A Luneta Mágica/I/VII
Na primeira convocação do júri o meu nome foi o primeiro que saiu da urna. Este sucesso deu que pensar e que falar em casa.
A tia Domingas levou um dia inteiro a repetir: "o primeiro na primeira. . . "; passou assim o dia sem rezar, nem sei se rezou de noite; mas na manhã seguinte propôs-me comprar de sociedade comigo um bilhete de loteria.
Eu não cabia em mim de contente; o mano Américo hesitava, porém enfim conveio em que eu entrasse no exercício do meu direito de cidadão jurado.
Creio que meu irmão procedeu assim pelo respeito que consagra às leis, como me assegurou, embora a prima Anica me dissesse em particular que o segredo da sua condescendência esteve no receio de pagar multas... por mim.
As senhoras são de ordinário muito maliciosas; acham graça em sê-lo: Anica tem esse defeito; mas, diga ela o que quiser, eu penso que o mano Américo é simples e puro, como Adão antes de comer do fruto proibido.
Compareci oportunamente ao tribunal de que a sorte me fizera membro: a sorte estava declarada por mim: logo no primeiro processo o meu nome foi ainda o primeiro que saiu da urna, e não pareci suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.
Prestei a maior atenção à leitura do processo, às testemunhas e aos debates, e quando entrei para a sala secreta achava-me plenamente convencido pelo promotor de que o réu merecia a forca; pelo advogado do réu de que este era credor de uma coroa cívica, e pelo juiz de direito que resumira a acusação e a defesa, de que o réu tinha jus à forca e a coroa.
Na consulta secreta sentei-me junto de um bom velho que, vendo-me completamente as escuras em uma questão de atenuantes e agravantes, quis iluminar o meu espírito, fazendo-me ler uns artigos do seu Manual dos Jurados.
Não tive remédio, senão confessar-lhe as enormes proporções da minha miopia física Ler era para mim um martírio: pedi-lhe que me lesse os artigos do seu Manual.
— Pobre moço, disse-me ele; já procurou o Reis?...
— O Reis? quem e o Reis?
— Quem é o Reis?... pois um míope ignora quem seja o Reis?... c Reis é o homem-luz, o homem-fonte de visão para os míopes se ele não o fizer ver, é porque o senhor é cego.
— Mas eu sou quase cego.
— O Reis anula-lhe o quase, e dá-lhe o dom da vista perfeita; o Reis é o graduador de vidros miraculosos. O senhor tem sido deixado em abandono por sua família
— Pelo que me diz, começo a ter desconfianças disso.
— Escute: eu vou contar-lhe maravilhas em relação ao Reis
— Mas o processo?
— Que nos importa semelhante massada?... deixá-los falar, e discutir; nós já sabemos como havemos de votar.
— O senhor como vota?
— Votarei de modo que o réu seja necessariamente absolvido.
— Então tem certeza de que ele é inocente?
— Deve sê-lo sem a menor dúvida.
— Por quê?...
— Porque não menos de dois compadres e de três amigos meus se empenharam para que eu o absolvesse.
— E tem razão: não posso acreditar que dois compadres e três amigos de um juiz fizessem a este a injúria de pedir-lhe uma sentença injusta, julgando-o capaz de um prejuízo e de um sacrifício de consciência.
— Deveras?...
— O que me parecia, era que semelhantes pedidos e empenhos deviam ser exclusivamente reservados para servirem de luz aos jurados pobres de espírito como eu; porque os inteligentes, como o senhor, não precisam de quem lhes dirija as consciências.
O velho pôs-se a rir, não sei de que; provavelmente eu tinha dito alguma necedade, e começava a sentir-me tomado de vexame e de confusão, quando o presidente chamou-nos a votar em resposta aos quesitos do juiz de direito.
O bom velho, meu novo amigo, exerceu naquele conselho de jurados os direitos do mano Américo; porque votou por si e por mim.
O réu foi absolvido pela maioria de dois votos, e por conseqüência o empenho de dois compadres e de três amigos e a minha miopia moral decidiram da sentença.
Sai do júri com a convicção de que ou não tenho senso comum, ou é preciso mais alguma coisa além do senso comum para que o cidadão seja bom jurado.