A Luneta Mágica/IV/XVII
Ontem achei a prima Anica pensativa e triste; à mesa do almoço olhava-me melancólica, e como que levemente ressentida do meu proceder; por duas vezes pareceram-me os seus olhos nadando em mal contidas lágrimas.
Sai de casa magoado, triste, e convencido de que eu era cruel, que não sabia apreciar o merecimento de Anica.
Compreendi que me era preciso consolá-la: é tão fácil consolar a pobre donzela que ama! Basta um sinal que dê testemunho de lembrança, uma flor que indique amoroso sentimento.
Eu tenho os meus direitos de primo e de convivência de família resolvi-me pois a levar nesse mesmo dia a Anica um mimo delicado e agradável à inocente vaidade de seu sexo.
Impelido por essa idéia dirigi-me à Rua do Ouvidor, e empreguei quatro horas nas casas de joalheiros e de modas a procurar debalde uma jóia ou um enfeite de bom gosto para levar de presente a minha querida prima.
Procurei debalde! Não que deixasse de encontrar algum objeto que me agradasse; mas porque todos quantos vi e examinei com a luneta mágica me agradaram tanto, me pareceram tão igualmente bonitos e mimosos que não me foi possível determinar a preferência.
Ninguém pode conceber que extravagante, pueril, ridícula, mas indeclinável e imperiosa luta se travou em meu espírito! A princípio cheguei a rir-me de mim mesmo, depois irritei-me e por fim desesperei! Se me decidia a comprar uma pulseira, a lembrança de uns brincos que antes examinara destruía-me a decisão; se um cinto com primorosa fivela estava quase a passar para as minhas mãos, a imagem de um faceiro relógio fazia recuar o cinto; entre uma linda caixinha guarda-jóias e um formoso álbum de retratos eu vacilava, como sobre tudo mais e nada decidia, e nada decidi! em uma palavra, quis e não pude preferir, quis e não pude comprar objeto algum! . . .
Senti-me ridículo, escravo inexplicável, inconcebível da irresolução mais insensata; a minha razão me aconselhava comprar qualquer daqueles objetos que me haviam parecido igualmente bonitos; mas que querem?... não sei explicar o fenômeno; mas foi-me impossível escolher um entre todos, porque a escolha dependia de preferência.
Reconheci então e pela primeira vez que eu era o ludibrio da visão do bem.
Voltei para casa aflito, e aborrecido de mim próprio; porque não pudera trazer um mimo para a prima Anica.
Recolhi-me ao meu quarto e refletindo sobre o que se passara comigo nos últimos dias, experimentei pungente dor; porque comecei a arrecear-me das conseqüências da visão do bem, e a nutrir algumas apreensões sobre o estado das minhas faculdades mentais.
Oh! não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a sabedoria do armênio.
O armênio me avisou e não mentiu.
A visão do bem pode fazer mal.