A Luneta Mágica/II/IV

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O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.

Por que, para que me expus a desestimar a aurora que é tão formosa, e a descobrir na natureza e na influência do sol que dizem ser fonte de vida, tantos germens de destruição e de morte? Por que e para que ficar-me na alma esta desconfiança das ilusões da aurora, esta certeza de que o sol é também assassino da criação e assolador da terra?...

E por que esta luneta mágica além de três minutos de fixidade só me deixou ver os males e os horrores que o sol pode produzir e negou-me a contemplação dos seus benefícios?

Oh! foi dolorosa; mas será profícua a lição; doravante saberei defender-me da vingança terrível da salamandra escravizada: aborreço. Não experimentarei mais a visão ao mal; basta-me a visão da superfície e das aparências. Se o mundo é de enganos, se a vida é de ilusões, se na terra a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, e nos enganos da alma, eu quero iludir-me e enganar-me para ser feliz.

Oh! vem, minha luneta magica, vem! mas para que eu te fixe somente dois minutos sobre cada objeto.

E eu fixei a luneta nas flores, cujo matiz, e cujas cores variadas e belas enfeitiçaram meus olhos, fixei-a nos passarinhos, nas borboletas, nas folhas das arvores que ainda lagrimejavam gotas de orvalho e festejei todos estes tesouros da natureza, que eu via, e distinguia perfeitamente pela primeira vez.

Gozei uma hora de inexplicável encantamento, gozei muito, muito; mas, preciso é confessar, os meus gozas, suavíssimos embora, foram sempre perturbados por dois sentimentos que de certo modo os deixavam incompletos.

Fixando a minha luneta eu sentia logo e quase ao mesmo tempo medo e curiosidade; medo de esquecer o tempo e de chegar à visão do mal, e curiosidade teimosa, insistente, insidiosa e cada vez mais forte dessa mesma visão do mal.

Pouco e pouco venci o medo, medindo instintivamente os minutos; não pude porém vencer, domar a curiosidade, que em luta aberta com a minha razão, martirizava-me, aguçando um desejo fatal.

Essa curiosidade era como a tentação do demônio que nos arrasta ao pecado; meus lábios haviam já tocado uma vez na taça oferecida pela tentação, e o veneno que eu bebera, abrasava o meu seio, e eu tinha sede devoradora da visão do mal.

A salamandra, o gênio, o demônio tentador estava incessantemente a dizer-me ao ouvido que eu era senhor de um poder, de que nenhum outro homem, nem sábio, nem rei, podia usar e aproveitar-se, e que só a fraqueza de animo ou os hábitos rudes da mais triste ignorância explicariam o abandono, o sacrifício desse poder encantado que me fazia penetrar e ler no intimo dos seres.

E foi no instante em que mais violento era o combate da curiosidade com a razão que divagando, passeando com a minha luneta, vi a prima Anica entrar no jardim.