A Luneta Mágica/IV/VIII
A meia-noite o velho, dez alegres moças e outros tantos mancebos rodeavam esplêndida mesa.
Ridículo Baco de cabelos brancos, o velho provocava a companhia ao ruído, as cantigas livres, as libações freqüentes, à desenvoltura à orgia enfim.
Mais bela e petulante que todas as suas companheiras, Esmeralda era digna rainha daquela festa, que me inspirava espanto e horror.
Esmeralda, impudica e doida, desnudava encantos que o recato esconde cuidadoso, deixando-os apenas adivinhar nas palpitações do peito que arfa. Ela tinha esvaziado as taças cheias de seis vinhos diversos, e pedia ainda champanha e conhaque!
Mísera bacante precisaria em breve que a levassem quase carregada para dormir em casa.
A bela moça embebedava-se!
Dentro em pouco faltava o juízo a quase todos: mulheres e homens se achavam aviltados, castigados pelos venenos da orgia e da depravação dos costumes.
Dois únicos dos convivas resistiam ao contágio fatal, o meu amigo, que bebera vinha com água, e eu que bebera água com vinho.
— Primo, disse-me ele; estuda esta lição, e aproveita-a.
— Tens razão, respondi; é tempo de fazê-lo: devo e quero apreciar toda a ignomínia, e toda a imensa vergonha dos nossos sócios de orgia.
E fixei a minha luneta mágica sobre a Esmeralda embriagada.
A principio vi, o que tinha já apreciado, seus dotes físicos, sua gentileza que o vinho e a petulância apenas anuviavam; Esmeralda era ainda bonita apesar da embriaguez e da ignomínia; sem dúvida que o era, pois que eu o reconhecia, embora o sentimento que ela me inspirava fosse o da repulsão e do tédio, que nos causa a vista de um animal imundo.
Passaram porém os três minutos e começou a visão do bem.
Li com surpresa e enternecimento na alma da embriagada a história do seu passado e dos tormentos de sua vida.
Menina de coração angélico, mimoso tipo de sensibilidade, fora muito cedo vitima do crime; era pobre e órfã e uma parenta corrompida preparou-lhe sinistro sono, e vendeu-lhe a um monstro a inocência e a pureza; riram-se de suas lágrimas e a arrastaram para o vício; mas em breve despertando no meio da perversão, Esmeralda teve remorsos, detestou sua vida, foi mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama e é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha marcado a sua fronte com o sinal negro da reprovação perpétua. Então principiou para a mísera a vida do frenesi a que o desespero preside.
Na convicção tremenda do seu aviltamento embriaga-se todos os dias para esquecer a sua miséria moral, e para matar-se; sabe e sente que o conhaque queima-lhe as entranhas e lhe abrevia a vida; pelo sabor aborrece o conhaque, pelos seus efeitos adora-o; beberia fogo vivo, se o fogo vivo se bebesse.
O seu rir contínuo é o delírio da dor, a antítese das torturas do coração em convulsões dos lábios que fingem alegria.
Ninguém a despreza tanto como ela mesma se despreza, porque na pureza dos seus sentimentos e de sua sensibilidade adora a virtude, compreende a sublimidade do amor honesto, e se reconhece infame pela infâmia do vício.
Quando está só em casa, e vê passar uma jovem com o vestido branco e a virginal coroa de noiva no carro que a conduz à igreja, Esmeralda se ajoelha, chora, e reza; chorando por si, e orando pela noiva.
Fatal arruinadora dos ricos, que se tornam seus apaixonados, parece nadar em mar de ouro, e nunca lhe sobra o dinheiro; porque ela alimenta e veste quantos pobres a procuram; ou quantos pobres conhece; mas tem fama de dissipadora e ninguém a chama caridosa.
Nos desvarios precipites da sua vida Esmeralda ganhou créditos de petulante, interesseira, vil, desordenada, infrene e louca, incapaz de uma afeição, não suscetível de amar, demônio de gelo, demônio de voracidade áurea, demônio de corrupção; ela o sabe e ri com o seu rir que é mais amargo do que o pranto mais doloroso.
Que falsa apreciação! Esmeralda é flagelada pelo seu pudor inato de mulher que nasceu para ser santa; não tem ordem na vida maternal, porque abomina o cálculo egoísta a ponto de esquecer os cuidados do futuro; o que chamam sua loucura é como um castigo que ela se impõe na terra; sensível, dedicada, extremosa, amando tão ardentemente a virtude, que nem concebe escusa, desculpa, ou perdão para sua vida manchada e ignominiosa, tem uma coração que é um abismo de amor exaltado e sublime.
Se fosse amada, esposa de um homem a quem amasse, seria tipo de fidelidade, heroína pela abnegação, mártir pela paciência, anjo pela santidade dos sentimentos e da vida.
Contemplando essa vítima do mundo, e dos homens, essa embriagada adorável, essa virtude cheia de manchas, esse querubim profanado, essa mulher formosa de corpo aviltado e alma pura, esse coração todo amor, essa Madalena que se torturava no vício, que se atribulava na orgia, que se degradava na embriaguez, que antes da morte e com severa consciência condenava o corpo à corrupção, à podridão, as extremas e esquálidas misérias da terra, e tinha a alma arrependida já metade no céu, tive ímpetos de correr a beijar-lhe os pés, e de bradar-lhe: "acorda! surge do sono da embriaguez! eu te compreendo e te amo, eu te regenero, dando-te o meu nome! "
Creio que dominado pelos encantos físicos e morais de Esmeralda, eu teria ido além de treze minutos de contemplação, se o meu primo de convenção não me tivesse tocado no braço, fazendo assim cair a luneta mágica que eu fixara sobre a infeliz moça.
— Não olhes tanto para a Esmeralda, disse-me ele; corres o risco de ficar verde.
Ou por acaso, ou porque ouvisse a observação do meu suposto primo, a Esmeralda cravou em meu rosto um olhar flamejante, e logo depois empunhando o corpo, bradou:
— Conhaque! conhaque! conhaque!
Pareceu-me então que a ouvia pedir veneno para se ir matando, levantei-me de súbito, e atirei-me de encontro ao criado que correra a deitar-lhe conhaque no copo; arrebatei-lhe da mão a garrafa e exclamei:
— Basta! a senhora não deve tomar mais conhaque!
— Pois então... vou-me embora... balbuciou a Esmeralda, e no meio de gerais gargalhadas, saiu, cambaleando, apoiada no braço do velho.