A Luneta Mágica/II/XLI
Entraram.
Reconheci as vozes do doutor, do mano Américo da tia Domingas, e da prima Anica.
— Ele dorme, disse a prima Anica.
— Sono reparador, observou o medico com um tom magistral.
E logo tomou-me o pulso com a maior delicadeza para não me despertar; tocou-me a fronte, passando por ela a palma da mão, e examinou-me o calor dos pés.
— Do mais grave perigo está salvo, disse então o doutor; operou-se uma crise benéfica, e a congestão foi a tempo embaraçada. Respondo pelo nosso homem.
— A noticia não pode ser mais agradável, disse o mano Américo; mas eu receio muito alguma recaída...
— Não é impossível.
— A causa subsiste...
— Que causa?...
— A posse em que ele está da luneta que supõe mágica.
— Luneta que é obra do diabo! exclamou a tia Domingas.
— Luneta aleivosa e má, acrescentou a prima Anica.
— Minhas senhoras, não indiciem acreditar no poder mágico da famosa luneta para que eu não me convença de que devo tratar aqui de três doentes em vez de um.
— Essa é boa! tornou a tia Domingas: pois seria a primeira vez que o espírito maligno fizesse das suas no mundo? Bem se diz que os médicos não são religiosos.
— O senhor doutor talvez tenha razão, disse Anica; há porém coisas que fazem tontear a gente!
— Eu creio, respondeu o médico em tom brincão: a senhora por exemplo não tem em si o espírito maligno, e contudo aposto que terá feito andar às tontas as cabeças de muitos moços de bom gosto.
— Ora, ora.
— Mas, doutor, acudiu o mano Américo; tratemos seriamente deste caso: eu também não tenho a simplicidade pueril de acreditar no poder mágico da luneta fatal; todavia meu irmão está possuído dessa idéia.
— O que é mau sintoma, convenho.
— Muita gente se julga ofendida pela luneta e a teme...
— Segue-se que também é preciso tratar dessa gente que padece tanto, como seu irmão.
— O doutor graceja...
— Não; falo sério.
— Penso que convinha muito e ainda mesmo à força tomar essa luneta, e quebrá-la.
— Francamente, disse o médico; julgo que seu irmão iludido por um suposto mágico, tem-se tornado vitima da própria imaginação exaltada no maior extremo; com efeito essa ilusão, de que ele é escravo, assumiu o caráter de mania...
— Então...
— Ou é possível ou impossível curar-lhe a manta: se é impossível, para que atormentar seu irmão inutilmente? Se é possível, nós o curaremos da mania mais tarde...
— Mas...
— Agora eu o vejo escapando apenas a um ataque cerebral que ameaçou tomar proporções terríveis, e o ressentimento de qualquer violência que ele sofresse, seria capaz de levá-lo à sepultura.
— E a influência maléfica da luneta?...
— Proíbo que contrariem e que desgostem de qualquer modo o nosso doente.
— Então ele está realmente doido, senhor doutor? perguntou Anica.
— Cuidado, minha senhora; seu primo foi multo seriamente ameaçado de uma congestão cerebral; acudimo-lo a tempo; conseguimos prevenir um caso talvez desesperado, mas qualquer imprudência pode ainda ser fatal.
— A minha pergunta...
— Foi menos prudente; se seu primo a ouvisse receberia cruel impressão. Felizmente ele dorme.