãos, a caridade fraternal que só pode realizar sobre a terra a concepção bíblica da Igreja. “Se amamos uns aos outros”, diz S. João, “Deus permanece em nós”. É, portanto, pelo amor da irmandade que podemos realizar a verdade de nosso texto, que nos pode constituir a “Casa de Deus”. Em face, pois, da natureza da Igreja de Deus, quase odiosa é a estreita intolerância, e abominável orgulho e egoísmo sectários, que se insurgem aqui e ali – pouco importa onde – contra a fraternidade evangélica, princípio conservador da unidade cristã! Presbiterianos, metodistas, batistas, anglicanos, congregacionalistas, mostremos na vasta República do Brasil que o regime da liberdade é a vida fecunda da Igreja Cristã; amortizemos a malevolência caluniosa de nossos inimigos, patenteando-lhes que em laço áureo, santo, indissolúvel nos une na comunhão dos dogmas essenciais do cristianismo, no seio natural da verdadeira Igreja católica e apostólica – é o vínculo da perfeição, último mandamento de Cristo, sinal distintivo de seus discípulos – é o amor intenso da irmandade, é a caridade fraterna!

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.