A Menina do Narizinho Arrebitado/IV

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DEPOIS DA FESTA


NO dia seguinte Narizinho e Emilia levantaram-se tarde e almoçaram na cama servidas por criadas abelhas, muito galantes em suas toucas entiotadas. Estavam ainda nervosas do grande susto na vespera. O doutor Caramujo receitou-lhes Biotonico, recommendando passeios pelo campo. Narizinho, depois de tomar o remedio, saiu em companhia de Dona Aranha e passeou durante uma bôa hora pelos jardins do palacio, emquanto as saúvas experimentavam vestidos em Emilia. A menina pediu noticias do principe. Disseram-lhe que tinha sahido de viagem para as fronteiras afim de organizar a defesa contra a invasão de outros monstros. Narizinho suspirou de saudades e disse:

— Vou confessar-te, amiga aranha, o meu grande segredo. Desde hontem que me sinto apaixonada pelo principe... Disse e corou. A Aranha sorriu-se e respondeu:

— E elle muito merece o amor da menina, porque não existe no mundo inteiro principe mais valoroso. Meu desejo é que se casem porque do contrario o principe é capaz de engraçar-se d'alguma barata e o reino soffreria a vergonha de ser governado por uma rainha que volta e meia perde a casca...

E assim, conversando, caminhava as duas pelas alamedas muito limpinhas e bem arrumadas do jardim. Todas as manhãs as formigas corriam o parque inteiro catando todos os cisquinhos, aparando os gramados e deixando tudo que era um primor. Havia um lago á beira do qual pararam, mirando-se no espelho liquido. Estavam pensativas ambas: Narizinho com saudades do principe e a Aranha com saudades das sessenta filhas papadas por mestre sapo. Nisto ouviram um gemido a certa distancia. Approximaram-se. Era mestre Agarra que alli gemia com uma barriga enorme estufada de pedrinhas.

— Ai de mim, chorava elle, que não posso nem andar!... Menina

dos cabellos de ouro, tenha dó deste pobre sapo e peça ao principe que me perdôe!...

Narizinho tinha bom coração e, compadecida da miseria do infeliz animal, prometteu intervir em seu favor.

— Veja, disse ella á Aranha, este coitado está pagando o crime de ser dorminhoco. Foi castigado só porque não poude resistir no somno...

— É bem feito, respondeu a aranha. Quem o mandou comer as minhas sessenta filhas?

— Então, disse Narizinho, aqui neste reino, um pilhando o outro de geito é zás, para o papo?

— Isso mesmo, minha filha, tal qual entre os homens, que são uns urubús comedores de carne de cadaveres.

Narizinho espantou-se muito com a idéa que os bichos faziam dos homens e quiz desmentir a aranha. Mas não poude porque a aranha a interrompeu dizendo:

— São urubús, sim, e comem cadaveres de animaes. Já tive minha teia num açougue da cidade e todas as noites via chegar um carroção cheio de cadaveres de bois, carneiros e porcos esfolados, que um homem, chamado açougueiro, todo sujo de sangue, vendia aos pedacinhos ás criadas de cesta.

Narizinho calou-se porque era bem verdade aquillo...

Nisto soaram tambores e clarins ao longe. Era o principe que voltava á frente duma guarda de grillos. O coração de Narizinho bateu apressado.

— Salve! disse o principe logo que viu a menina. Salve a senhora do meu coração!

— Si sou a senhora do teu coração, respondeu ella, quero pedir-te uma graça...

— Ordene que será obedecida, disse o principe.

— Quero o perdão do mestre Agarra, declarou Narizinho, que alli está gemendo com as cincoenta pedras na barriga.

O principe concedeu a graça pedida e ordenou que chamassem o doutor Caramujo para extrahir as pedras. Veiu o doutor co a sua maleta de cirurgião. Examinou o sapo empanturrado, apalpou, ergueu os oculos para a testa e disse:

— E preciso abrir-lhe uma "casa" na barriga.

— Pois abra, ordenou o principe.

O doutor Caramujo arregaçou as mandas, pôz o avental e, ajudado por varias formigas, deu começo á operação. O sapo foi posto de costas, com a barriga para o ar, e as saúvas, com os afiados ferrões, abriram nella um córte. Depois entraram pela abertura a dentro e foram tirando uma por uma as cincoenta pedrinhas do castigo. Quando saiu a ultima, mestre Agarra deu um grande suspiro de allivio. Reunidas as pedras e feita lá dentro uma limpeza, o medico tratou de costurar o córte. Para isso uniu as beiradas da "casa" e mandou que as formigas ferrassem alli o ferrão, de modo que cada ferrotoada era um ponto. E assim deu trez pontos, ficando trez formigas agarradas á barriga do sapo. Depois o medico tomou uma tesoura e foi guilhotinando as formigas, de geito que só ficassem na pelle do sapo as cabeças das coitadas.

Mestre Agarra agradeceu ao doutor o serviço e, afim de não perder tempo, foi chamando para o papo os corpos das tres formigas degoladas que esperneavam no chão. Era um grande pandego, este mestre Agarra!

Terminada aquella curiosa operação, Narizinho continuou o seu passeio com Dona Aranha, recolhendo-se mais tarde muito satisfeita comsigo por ter salvado a vida de uma pobre creatura de Deos, condemnada a um supplicio doloroso pelo simples facto de ser dorminhoco.

— Amiga aranha, disse ella, o principe perdoou ao pobre sapo. Perdoas tambem?

— Nunca! respondeu a aranha. Não posso esquecer dos meus filhos...