A Luneta Mágica/IV/X
Mostrei-me pensativo e menos alegre ao almoço; Anica reparou nisso, e perguntou-me docemente qual podia ser a causa da minha melancolia.
Disse-lhe que tinha dormido mal, porque levara toda a noite a sonhar com ela; a resposta a fez sorrir, e livrou-me de mais explicações.
Nada é mais agradável à mulher do que o culto, e a turificação à sua vaidade.
Logo depois sai para visitar o meu amigo Reis, e dar-lhe conta da força, e do poder maravilhoso da minha luneta mágica.
Uma vez por todas fica declarado que o público da capital, como os meus parentes o tinham feito, deixou-me com a mais completa e absoluta tolerância ou indiferença no gozo pacífico e pleno da minha nova luneta mágica, conforme o armênio o havia garantido.
Ao chegar à casa do meu amigo Reis, um homem, que com ele conversava no armazém, voltou imediatamente as costas ao ver-me entrar, dizendo-lhe em voz baixa algumas palavras.
O Reis veio logo receber-me com a sua habitual e natural amabilidade.
Sem que rogado me fizesse, confiei ao excelente amigo tudo quanto se passara no dia antecedente em relação à minha nova luneta mágica.
— E não haverá nisso ainda muita influência de imaginação? perguntou-me o Reis sorrindo-se.
— Sempre incrédulo! respondi-lhe eu; não há meio de convencer a um homem que não quer ser convencido.
— Lembra-se da visão do mal?
— Muito.
— Que me diz dessa visão agora?
— Que era caluniadora e perversa.
— E por que não será traidora e falsa a visão do bem?
— Suponhamos que o seja; ainda assim a magia de que duvida é uma realidade, embora seja maléfica.
— Proponho-lhe uma experiência...
— Aceito-a.
— Vê aquele homem que nos dá as costas?
— Vejo-o
— Vou esconder-lhe o rosto com um lenço e o senhor que já o julgou pela visão do mal o julgará pela visão do bem e me dirá quem é ele.
— Estou pronto: não sei se poderei dizer quem ele seja, porque ignoro se a luneta mágica estende a tanto o seu poder; mas tenho a certeza de ver, de apreciar e de patentear o seu caráter, e as suas qualidades boas ou más.
— Experimentemos pois, disse o Reis.
E logo foi cobrir com um lenço de seda roxo o rosto do seu amigo ou freguês, que assim perfeitamente seguro de não ser conhecido, voltou-se para mim, e ficou firme, como se fosse uma estátua.
A um lado entre mim e o desconhecido o Reis nos observava risonho.
Fixei a minha luneta, e principei logo a falar, descrevendo o que via.
— Rosto comprido, magro, um pouco moreno, cabelos que começam a esbranquecer... este homem tem mais de cinqüenta anos de idade . . .
E seguidamente fiz o retrato do desconhecido.
O Reis ouvia-me admirado.
No fim de três minutos de observação senti que a visão do bem abria ao meu olhar a alma do desconhecido:
— Mal julgado por alguns; mas nobilíssimo caráter! este homem é procurador de causas no foro, e muitas vezes sacrifica seus interesses pessoais, servindo a ambos os litigantes contrários no empenho da conciliação e da harmonia; com o seu trabalho honrado e sábia economia tem adquirido alguma riqueza, e sabe acudir às circunstâncias difíceis dos seus amigos, emprestando-lhes dinheiro a juros; os velhacos o chamam por isso usurário; em seu lar doméstico pede à esposa e à filha diligencia, zelo e labor para fundamento da segurança do futuro; ele trabalha, a mulher trabalha, a filha trabalha, e a riqueza da família aumenta, e com o trabalho a moralidade do lar doméstico aprofunda raízes. E um homem útil à sociedade; severo em seus costumes, austero na educação da filha, na direção da esposa, no governo da casa, é um modelo de chefe de família, um exemplar, que por muitos pais e maridos deve ser copiado. Este homem chama-se . . . ah! . . .
— Que é isto? perguntou-me o Reis, notando a minha súbita surpresa.
Este homem chama-se Nunes... perdão meu velho e bom amigo! exclamei avançando dois passos para ele; perdão!... A visão do mal me tinha pintado o senhor com horríveis cores! perdão! perdoe-me! a calúnia não foi minha, foi da visão do mal que era aleivosa e malvada!
Vendo-se reconhecido, o velho Nunes tirou o lenço que lhe cobria o rosto, e deu-me apertado abraço.
— Perdoa-me? perguntei-lhe.
— Com uma condição...
— Qual?
— Há de remir a sua dívida: hoje mesmo juntará comigo.
— Com o maior prazer.
— Então também me perdoa? perguntou-me o velho Nunes por sua vez.
— O que, meu amigo?
— O mal que involuntariamente lhe causei; confesso que confiei a algumas pessoas o segredo da sua primeira luneta mágica; mas não fui eu quem inventou as falsidades que o comprometeram na opinião do povo.
— Tudo isso está passado...
— Ainda bem!
— Amigo Reis, eu quero agradecer ao armênio...
— Vou chamá-lo já, ou antes, venham comigo.
Seguimos o Reis, e quando chegávamos à porta do misterioso gabinete, esta se abriu, e o armênio apareceu, como se nos estivesse esperando.
— Para que me incomoda? disse-me ele rudemente; o dia em que precisará de mim, não chegou ainda. Deixe-me, vá gozar a visão do bem.
E trancou-nos a porta.
O velho Nunes observou, sorrindo:
— Positivamente a magia não tem escola de boa educação.
— Não, disse eu com tristeza: o armênio está ressentido da minha desobediência; ele tinha-me aconselhado que me abstivesse da visão do bem.
— Enganas-te, criança! respondeu de dentro do gabinete a voz do mágico: o que aconteceu devia acontecer.