A Luneta Mágica/IV/XXIV
A borrasca ribombava sempre e incessante na sala e eu era de continuo fulminado pelos raios de três cóleras em delírio: doestos, injúrias, aleives, pragas, insultuoso ridículo, tudo me lançavam com furor. Três ódios a falar não falariam mais venenosamente, três línguas-punhais a ferir não feririam mais profundamente.
O meu ressentimento dissipou o medo que me abatera o espírito; veio-me a vontade de examinar esses três semblantes desfigurados pelos sentimentos mais vis.
Fixei a minha luneta mágica, olhei pela abertura que deixara a chave caída da fechadura, e estudei os meus odientos parentes: apreciei primeiro olhos e faces que se abrasavam no fogo da ira, lábios convulsos, gesticulações ameaçadoras, e logo depois que pureza de intenções e que santidade de desígnios!... Meu irmão, minha tia, e a prima Anica, se mostraram tais quais realmente são, três querubins, então radiantes de fogo não de cólera, mas de verdadeiro amor, de sublime interesse por mim!... Estavam aflitíssimos e em dolorosa agitação; porque me supunham perdido no erro, e ludibrio de malandrins. O erro era dos meus três parentes e meu o acerto; mas as intenções deles indisputavelmente eram nobres, leais, desinteressadas, angélicas.
No meio porém dessas intenções veneráveis descobri firme e inabalável no animo de meu irmão a de quebrar a minha luneta mágica, e embora eu reconhecesse e reconheça a piedade dessa intenção, não pude com ela conformar-me; abençoei meu irmão, minha tia, e a prima Anica; mas tomei a peito salvar a todo transe a minha luneta mágica.
Eu estava vestido decentemente para sair à rua, só me faltava chapéu para a cabeça e porta franca para a retirada.
Com o auxilio da luneta achei no gabinete um chapéu do mano Américo, que me servia muito nas circunstâncias em que me achava, embora estivesse um pouco usado.
Faltava-me a porta para saída sem oposição; mas o gabinete abria uma janela para rua; o caso era grave e exigente; não havia recurso, e havia risco na demora da resolução; há tanta gente que de dia claro e com sol fora se presta a entrar pelas janelas em vez de entrar pelas portas, que não me pareceu anormal nem escandaloso no Brasil sair por onde se entra de ordinário para as mais altas posições do Estado.
Assim pois subi à janela do gabinete, e saltei na rua; ouvi gargalhadas, e não dei atenção a elas; apressei os passos, quase que corri, enfim afastei-me apressado da casa da minha família, como um preso, que se escapa e foge da cadeia.