A Luneta Mágica/IV/XVI
Um jovem da minha idade, grande coração, e alma cândida, Damião chama-se ele, excelente amigo, com quem me relacionei na casa de Esmeralda, levou-me anteontem por curiosidade minha, e a despeito das suas judiciosas observações, a uma casa, onde jogam o lansquenê três vezes por semana cavalheiros da mais fina educação.
O dono da casa é casado com uma senhora amabilíssima que toca piano como Hertz, e tem uma cunhada na primavera dos anos, que possui surpreendente voz de contralto, canta como a Stoltz, e é faceira, e linda; o seu nome é Hermínia, e não posso esquecê-lo mais; porque ela é a trigésima quarta senhora, por quem me sinto perdido de amor, e que me tributa igual sentimento.
Ninguém me censure por este muçulmanismo de amor platônico: sou escravo da visão do bem e amo sem querer amar.
Aproveitei duas horas deliciosas ouvindo tocar e cantar; todos porém jogavam, Damião mo fez notar, aconselhando-me que saísse ou jogasse.
Compreendi que o dever da cortesia me ordenava entrar no jogo.
Joguei pois e ganhei a principio; mas em breve a fortuna mudou e perdi não só quanto ganhara, como todo dinheiro que na carteira levava.
Consolei-me do prejuízo, observando que o meu amigo Damião fora de todos o que mais lucrara com as minhas perdas, que se elevaram a quinhentos mil-réis.
Quando não tive mais dinheiro para perder, deixei o jogo, e como as senhoras já se haviam recolhido, sai, e saiu comigo um outro jogador infeliz, que deixara aos carteadores do lansquenê o duplo do que me custara a minha curiosidade.
— São gatunos, arranjadores de maço, são refinados ladrões! disse-me ele.
— Para que tal suspeita? respondi; queixemo-nos da fortuna adversa; eu observei e estudei com escrupuloso cuidado todos aqueles jogadores, e posso assegurar que são homens honrados, e que jogaram com exemplar lisura, e nem o meu amigo Damião seria capaz de trazer-me a uma casa que não fosse muito moralizada e honesta.
— Damião?!!! ora é boa! esse é conhecido como trapaceiro e gatuno de profissão.
Coraram-me as faces, e irritado perguntei:
— Em tal caso como se explica a sua condescendência, jogando com semelhante homem?
— Tem razão, tornou-me ele; tem mil vezes razão; mas eles sabem atrair e endoidecer os mancebos inexperientes, como nós, com a paixão do jogo que é fatal, e com os belos olhos dessas duas sereias, que uma toca, outra canta, e ambas servem ao vício.
— Que está dizendo? que calúnia!... duas senhoras pudicas, recatadas! . . .
O meu companheiro de infelicidade ao jogo desatou estrepitosa gargalhada, e depois exclamou sem baixar a voz:
— O senhor é ainda mais simples do que eu! Tenha cuidado...
— A esposa, e a cunhada...
— Não há esposa, nem cunhada, fique-o sabendo, e não torne mais a esta casa maldita. Essas duas mulheres são também cartas do jogo aladroado, são damas dos baralhos do lansquenê, e ganham sua quota ou porcentagem do barato que rende o jogo em cada noite, além dos lucros das conquistas que fazem, namorando os tolos como eu.
E assim dizendo, o jogador infeliz retirou-se apressado.
Eu também encaminhei-me para a minha casa, meditando sobre a injustiça dos homens.
Aquele jogador irritado pelos prejuízos que tivera, não hesitara em caluniar os perclaríssimos cavalheiros com quem acabava de jogar, e duas jovens senhoras, tipos de delicadeza, de fina educação, e de virtudes sem mancha, conforme eu a vi, amei, e adorei pela visão do bem.
No jogo alguém havia de perder, e alguém havia de ganhar.
Chamar ladrão e gatuno, a quem ganha no jogo, é desconhecer as condições, a fortuna, as eventualidades do jogo.
Deste modo e com juízos tais não há inocência, nem probidade, que escape aos aleives do jogador infeliz.
Ainda bem que eu perdi. Estou livre de qualquer suspeita injuriosa, e nunca mais em minha vida tornarei a jogar.
Mas o que em suma, e em caso algum admito é que os botes da calúnia cheguem até os anjos.
Hermínia e sua irmã são duas flores, principalmente Hermínia e uma flor, um botão de rosa do paraíso.