A Luneta Mágica/IV/IX
Dormi mal o resto da noite; porque despertei por vezes, sonhando com a prima Anica, e com a Esmeralda, e no dia seguinte encontrei as imagens de ambas, felicitando a minha alma.
Cumpre-me dizer que senti por isso mesmo o primeiro inconveniente da visão do bem: eu amava igualmente as duas moças, e hesitava sobre qual delas merecia preferência.
Anica era pura; Esmeralda manchada pelo vicio mais torpe.
Anica era sóbria como todas as senhoras de educação e apenas em jantar cerimonioso molhava os lábios com alguma. gotas de champanha; Esmeralda era afeita à ignomínia; da embriaguez.
Anica era objeto do respeito de todos, e somente em culto à sua virtude, e às delicadezas devidas ao seu sexo, alguns na sociedade lhe beijavam reverentemente a mão; Esmeralda era o escárnio de muitos, e o insulto vivo da moral pública.
Mas eu, melhor que todos, conhecera Esmeralda pelas revelações da visão do bem, e não podia deixar de fazer-lhe justiça.
Anica era feliz, tivera mãe e parentes a velar por ela, educação a aprimorar suas virtudes; Esmeralda era a desgraçada mártir sacrificada por infame parenta; a primeira tivera todos, a segunda ninguém por si.
E além disso a Esmeralda conservava o melindre do sentimento na depravação da vida; devorada pelos remorsos, tendo aversão ao vício que a aviltava, arrojava-se a ele, como a um castigo, e procurava abreviar seus dias com o veneno da embriaguez.
Não era Madalena arrependida, mas era Madalena delirante.
Se aparecesse um homem que amando Esmeralda, e sendo por ela amado, lhe dissesse: "eu te amo! eu te dou o meu nome e te regenero!", essa mulher se agarraria a esse homem, como a um anjo de salvação, e sua esposa dedicada, extremosa e fiel o faria feliz.
O marido de Anica será por força ditoso; mas desfrutador egoísta de uma dita, que toda lhe há de vir da esposa; o marido de Esmeralda porá fim a um grande infortúnio, cobrirá com os véus do seu nome uma nudez reprovada; fará uma obra de caridade, de amor santo, que o exaltará aos olhos de Deus, que purificou a Madalena arrependida.
Em uma palavra o marido de Anica poderá ser mais ditoso; mas o de Esmeralda será mais generoso.
E todavia eu hesitava sempre...
Às vezes a minha razão me dizia que todas as mulheres pervertidas têm sempre de prevenção no espírito a história de uma perversa sedução, de martírios cruéis, de desespero, de arrependimento sem proveito, de desejo de morte, e de exemplar dedicação; suas virtudes raras, e seus sentimentos sublimes, brilhariam sem dúvida com o mais vivo fulgor se achassem maridos que as regenerassem reservando-se elas entretanto o direito de serem no futuro e depois de casadas dignas do seu ignominioso passado.
A reflexão também me diz que a mocidade inexperiente e generosa tem na sua inexperiência e generosidade uma espécie de luneta mágica com a visão do bem, que faz tomar a nuvem por Juno, e acreditar facilmente em tudo quanto lhe cantam aquelas pérfidas sereias.
A razão enfim me está clamando, que o verdadeiro arrependimento exclui a idéia da persistência no pecado, e que a prática do vício em nome do desespero, da embriaguez, em nome do desejo da morte, e do esquecimento da infâmia no sono do álcool são pretextos rudes, sofismas repugnantes das mulheres depravadas.
Se é assim realmente a visão do bem, isto é, o modo de ver e de aceitar as coisas, de apreciar os fatos, e de julgar os homens, o homem e a mulher sempre pelo lado bom, sempre pelas regras da desculpa, do perdão, do bem, do otimismo na humanidade, é um grande e enorme perigo tão fatal em suas conseqüências, como a visão do mal que é o extremo oposto.
Estas considerações começavam a perturbar-me, a incomodar-me; eu porem não podia, sem ofender a minha consciência, negar-me a confessar, a reconhecer, a proclamar o que tinha visto pela visão do bem, contemplando a Esmeralda com a minha luneta mágica por mais de três minutos.
Evidentemente eu seria indigno, malvado, se não declarasse, se não estivesse pronto a declarar a todos, e à face do mundo, que a Esmeralda é uma pobre mártir, manchada em sua vida; mas santa pelo sentimento, anjo pelo coração.
Portanto a visão do bem fazia-me adorar a Esmeralda, como eu adorava a prima Anica, e hesitar sobre a escolha, sobre a preferência entre uma senhora honesta e para, e uma mulher perdida e petulante.
A razão fria lutava com o sentimento em fogo, a reflexão com a generosidade, o juízo com o coração.
Muitas vezes eu tinha vergonha dessa minha hesitação entre a pureza e o último aviltamento...
Mas hesitava sempre...
A luta era um tormento, e a visão do bem começava pois a me fazer mal.