A Luneta Mágica/II/XV

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E ainda com a proveitosa lição senti-me triste, profundamente triste.

Que dia infeliz! começou de manhã pelos procuradores que vi e que me causaram repugnância e tédio, e acaba à tarde com a contemplação de duas jovens formosas, que a princípio me pareceram dois anjos, e logo depois reconheci que eram duas criaturas condenadas, dois corações infeccionados, duas mulheres formosas, porém más, dois medonhos abismos cobertos de lindas flores.

Esta luneta é implacável e cruel: além da visão das aparências ainda não me concedeu uma contemplação suave.

Já aborreço os homens, e hoje principiei a desconfiar das mulheres.

Quero, preciso ter uma consolação, uma impressão felicitadora, que compense as tristes desilusões, por que tenho passado. Longe da minha luneta os homens e as mulheres! prefiro olhar, apreciar algum ser impecável, obra de Deus, não contaminada pelas malícias, e pelos vícios da humanidade.

Aí estão as duas pirâmides, e defronte o outeiro dos jacarés... são trabalhos do homem, desprezo-os; lá se mostram as flores... algumas são venenosas, e os perfumes das mais inocentes em certas condições podem matar; também não quero as flores; a água deste lago pode conter miasmas... não me convém...

Oh! eis ali um beija-flor!... a mais delicada e gentil criatura! eu o estou vendo com suas penas de esmeraldas e rubins, de ouro e topázio, de púrpura e de fogo... eu o estou vendo com a sua mobilidade faceira, com os seus vôos rápidos e graciosos, com o seu trêmulo adejar equilibrante no gozo puro do seu amor das flores...

Mas... que vejo ainda? que vejo agora?... ah! essa avezinha tão mimosa e tão linda é um monstro que me inspira aversão por seus instintos ferozes e qualidades perniciosas.

Egoísta, falso, incapaz de afeição durável, o perverso abusa dos seus encantos, e beija, profana e atraiçoa todas as flores, licenci e infame, poluindo seus nectáreos e ostentando após a mais bárbara indiferença, a mais ostentosa e ilimitada inconstância.

O beija-flor é como a serpente pela extensibilidade da língua, e esta ainda nele se duplica, estendendo dois filetes, que lhe servem como as garras às aves de rapina.

Finalmente assassino e destruidor, ele mata e devora em cada dia dezenas e dezenas de insetos inocentes, fracos e incapazes de defender-se, ousando sem continência, nem respeito ir arrancá-los do mais doce asilo, do seio mimoso das flores!...

Hoje criei ódio aos beija-flores, passarinhos devassos, desmoralizados, traiçoeiros e malvados.

Flores da terra! acreditai na minha luneta mágica: tende medo dos beija-flores!