A Luneta Mágica/II/XLII

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Senti verdadeira dor de consciência por estar com o meu fingido sono enganando ao homem que tão decidido me defendera.

Abri os olhos; fiz de conta que despertava.

— Como vamos? perguntou-me o doutor.

— Acho-me bom; mas fraquíssimo.

— Fui eu que o enfraqueci: tirei-lhe sangue, como nenhum outro médico se lembra mais de tirar; agora a moda é condenar a lanceta; eu porém adoro ainda a minha...

— Obrigado, doutor. Se me quiser estender sua mão, eu a beijarei... duas vezes.

— Tão bom me acha?

— Pela minha gratidão acho-o ótimo.

— Logo nem todos os homens são maus.

Compreendi a alusão e guardei silêncio.

— Daqui a alguns dias resolveremos esta importante questão; agora não lhe permito conversar nem mesmo com os seus parentes.

— Pode ficar descansado nesse ponto, doutor; juro-lhe que não lhes darei nem palavra.

— Que ingrato! murmurou Anica que me apertava uma das mãos.

— Além disso quero que esteja absoluta, perfeitamente tranqüilo, e sem a mais leve apreensão triste ou temerosa no ânimo.

— Como?

— Que é da sua luneta?

— Tenho-a escondida, doutor.

— Escondida por que?

— Não me pergunte o que sabe: a minha luneta é o único tesouro que possuo no mundo ou na vida, e querem roubar-ma!!!

— Não é preciso exaltar-se tanto; confie mais em seus parentes que o amam, e que são os primeiros a garantir-lhe a posse do seu pretendido ou verdadeiro tesouro.

— Ontem à noite empregaram a força, lutaram, magoaram-me para arrancar-me a luneta...

— Engana-se: ontem à noite o senhor teve ardente febre e delírio... não se passou, o que acaba de dizer; pode usar de sua luneta sem receio algum; tranqüilize-se, serene o seu espírito os seus parentes estão aqui, e em prova de cuidado e de amor estão prontos, embora não seja isso necessário, a dar-lhe todas as seguranças...

— Sim, mano Simplício, disse Américo com acentuação enternecida; podes usar da tua luneta com a mais plena liberdade, que eu serei o primeiro a fazer respeitar por todos os meios.

— Benza-te Deus, menino! Que mal nos faz a tua luneta? exclamou a tia Domingas.

— Primo, eu prefereria morrer a causar-lhe o menor desgosto, assobiou suavemente Anica com a sua voz de música afinada.

— Já ouviu? perguntou-me o doutor.

Eu estava dentro de mim revoltado contra aquela hipocrisia refinada dos meus três parentes inimigos; por eles media, aquilatava ainda uma vez a perversão e a malvadeza da humanidade, e em meu assanhado ressentimento desejei castigá-los, ostentando a minha desconfiança.

O médico proporcionou-me a oportunidade do castigo.

— Que é da sua luneta?... perguntou-me ele outra vez, notando sem duvida a minha reflexão.

— Receio... desconfio sempre, respondi com azedume franco.

— Apresente-a; sirva-se dela; conte com a proteção de seus parentes.

— E quem é deles o fiador? perguntei acerbo.

Percebi um movimento, tríplice movimento de contrariedade e de viva impressão de ofensa; libei a minha vingança.

— Injusto irmão! disse Américo.

— Que pecado contra a natureza! bradou a tia Domingas, acrescentando em voz baixa: ave Maria, Deus te perdoe!

— Meu primo! como você é ingrato! balbuciou a prima Anica.

O doutor desatara a rir.

Os médicos são os homens que mais riem ou os homens que nunca riem, porque são os homens que mais e melhor estudam a humanidade por obrigação do ofício.

Eu quis provar que me não deixara comover, e aplaudindo em minha consciência a eloqüente risada do médico, firmei a sentença da minha bem fundada desconfiança, repetindo a pergunta:

— E quem é deles 0 fiador? Quem se atreve a ser o fiador dos meus três parentes?...

— Eu, disse o doutor.

Sem mais hesitar desatei a luneta, e apresentando-a, fixei-a ousadamente, observando em rápido volver as quatro pessoas que estavam diante de mim.

O médico ria-se, com um sarcasmo a rir desenvoltamente.

O mano Américo, a tia Domingas, e a prima Anica mostravam-se contrafeitos pelo vexame, e no mais completo e ridículo desapontamento.

Como é vil, ruim, baixa e indigna a humanidade!!!