A Menina do Narizinho Arrebitado/III
NO PALACIO REAL
DE volta ao palacio real teve a menina occasião de visitar numerosas salas, lindamente enfeitadas com avencas, samambaias e musgos de todas as cores. Viu tambem a bibliotheca, cheia de livros onde os sabios escreveram toda a historia do reino. E lá estava, ainda, folheando-os, um por um, quando um grillo recadeiro veiu chamal-a para o jantar. Foi, sentou-se á mesa ao lado do principe, e muito admirou o bom gosto com que tudo estava arrumado.
— Artes das senhoras saúvas, disse Escamado. São ellas que colhem as florinhas do campo e enfeitam estes vasos.
Os pratos eram lindas conchas côr de rosa, e as terrinhas, busios de brilhante esmalte. Grillos verdes serviam de criados e traziam da cozinha os pratos em que um caranguejo gordo, de avental branco e gorra, ia dando os ultimos retoques. Veiu uma deliciosa sopa de barbas de camarão, e, depois, lombo de marisco, filé de cigarra, entrecosto de mãe-d-'agua, omelete de ovos de tainha. Para a sobremesa trouxeram mel de jity em petalas de magnolia, e mil outras preciosidades.
Emquanto jantavam, uma excellente orchestra de cigarras, piuns e pernilongos, afinadissimos, executava lindas musicas compostas pelo maestro Sabiá-do-campo. Vieram depois os dançarinos tangarás e dançaram graciosos bailados.
Em seguida appareceu um papagaio real que tinha fama de orador. Subiu á tribuna de um poleiro de ouro e fez um bello discurso a respeito da arte de falar. Nesse discurso provou que os homens tinham aprendido a falar com os papagaios, e não os papagaios com os homens, como diz a sciencia destes. Uma chuva de palmas acolheu suas palavras.
O mesmo não aconteceu, porem, com a poetiza Lagartixa, que principiou a recitar uma longa poesia e engasgou no meio, acabando o recitativo em chôro e faniquito. Para destruir essa má impressão vieram tres vagalumes magicos que fizeram varias sortes, sendo muito apreciada a sorte de comer fogo.
Narizinho, encantada, batia palmas a cada novidade e ria-se muito das graças e micagens que o bôbo da côrte fazia. Este bôbo era o caruncho Carlito Pirolito, um corcudinha pegado dentro dum caroço de milho e criado pelo principe para divertir a côrte. Durante o jantar sentou-se ao lado de Narizinho e não parou de fazer diabruras e molecagens o tempo todo. E assim correu a alegre refeição, deixando no espirito da menina recordações inesqueciveis.
Logo que saiu da mesa recolheu-se Narizinho ao quarto afim de preparar-se para o baile da noite. Para servil-a encontrou lá Dona Aranha, a melhor costureira do reino, e tambem varias mucamas formigas. Dona Aranha adeantou-se e disse respeitosamente:
— Quer a menina examinar nossa collecção de vestidos de baile?
— Com muito gosto, respondeu Narizinho, encantada.
As formigas, incontinenti, abriram os guarda-roupas, delles retirando uma porção de vestidos luxuosos, cada qual mais lindo. Um era feito de céo azul todo enfeitado de estrellinhas. Outro, de petalas de rosa com entremeio de myosotis. O que mais encantou Narizinho, porem, foi um vestido de cauda, feito de teia de aranha e enfeitado com diamantezinhos de orvalho.
Não podia haver coisa mais linda e Narizinho bateu palmas de alegria, deixando a aranha toda cheia de si porque esse vestido era inteirinho obra della; ella mesma fabricára o fio, tecera a gaze e ella mesma o cosera.
— Vejo que a menina tem muito bom gosto! disse a aranha lisonjeada. E, linda como é, si fôr com elle á festa, certamente que será a rainha da noite.
E poz-se a vestil-a, deante
de um espelho de prata. Penteou-lhe o cabello á moda do reino, calçou-lhe nos pés lindos escarpins de ouro e, nas mãos, luvas fabricadas com pellica de pecego. Deu-lhe depois um maravilhoso leque bordado a raios de sol sobre asas de mãe-d'-agua.
Narizinho não cabia em si de gosto e mirando-se, ao espelho, duvidava dos proprios olhos:
— Serei eu mesma uma fada das Mil e Uma Noites?
Quando julgou que já estivesse prompta veiu a Aranha com varios cofres cheios de diademas, collares, anneis e braceletes capazes de dar inveja ás mais opulentas princezas do mundo.
Narizinho escolheu as mais lindas e assim recamada de ouro e brilhantes ficou a scintillar como um sol.
— Está "quasi" prompta, disse a Aranha.
— Quasi? disse Narizinho, sorrindo. Pois falta ainda alguma cousa?
A aranha respondeu mandando vir escrinios com pó das asas das mais raras borboletas e polvilhou-a inteira de azul furta-côr. Que maravilha! O proprio espelho chegou a abrir a bocca, espantado de tanta formosura.
Subitamente a porta abriu-se e appareceu o principe.
— Senhora, disse elle, a côrte reunida no grande salão aguarda anciosa a rainha da festa. Vinde!
E, dando-lhe a mão, conduziu-a com grande cerimonia ao baile.
Mal Narizinho entrou, pela sala real correu um murmurio de admiração, muito explicavel, visto como jamais apparecera em Aguas Claras creatura assim tão deslumbrante. E começaram a cochichar que com certeza era a propria Fada dos Rios que se encarnára na menina. Algumas damas chegaram a morder os labios de inveja quando Narizinho passou á frente dellas, pelo braço do principe, em direcção ao throno. E uma feia barata descascada, amarella de inveja, murmurou ao ouvido de uma besoura de pernas cambaias, torcendo o nariz:
— Nem porisso!...
Mas um gentil grillinho verde que estava atrás ouviu o desabafo da invejosa
e castigou-a, ferrando-lhe uma terrivel dentada na perna secca. A barata gemeu de dôr mas aproveitou a lição, ficando bem caladinha o resto da noite.
A sala estava que era um céo aberto. Em vez de lampadas havia no tecto, pelas paredes e pelos vasos, formosos buquês de raios de sol colhidos pela manhã. Flores em quantidade, lindas flores do campo, arrumadas em festões pelas senhoras abelhas. Em redor da sala, sentada em cadeirinhas de madreperola, a nobreza da côrte, em trajes de gala, esperava as ordens do principe.
A orchestra era composta de cigarras e passarinhos miúdos: canarios, pintasilgos, papacapins, corruiras, viuvinhas. A' frente della estava, de batuta no bico, um sabiá-do-campo, maestro de fama. Essa orchestra executou as musicas mais lindas do mundo, fados de rouxinol, canções de patativa, barcarolas de Martim-pescador. Uma lindeza!...
Afinal o principe deu ordem para a quadrilha. A orchestra rompeu uma composição do maestro Colleirinha e os cavalheiros principiaram a tirar as damas. Quem marcava era um faceiro tangará, famoso mestre sala da côrte. Narizinho, sentada no throno, estava doidinha por dançar. Mas a quadrilha passou-se e ninguem veiu tiral-a. Logo depois, entretanto, a orchestra rompeu a Valsa Real e o principe, levantando-se, disse á menina:
— É chegada a nossa vez. Quer dar-me a honra desta valsa?
Narizinho, que não queria outra cousa, desceu do throno e nos braços do principe rodopiou pela sala em gyros tão velozes que mais parecia em pião vivo. O kagado vendo aquillo cochichou para o caramujo: Si aquelle foguetinho te tirasse para dançar, que seria de ti, compadre?
Respondeu o caramujo:
— Talvez me sahisse melhor do que um cascudo da tua marca! E cada um riu-se por dentro da triste figura que faria o outro, porque no reino dos animaes, bem como entre os homens, ninguem se conhece.
Terminada a valsa Narizinho voltou para o throno e assistiu a uma polka dançada por um caranguejo e uma tatorana vermelha, muito gorda, de grande faixa de gorgão na cintura.
Apesar do respeito devido ao principe, a côrte riu-se a mais não poder, e Narizinho chegou a perder o folego. Porque não havia nada mais comico do que o senhor caranguejo a pular passos de polka nos braços da senhora tatorana, que suava em bicas numa grande afobação. Quando a musica parou, a dama nem suster-se em pé podia, de tão cançada, e foi preciso carregarem-na a braços e entregal-a aos cuidados do doutor Caramujo. Depois desse comico incidente, surgiram na sala bailarinas libelinhas. Uma azul, outra vermelha, outra verde esmeralda, todas muito leves-e nervosas, começaram a bailar, treme-tremendo as lindas asas transparentes. Tão vivos e rapidos eram seus movimentos que aquillo mais parecia um bailado de raios de luz vivamente coloridos.
Foi um deslumbramento. E estavam todos no maior encanto, suspensos no ar pela admiração, quando se ouviu barulho d'uma correria em frente do palacio.
Eram os grillos da guarda que entravam espavoridos e pallidos de terror.
— O escorpião negro! annunciaram elles, arregalando os olhos.
— O escorpião!... repetiram aterrorisados os convivas.
Foi o mesmo que annunciar a peste. As damas nervosas cairam para trás, desmaiadas; outras treparam em cima das cadeiras, gritando de pavor. A tatorana, com ataque de nervos, tombou desacordada nos braços do Caranguejo. O kagado fechou-se dentro da casca. Os caramujos encolheram-se dentro das conchas. E bichinho de asa não ficou nenhum que não voasse para o tecto.
Era tempo. O horrendo Escorpião Negro assomou á porta, do palacio, de ferrão arreganhado. Parou. Bufou de colera e correu pela sala um olhar de desafio.
— Quem é essa pequena humana que ousa penetrar no reino dos animaes? disse elle trincando os ferrões.
Depois, vendo Narizinho de pé no espaldar do throno, pallida de espanto e muito atrapalhada com o seu vestido de cauda, arreganhou um sorriso feroz, marcou-a bem e investiu contra ella.
Um grito de horror encheu a sala, e todos os olhos fecharam para não ver a catastrophe. O Escorpião Negro avança, gingando o corpo. Está já a um metro da menina. Um passo mais e a alcançará com o seu venenoso ferrão.
Narizinho, desvairada, olha para o principe, implorando soccorro. Era sua ultima esperança.
Escamado não vacilla um momento: arranca da espada e atira-se contra o monstro. Trava-se um medonho duello. A fera lança successivos botes de ferrão mas o principe apara-os com a espada, e depois de muitos golpes consegue acutilar a cabeça do inimigo. O Escorpião solta um berro de dôr e investe com redobrada furia.
Todos tremem pelo principe que corre sério perigo pela desigualdade das suas forças com as de um monstro daquelle porte. Mas o principe defende-se com heroismo, arremessando golpes sobre golpes á cabeça do Escorpião, embora já se sentisse cançado. E a lucta terminaria de um modo tragico si um facto assombroso não viesse mudar a situação . E foi que no melhor da batalha surgiu inesperadamente da cozinha uma bruxa de panno, armada de um espeto de assar lombo de porco.
— Emilia!... gritou Narizinho, que desde o caso do sapo, no dia da chegada, esquecera completamente a sua querida boneca.
Emilia, em fraldas de camisa, avançou para o Escorpião e zás! zás! fura-lhe os dois olhos num relance. O monstro dá tamanho urro que o palacio estremece, e depois rebola-se no chão espumando de colera e dôr. Hurrah! Estava ganha a batalha, graças ao espeto da estranha creatura em fraldas de camisa.
— Quem é? quem é? interrogavam de todos os lados os bichinhos numa grande curiosidade de saber quem era a exotica heroina. Narizinho saltou do throno e veiu para ella de braços abertos.
— Perdôa, boa Emilia, ter-me esquecido de ti ! Mas deixa estar que pedirei ao principe que te faça condessa desta côrte — e abraçou-a, chorando. Em seguida dirigiu-se ao principe e beijou-lhe as mãos em agradecimento por haver arriscado a sua preciosa vida por amor della. Foi uma scena commovente. Mas, apesar da gravidade do momento, a barata invejosa espiou si o grillinho verde não estava perto e disse ao ouvido da besoura:
— Vae ver que isto ainda acaba em casamento...
E suspirou. Coitada! Eram ciumes. Apesar de velha e feia essa barata solteirona não perdera nunca a esperança de casar com o principe. A coróca não se enxergava...
A festa parou ahi. Os convidados recolheram-se ás suas casas, inda assustados, emquanto cincoenta saúvas possantes arrastavam o Escorpião para fóra. Bem que esperneou elle, mas lá foi parar num carcere de pedra, com uma corrente de ferro no pescoço!...
— Bufa agora, ladrão! disse um grillo da guarda fincando-lhe um valente ponta pé no focinho.
— Alto lá! gritou o Capitão. É prova de covardia bater nos inimigos que não podem defender-se. E mandou fechar a entrada do carcere com uma pedra pesada para evitar que o povo lynchasse o prisioneiro.