A Luneta Mágica/II/XLV
Em todo este tempo o meu extremoso irmão que com tristes lamentações insistia em considerar-me doido, conservara sempre no meu quarto um ou dois escravos de sentinela.
No sétimo dia de tratamento o doutor logo que entrou acompanhado dos meus três adoráveis e estremecidos parentes, despediu as malditas sentinelas, declarou que não eram necessárias e que pelo contrário deveriam ter sido dispensadas desde o segundo dia.
Ficamos no quarto, o doutor, o mano Américo, a tia Domingas, a prima Anica e eu.
— Ora pois! disse o médico, dirigindo-se a mim, o senhor esta bom, e hoje venho despedir-me do seu tratamento.
Desfiz-me em agradecimentos, que me saíram do coração.
— Muito bem, tornou ele; quero por em prova imediata a sua gratidão.
— Que quer de mim? mande, doutor.
— Todos falam da sua luneta mágica; o senhor pretende que por meio dela pode ler no livro intimo dos sentimentos dos homens: é isto verdade?
— É verdade, doutor.
— Otimamente; eu duvido de tudo isso e quero que dissipe as minhas dúvidas: dá-me palavra de honra que há de dizer em alta voz tudo quanto ler e encontrar nos arcanos da minha alma, fixando em mim sua luneta?
— Doutor!
— Eu o exijo.
— Oh! não!... eu lhe devo muito...
— Eu o exijo. Dá-me palavra de honra?...
— Dou-lha; é a pesar meu; mas dou-lha.
— Fite pois em mim a sua luneta: ela! venha a experiência.
Com ímpetos de curiosidade, talvez de insensata saudade da visão do mal, tremendo porém de grato medo, fixei a luneta mágica no rosto do médico, que imóvel e inabalável se deixou observar.
Vi e fui dizendo o que via.
— Cabelos castanhos e crespos, fronte soberba, olhos pequenos, mas brilhantes e incisivos no olhar, nariz aquilino, faces pálidas, lábios grossos e eróticos, pouca barba, mãos finas e delicadas, corpo bem feito, e... oh!...
— Que é isso?...
— A visão do mal!... exclamei.
— Venha ela!
— Não! não! não!
— Deu-me a sua palavra de honra: cumpra-a!
— Não!
— Eu o exijo.
Obedeci e falei tremendo e a pesar meu.
— Bela inteligência, e estudo profundo desvirtuados pela ambição do ganho, e pelo embotamento da sensibilidade! O senhor desperta à meia-noite ao chamado anelante de um pobre, cuja esposa lhe dizem que agoniza, e responde friamente: "procurem outro médico: se a mulher agoniza, não vou lá"; e conchegando ao corpo os lençóis, dorme sem remorsos; o senhor faz pacto de aliança com as moléstias dos ricos que pagam, prolonga os tratamentos para multiplicar as visitas, e dobrar os lucros... o senhor é materialista e incrédulo, não admite alma, espírito ri da vida eterna, admira o acaso, e não reconhece Deus, criador do universo, criador do homem, Deus do castigo do mau que não se arrepende, Deus do perdão do pecador contrito!... O senhor é o homem da Inteligência, raio do céu, e da ciência Incompleta, vaidosa e corrompida da terra! O senhor é uma fonte de erros e de abominações, o senhor é perverso!...
O médico desatou em estrondosas gargalhadas, talvez para disfarçar a confusão em que sem dúvida ficara, e saiu do quarto, rindo-se cada vez mais estrepitosamente em seguimento de meu Irmão, de minha tia e de minha prima que fugiram espantados do testemunho tremendo da visão do mal.