A Luneta Mágica/II/XXIII
A carta não me foi agradável; refleti por algum tempo e resolvi não responder ao Reis; a falta de resposta era inqualificável grosseria; eu porém já tinha em tão profundo desprezo e aborrecimento os homens, que pouco ou nada me preocupava a idéia de ofender o Reis. Decidi-me a fazer de conta que não recebera a carta.
Mas quem poderia ter atraiçoado o meu segredo? Tornado patente a minha facilidade da visão do mal?... Só três homens:
O armênio, de cuja ciência mágica se duvidava, e cujo testemunho era portanto suspeito, e para quase todos seria ridículo.
O Reis que me escrevia, interrogando-me, e que por conseqüência. nada sabia, visto que perguntava.
O velho Nunes que assistira a cena dos trabalhos mágicos do armênio e a quem no dia seguinte eu confiara imprudente, louca e desastradamente o segredo do poder miraculoso da minha luneta magica.
Portanto, o traidor, o propalador do segredo fora o velho Nunes, o procurador imoral e refalsado, de quem eu fugira, e a cujo convite para jantar no seio de sua família faltara sem escusas ulteriores nem satisfações.
O velho trapaceiro e ignóbil procurava pois vingar-se do meu desprezo, denunciando a todos, publicando a força prodigiosa da luneta que eu possuía.
Vingança estéril, vã, estúpida! Que me importa o juízo dos homens? Que me importa o mundo?
Mundo, homens, velho Nunes e minha própria vida eu embrulho todos e tudo isso nos trapos ascosos do meu mais profundo desprezo,
Não dei a menor importância à revelação traidora, mal intencionada do velho Nunes: pensei que ainda quando ela pudesse trazer-me desgosto e porventura colocar-me em circunstâncias embaraçosas e desagradáveis, nem por isso chegaria a tornar-me mais desgraçado do que eu já era.
Atirei com a carta do Reis sobre a mesa, tomei o chapéu e sai a passear para desforrar-me de três dias de misantropa reclusão, a que me condenara.
Eu levava comigo o suplício da visão do mal, e não pudera imaginar que ainda outro suplício e igualmente horrível por ela me estivesse esperando no mundo em que vivia.
Saí, como disse, e avançara apenas alguns passos, quando reparei que muitas pessoas fugiam de encontrar-me, que outras voltavam-me as costas, que as senhoras se retiravam apressadas das janelas.
A princípio não pude explicar o fenômeno; logo depois, porém, lembrou-me a insidiosa revelação do velho Nunes, e compreendi que me fugiam por medo da minha luneta magica.
— Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes doem as consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus.
Era a primeira vez que me ria desde dois meses; o meu riso, porém, era cheio de fel, era o rir de maldição irônica lançando em face à humanidade-demônio.
Era quase noite; cheguei à Praça da Constituição, e entrei no jardim que estava cheio de povo.
De súbito ouvi surdo e longo ruído de centenas de vozes, semelhante ao trovejar longínquo da tempestade afastada; que me importava isso?... Continuei o meu passeio pelas ruas do jardim, mas antes de três minutos a Praça achou-se deserta, e no jardim apenas a estátua eqüestre e eu!...
— Que gente! exclamei sem poder conter-me: não há um homem, não há uma mulher que ouse afrontar a luneta mágica.
Veio-me o desejo de olhar e estudar a estátua eqüestre; imediatamente porém senti tanta repugnância ao desengano provável das idéias e sentimentos que eu acreditava ou antes acreditara presidindo e dirigindo o acontecimento majestoso e patriótico que esse belo monumento comemora, e atesta com sublime ufania que cedendo a generoso impulso, não quis contemplá-lo, e deixando o jardim, dirigi-me ao café vizinho, à muito conhecida casa do Braga.
Entrei, sentei-me a uma das primeiras mesas, e pedi uma xícara de café.
A sala estava atopetada de fregueses; mas apenas entrei, e tomei um lugar, despovoou-se de improviso, e um servente rude e mal-educado veio de mau modo dizer-me que não havia mais café, e que a casa dispensava a minha freguesia, e muito me agradeceria, se eu não tornasse a aparecer ali.
Desta despedida formal a uma expulsão à viva força a distância era pequena e quase nula, era a intimação antes da violência; eu tinha por mim o meu direito incontestável de ser servido, pagando o que se garantia ao gozo publico; a lata, a contenda porém não me podia convir: traguei o insulto, e saí sem responder uma única palavra ao caixeiro selvagem.
Andei às tontas, sem destino e sem norte pelas ruas; às oito horas da noite dirigi-me a um dos nossos teatros, pouco importa saber qual, comprei um bilhete, e fui tomar a minha cadeira.
Mal acabava de sentar-me, ouvi dizer perto de mim: "é ele!"
A essa voz que soara em tom baixo, seguiram-se outras que repetiram com ecos surdos: "é ele! "
Dentro em pouco o sussurro transformou-se em ruído, o ruído em desordem: as senhoras que estavam nos camarotes, recuaram os seus bancos até não poderem ser vistas, espectadores das cadeiras e da platéia levantaram-se ao mesmo tempo como um só homem, e geral gritaria de "fora! fora! fora!" ribombou estrepitosa, insistente, ameaçadora no teatro.
Um porteiro veio humildemente pedir-me que me retirasse, oferecendo-me com estúpida e revoltante aparência de benignidade a vil quantia, por que eu pagara o meu bilhete; resisti e furioso disse uma injúria ao mísero porteiro.
Mas a gritaria tempestuosa continuava; insultos desabridos, ameaças ferozes chegaram a meus ouvidos; a polícia interveio debalde em meu favor; a pateada violenta ameaçava degenerar em motim. No maior fervor da borrasca recebi da autoridade policial não uma ordem, porém um pedido para retirar-me do teatro, do qual então imediatamente sai vexadíssimo, ardendo em cólera, ferido pela reprovação de todos, e ao som dos aplausos escarnecedores, com que era festejada a minha vergonhosa retirada.