A Morgadinha dos Canaviais/XII

Wikisource, a biblioteca livre

XII


O conselheiro levou a sua attrahente amabilidade até se sentar nos bancos de pinho do estabelecimento de Damião Canada, envernizados já pelo uso de muitos annos.

Entre os circumstantes era qual maïs o cumprimentava e opprimia com attenções e o flagellava com obsequios.

O conselheiro revestira-se, com muito estudo, de uma physionomia satisfeita e sem sombras de reserva; tratando a todos por amigos, e conversando com aquella familiaridade, tão sabida de candidatos a procuradores do povo, nos círculos que pretendem representar. Até chegou a levar aos labios o copo de vinho, que um lavrador lhe offereceu.

Não se lhe percebia porém no rosto, ao fazer isto, o menor vestigio de artificio, e, ao mesmo tempo, mantinha-se ainda n’elle tão apparente a superioridade intellectual, que os seus interlocutores nunca excediam os límites da deferencia. O pae de Magdalena era um perfeito homem de côrte: presença agradavel, modos insinuantes, palavras tão astuciosamente lisonjeiras, que desvaneciam os proprios que como taes as tinham.

Alvejavam-lhe já algumas cãs nos cabellos e suissas, que usava talhadas á moda ingleza; principiava a predominar-lhe nas fórmas certa rotundidade caracteristica; mas no esmero e até elegancia distincta de casquilhice pretenciosa, com que vestia, no porte airoso, nos movimentos ageis, no olhar penetrante como o de poucos, e na viveza das conversas, havia ainda tantos signaes de vigor e de virilidade, que ninguem se sentia obrigado a estranhar-lhe certos hábitos de rapaz, que não perderà ainda.

Em Lisboa passava o conselheiro por ser um homem bemquisto das damas, e não obstante os seus cincoenta e cinco annos, acreditava-se que assim fôsse, où quasi se adivinhava, ao primeiro olhar lançado sobre elle.

Possuia o dom especial de se encontrar á vontade em toda a parte, desde o maïs perfumado gabinete da moda, até o menos asseiado local de um comicio popular. Nas cámaras com graves diplomatas, nos cafés com rapazes estouvados, na sua aldeia com eleitores absurdos, com actores e actrizes nos bastidores, com padres nas sacristías, com militares nos quarteis, em toda a parte e com todos se achava este homem á vontade, acabando, quasi sempre, por captar sympathias.

Podia dizer-se d’elle, que com igual pericia e rara consciencia da opportunidade, jogava todas as armas: o galanteio cortezão, a phrase conceituosa, o equivoco subtil, a anécdota picante, o estribilho popular, a figura oratoria, a maxima moral, e até a praga energicamente expressiva; mas, como os espadachíns de profissão, jogava-as todas com frieza de animo, cada qual na occasião opportuna e com perfeita observancia do que o mundo chama conveniencias sociaes.

Muito tinham que fazer com elle os La Bruyères, que, a cada passo, ahi encontramos no mundo; illudia os maïs atilados. Ás vezes parecia abrir-se tão do intimo, tão completamente e sem condições nem reservas, havia tal uncção de sinceridade nas palavras, com que falava de si, dos seus projectos, dos seus sentimentos, que o maïs desconfiado jesuita sentir-se-ia tentado a acredital-o e nem sempre se enganaria; outras, falava verdade, mas com taes hesitações na voz, com tal mobilidade no olhar, que, ao consideral-o, a maïs ingenua creança experimentaria o despontar da primeira dúvida.

Já se vê que um homem d’estes era um contendor de muita fôrça, para poder ser combatido por qualquer dos influentes locaes; o proprio brazileiro, apesar de toda a sua economia politica, ainda nada pudéra contra elle; nem ousára romper hostilidades com receio de ficar vencido.

Durante os poucos momentos, que o conselheiro se demorou na loja do Damião Canada, soube desvanecer muitas das sombras, que a conversa que precederà a sua chegada havia gerado em alguns espiritos. Très où quatro lisonjas, outras tantas promessas, alguns conselhos modestamente pedidos com fingida ingenuidade, serviram-o perfeitamente.

Deixemol-o nós na laboriosa e pouco invejada tarefa de manter a popularidade, e vamos seguir Angelo, que se separou do pae á porta da venda, para chegar maïs depressa ao Mosteiro.

Mettendo a galope o pequeño baio que montava, dirigiu-se para casa com aquelle alvoroço do coração, que conhece quem já foi estudante e se recorda ainda do que experimentava ao vêr de longe despontar o telhado da casa paterna, onde vinha gosar as delicias de umas almejadas férias.

Angelo tinha por este tempo treze para quatorze annos. Era uma agradavel figura de creança, expressiva de intelligencia e de vida. Tinha nas feições um mixto da delicadeza de Magdalena e da energia varonil, e ao mesmo tempo attrahente do conselheiro.

O cabello louro e curto levantava-se-lhe graciosamente em anneis naturaes, com grande vantagem para a espaçosa e bem modelada fronte.

Quando Angelo chegou ao pateo, era quasi noite fechada. As janellas do Mosteiro estavam todas obscuras, á excepção das aguas-furtadas, correspondentes aos quartos das creanças. Angelo desmontou e cautelosamente se dirigiu a pé para casa.

Torquato dormia á porta, como frequentemente lhe acontecia.—­Angelo pôde assim penetrar sem ser percebido até o maïs intimo da casa, até os aposentos onde dormiam as creanças, e em cujas janellas avistára luz.

A scena que viu, ao entrar alli, insinuou-lhe no coração uma suave e encantadora alegría.

O maïs novo dos seus primos, creança de très annos, estava meio nú e de joelhos sobre o leito com as mãos erguidas e os olhos fitos em um crucifixo que tinha á cabeceira. Magdalena, ao lado d’elle, dictava-lhe as palavras da oração, que a creança repetia, cheia de fervor.

Nos quartos proximos palravam, ainda acordados, os maïs velhos, apesar das continuadas advertencias da prima.

Angelo approximou-se sem ruido, e quando a morgadinha se abaixava para beijar a creança, elle estendeu a cabeça e pousou tambem um beijo nas faces da irmã.

Magdalena soltou uma exclamação de surpreza e cingiu-o nos braços com effusão.

A creança levantou um brado, que foi o signal de revolta dado a Marianna e Eduardo, que cêdo abandonaram os quartos e correram a abraçar Angelo.

—­Vens só?—­perguntou Magdalena ao irmão, quando uma pergunta lhe foi possivel.

—­O pae ficou na loja do Canada—­respondeu Angelo.—­Estava em sessão a assembleia dos notaveis. E como estás tu, minha Lena, tu e Christe e a tia? Como vae toda essa gente?

—­Anda tu mesmo sabêl-o.

—­Eu vou dizer á mamã—­disse Marianna, saindo aos saltos.

—­Eu vou chamar Christe—­disse Eduardo, imitando-a.

E sairam ambos, pregoando a chegada do primo.

O pequeño que Magdalena deitára, pedia, chorando, para se tornar a levantar, requerimento que, a rogos de Angelo, foi deferido.

—­Dize-me—­continuava no entretanto este para a irmã—­tens-te enfastiado muito, aquí só?

—­Não, tenho-me divertido até.

—­Devéras? E que fazes? Em que passas o tempo?

—­Eu sei? O tempo é que passa, sem eu dar por isso. Leio pouco, passeio muito; trabalho maïs.

—­Que tens lido?

—­Quasi sempre relido.

—­O quê?

—­Nem eu sei já. O primeiro livro em que pouso a mão, quando os vejo sobre a mesa.

—­O Augusto tem vindo ensinar os pequenos?

—­Todos os dias.

—­E o tío Vicente? Que me dizes d’elle?

—­Vae bom. Caiu no outro dia á levada da raíz do monte; valeu-lhe oAugusto para o salvar.

—­Sim? Pobre homem! Olha n’aquella idade! E a tia Dorothéa?

—­Tem de hospede um sobrinho de Lisboa, um Henrique de Souzellas; conheces?

—­Eu não.

—­É provavel que por ahi venha. A tia Victoria insiste em que lhe chamemos primo. Aviso-te d’isso.

—­Sim? E a tia? Ralha ainda muito com os criados?

—­Coitada! Achei graça, ha dias, á Joanna, que com muita ingenuidade se me veio queixar de que ella até o anjo da guarda lhe occupava em serviço proprio. Tu sabes que a tia, quando está com muito somno, tem aquelle costume de dizer ás criadas que a encommendem ao anjo da guarda d’ellas. Mas vamos.

— Espera... e... e o Cancella trouxe-vos aquellas encommendas?

— Trouxe.

— É verdade; e a filha d’elle? A Lindita?

— Já cá me ia tardando a pergunta — notou a morgadinha, rindo. — Essa anda contente, como quem nada tem a penalisal-a; nem saudades.

— Ora vamos, Lena; não te perdôo a malicia.

— Então devéras esse coração está assim tomado?

— Não te informo do meu coração, que o não levo commigo, quando d’aqui vou. Cá me fica; e uma grande parte d’elle no teu poder. Eu sou que pergunto; em que estado m’o entregas?

— Muito doente.

— Sim? E o teu?

— O meu? Ah! nem eu sei d’elle. Olha; isto decorações são como as creanças. As travêssas tantos cuidados dão ás mães, que a todos os instantes querem saber o que ellas fazem e onde estão; as socegadas inspiram tal confiança, que nem sequer n’ellas se pensa. O meu coração é um modelo de serenidade.

— Então ainda nenhum cavalleiro errante ou trovador...

— O sitio é pouco abundante em heroes. O unico d’estas immediações, capaz de ferir a imaginação e commover os affectos de uma mulher, é o sr. Joãozinhodas Perdizes; mas esse é um Actéon insensivel, que...

— É verdade — disse Angelo, rindo — lá vi tambem esse javali na venda do Damião Canada. Mas...Não sei que pense, Lena. Eu ainda um dia te hei de dizer umas coisas.

— A mim? A respeito de quê?

— Do teu coração.

— Que sabes d’elle?

— A seu tempo direi.

— Como te vieram essas presumpções de conhecedor dos corações alheios? Não tinhas isso, quando d’aqui foste.

— Ás vezes vê-se melhor de longe.

— Os de vista cançada... de muito vêr.

— Bem; depois falaremos. Vamos lá ter com a nossa gente, que o pae não tarda ahi.

De facto, meia hora depois estava a familia toda reunida n’uma das salas principaes da casa. O conselheiro, sentado n’uma cadeira de braços, tinha ao collo Marianna; Christina, a pé, encostava-se-lhe familiarmente ao hombro; a morgadinha, sentada em tamborete baixo, apoiava o braço, em que recostava a cabeça, em um dos joelhos do pae. Do outro lado da sala, D. Victoria, sentada no sofá, servia de travesseiro a um dos pequenos que, apesar de prometter estar acordado, para que o deixassem ficara pé, adormecera. Junto d’este, Angelo fazia frequentemente rir sua tia e Eduardo, com as historias que lhes contava.

A conversa cêdo se generalisou. Era uma d’essas conversas intimas, familiares, em que se referem as mais insignificantes circumstancias da vida domestica; conversas cujo suave perfume só em familia se aprecia.

Pobre do estranho que por acaso se encontra n’um d’esses circulos apertados pelos estreitos laços da amizade e do parentesco, e se vê obrigado a ouvir a minuciosa chronica das occorrencias da casa, que não é a sua! É uma pathetica illusão a de certas familias, que imaginam que para todos é de igual interesse a narração dos successos domesticos, que tanto as deleitam, e com ella entreteem o primeiro indifferente que se lhes depara; tudo trazem á luz, o dicto agudo da creança de tres annos, os incómmodos que soffreu na primeira dentição, as espertezas do gato favorito, as razões ponderosas que aconselharam a mudança de um movel, a combinação economica que favoravelmente modificou o orçamento domestico, a reforma nos processos culinarios consagrados pelo habito de muitos annos, o exame comparativo da conserva de um anno e da do anno antecedente, os defeitos e qualidades de um criado e mil outras pequenas coisas, que é forçoso escutar com ares de quem as acha curiosissimas, o que obriga a esforços sobrehumanos.

É natural aquella illusão; e pathetica a dissemos nós tambem, porque os que mais decoração se entrega má vida domestica, são os mais sujeitos a ella. Todos estes episodios futeis e pueris os preoccupam e deliciam mais do que as mais estranhas peripecias, que ainda concebeu a imaginação de romancista fecundo. E quem se lembra de que é individualissimo esse interesse, inherente á pessoa e não aos factos, ás causas que tão curiosos lh’os fazem ser?

Eu e o leitor, estranhos á familia do Mosteiro, vêr-nos-iamos, se fôssemos escutar todo o dialogo que se travou na sala, na posição da pessoa indifferente que imaginamos a aturar um d’esses relatorios domesticos, a que sobre tudo são tão inclinadas as mães de familia.

É verdade que o conselheiro podia achar curiosa a conversa; e o conselheiro tinha visto e ouvido tanto no mundo, que o que elle achasse curioso é porque realmente o era. D’esta vez, porém, damol-o por suspeito, porque o conselheiro tinha coração e,quando esta viscera se alvoroça com affectos, as intelligencias mais elevadas teem d’estas sympathicas fraquezas.

O politico, o diplomata reservado, fica fóra do portão da quinta do Mosteiro; alli dentro, n’aquelle circulo de affectos, era o pae extremoso, o homem de familia, ingenuo, sincero, aberto a todos, porque em todos confiava, contente por não ter de estudar na expressão dos rostos os pensamentos que seguardam; nas palavras o sentido, que n’ellas não vem explicito.

Era um salutar descanço dos continuados esforços da sua vida de Lisboa; lá a lucta; aqui o repouso.

Por isso ouvia com attenção e applaudia com vontade as narrações da cunhada, de Magdalena, de Christina e até da pequena Marianna.

E apesar de todo este encanto, em que parecia cair, o conselheiro não poderia resignar-se a trocar por elle para sempre o vertiginoso movimento da sua vida politica.

Eram-lhe já necessidade aquella contenção, aquelle esforço de espirito, aquellas desconfianças continuas, aquelle jogo de astucias, que lhe tomavam em Lisboa todo o tempo.

Quinze dias no campo bastavam para o fazerem suspirar por as lides e o afan da capital; nem os affectos da familia o retinham.

A politica é uma embriaguez; nos intervallos em que o espirito se sente desanuviado dos vapores em que ella o envolve, pesam-nos os desacertos a que fomos arrastados; o desgosto do mal feito insinua-se-nos no coração; cêdo, porém, a violencia dos habitos subjuga os remorsos da consciencia, e de novo nos arrasta.

O caracter intimo da conversação foi levemente modificado por a entrada de D. Dorothéa e de Henrique de Souzellas, que de Alvapenha vieram visitaro conselheiro, mal tiveram noticia da sua chegada.

O conselheiro acolheu com jovial cordialidade a senhora de Alvapenha e com delicada franqueza Henrique, que elle conhecia de Lisboa. Frequentavam ambos os principaes círculos da capital e, por mais de uma vez, tinham trocado algumas palavras ou tomado parte em conversas e discussões communs.

Passado algum tempo depois dos cumprimentos, o serão animou-se de novo, fragmentando-se porém a conversação.

D. Victoria tomou á sua parte D. Dorothéa e passou a fazer-lhe amargas queixas a respeito dos criados do Mosteiro, ao que D. Dorothéa acudiu com conselhos de resignação christã.

Angelo conversava com Magdalena e Christina, a quem frequentemente fazia rir.

Henrique e o conselheiro, proximos do fogão, estavam empenhados n’um dialogo muito animado.

O conselheiro parecia estar falando com muita sinceridade e candura que surprehendiam Henrique, que ainda o não tinha observado por esta face.

— É uma triste verdade — dizia por exemplo o conselheiro n’um ponto adeantado da conversa, referindo-se a algumas considerações de Henrique sobre a felicidade d’aquella vida do Mosteiro. — Tenho esta familia que vê; todos me querem sinceramente aqui, e não sei resistir á fatal necessidade que me arranca de todos estes braços para me lançar ao turbilhão da politica e d’isso que se chama o mundo! Pois amo devéras a minha Lena, creia.

— É um dever que cumpre. N’estes tempos de má fé politica, quem se sente com a coragem de se votar, corpo e alma, á defeza despreoccupada dos bons principios...

Nos labios do pae de Magdalena passou um ligeiro sorriso, meio de descrença, meio de melancolia.

— Defeza despreoccupada? Isso é quando Deus quer — respondeu elle. — Olhe, Henrique, visto que me veio encontrar em minha casa, a cuja porta eu deixo, ao entrar, todas as mascaras e artificios, de que uso no mundo, vae vêr em mim o homem que talvez não esperasse e que, já lhe digo, debalde procurará reconhecer um dia, se me observar outra vez em Lisboa. O que lhe vou dizer não lh’o diria, nem lh’o repetirei lá. É verdade que estes ares do campo tambem actuarão em si para me apreciar e tomar á boa parte a franqueza. Lá não acreditaria n’ella; se por acaso não a aproveitasse como arma politica contra mim...

— Pois julga?...

— Peço perdão, se o offendi com isto. Não eraesse o meu intento, mas é pratica tão geral!... Se um dia fôr politico, o que lhe não desejo, dir-me-ha.

Dizendo isto, fez uma curta pausa na conversação.

Rompendo de novo o silencio, o conselheiro proseguiu:

— Mas falava ahi de principios, que se defendem com desassombro e através de tudo. Não sei se quiz ser lisonjeiro e disse o que não sentia, ou mais do que o que sentia. Em todo o caso, eu, aqui no Mosteiro, acho-me muito ás ordens da minha consciencia, a qual não me deixa calar hypocritamente. Estou muito longe de ser esse ideal do homem politico, a que alludiu. Humildemente o confesso; até porque, se quizesse sel-o, arriscar-me-hia a achar-me só, não teria partido. Porque, qual é o que vê nas condições de constancia de opiniões que disse? Tenho crenças politicas, é verdade; espóso no coração certos principios que quizera vêr realisados, mas não combato por elles a todo o transe, nem por elles affrontaria o supplicio; antes, por vezes, entro em transacções, que são a completa negação da divisa da minha bandeira. E este peccado não sou eu só que o commetto; é um peccado venial da nossa época. As grandes ideias, que definem e estremam os campos na politica, havemol-as eu e os mais calcado muitas vezes aos pés, para sustentar umas insignificantes fórmulas, um interesse mesquinho, um capricho pessoal. A politica desce muitas vezes a isto. E ninguem é isento de culpa n’este mal. Para elle concorrem os mesmos que de fóra nos julgam severamente. Ha muitos d’estes peccados na minha carreira publica. E, quer que lhe diga, sabe quando vejo claro n’elles? quando me persuado de que não são de todo desculpaveis? quando... porque o não direi? quando sinto remorsos de os ter commettido? É aqui, é perante a boa fé, a sinceridade, a candura d’esta familia, que me tem amor, e que me considera um homem perfeito, superior, impeccavel. É perante os generosos sentimentos da minha Lena, e o caracter nascente d’aquella creança — e indicava Angelo com o gesto. — Parece-me que tenho n’elles juizes inflexiveis, eescondo por isso a minha face politica dos seus olhos penetrantes. Ha muita coisa n’ella, para que o mundo é já indulgente, mas que receio elles me não perdoassem.

Reparando para o olhar de estranheza, com que Henrique lhe seguia esta effusão de sinceridade, o conselheiro accrescentou, sorrindo:

— Estou a vêr que não esperava estas palavras da minha bôca; esta confissão de peccador contricto.

— Confesso que não.

— Então que quer? Surprehendeu-me aqui como coração aberto. Já agora deixe-me continuar. Uma das ideias que mais me atormentam sabe qual é? Vê aquella creança que alli está? Angelo? É uma intelligencia que, de dia para dia, vejo formar-se com um vigor de vida, que me espanta. Não é a vaidade paterna que me cega, pode acreditar. Conhecendo-o de perto ha de dar-me razão. Mas o que ha além d’isso n’elle é um senso profundamente moral, raro até em idades menos tenras. Pois bem, quando penso n’elle por algum tempo, e conjectura que não serão poucas as vezes em que o faço?... quando penso n’elle e no futuro, sobresalto-me. De um lado, seduz-me abrir-lhe a carreira politica, onde ha grandes triumphos a embriagar as intelligencia se onde presinto que a d’elle terá o direito, senão o dever, de procurar um logar; mas, se me lembro de que na atmosphera d’aquellas regiões não duram muito estas primitivas canduras da alma, tão adoraveis e consoladoras, quando me lembro de que Angelo será um dia... o que eu já hoje sou, um pouco desilludido, um pouco sceptico... com franqueza o digo, hesito em impellil-o ao redemoinho e pergunto a mim mesmo se mais não valeria dizer-lhe: Angelo, vive obscuro e tranquillo n’este retiro do Mosteiro, conserva aqui a ideal pureza da tua alma e procura a felicidade nas satisfações do coração. A lucta da vida pode embriagar-te, filho, mas não te fará feliz.

— Mas não admitte possivel que um homem possa atravessar a vida politica, sem sacrificar um só artigo do seu primitivo credo?

O conselheiro esteve algum tempo silencioso, depois respondeu:

— É difficil. Se um dia a fôrça das circumstancias realisasse, como um phenomeno natural, uma revolução completa nas camadas politicas do paiz a ponto de trazer á superficie de uma só vez uma geração nova, impolluta, inspirada de sentimentos generosos e de sinceras crenças, então sim, não bastaria o tempo de uma vida para produzir n’esses homens reunidos, que uns aos outros seriam ao mesmo tempo exemplo e vigilancia, a inquinação que eu receio. Mas lance esses mesmos homens, um a um, a sós com os seus principios e com os seus esforços, insulados no meio de uma camada quasi toda composta de elementos velhos, e cada um, após uma lucta impotente de momentos, ou se retirará, fiel aos principios, mas desanimado pela inefficacia da sua intervenção, ou ficará, cedendo á corrente e deixando-se penetrar do espirito pouco ideal, que rege as massas. Só um d’esses caracteres de excepção, que são raros na historia do mundo, é que poderia luctar e vencer na lucta. E a esperar tanto de Angelo não chega o meu affecto paterno.

— Não o fazia tão pessimista, sr. conselheiro; — disse Henrique — conceda-me que julgue em demasia carregadas as côres do quadro que me faz. Eu não creio que a corrupção...

— Se acha forte o termo, substitua-o por... o que quizer, relaxação, tibieza de fé politica, indifferentismo... em todo o caso será uma doença social. Assim abrandada a fôrça da expressão,nãoponha difficuldades em adoptal-a. Não se me pode levar a mal o propôl-a, desde que principiei por me declarar affectado da lepra contagiosa.

— Nunca esperei encontral-o tão desilludido. Eu, que me não tenho ainda assim por demasiado crente, creio que quem entrar na politica sob a égide de uma convicção profunda, pode...

O conselheiro interrompeu-o.

— Sabe a coragem mais admiravel? a de que menos exemplos existem? É aquella de que nos dá uma eloquente mostra a historia do aldeão do Danubio. Sair um homem de um canto retirado da provincia, um pouco montanhez, e escudado só da sua boa fé, achar-se de repente no meio de um circulo luzido, illustrado, elegante, novo para elle, e ousar repetir ahi aquellas falas rudes, que tanto deliciavam o auditorio da sua terra; vêr o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder resalvar as suas crenças d’aquelles sorrisos; sentir o ridiculo a seu lado, e ousar fital-o; ferirem-lhe os ouvidos, a cada passo, as vozes seductoras da moral elegante e facil, que hoje domina, e conservar-se fiel á austera e rude moral que lhe falava entre o rumorejar das folhas da sua aldeia nas longas horas de vigilia e de estudo, que lá teve; cair embora, mas cair fiel á consciencia, como um leal cavalleiro da idade média caía pela dama de quem trazia a divisa: é uma especie de lucta, para que não abundam lidadores, e nem sempre se deve lançar o labéo de traidores aos que mentem á sua antiga profissão de fé. A maioria cede com boas intenções. O perigo está em chegar a persuadir-se de que as suas convicções eram sonhos, em perder o amor ás utopias. Eu confesso que só quando aqui estou é que sinto avivar, debilmente, o amor que n’outro tempo lhes tive.

N’isto annunciou-se a visita do sr. Tapadas, fazendeiro opulento e um dos influentes eleitoraes da localidade, creatura em corpo e alma do conselheiro, e tão visto em demandas e subtilezas de processos, como o mais rabula dos lettrados. Demandista por gosto e officio, levava a sua paixão pela arte a ponto de comprar as demandas dos outros, só por gosto de as tratar; especie vulgar no Minho, onde uma legislação especialissima, reguladorada propriedade rural, fomenta estas disposições no espirito dos camponios, das quaes os juizes são as miserandas victimas.

Depois de grande exhibição de cortezias, para a direita e para a esquerda, o Tapadas dirigiu-se ao conselheiro, que o fez sentar ao seu lado, concedendo-lhe todas as provas de deferencia e de amizade.

O homem que tão judiciosa dissertação acabava de fazer sobre a politica abstracta, sentiu, na presençado recem-chegado que de novo o abandonava o espirito da utopia, e principiou a tratar com elle politica pratica, sob a feição mais mexeriqueira que ella pode revestir.

Tratou-se dos pequeninos processos de preparar candidaturas, por fôrça ou vontade dos representantes.

Henrique deixou-os na conferencia e foi sentar-se ao pé das senhoras, no grupo formado por Magdalena, Christina e Angelo.

Escuso de referir o dialogo em que tomaram parte estes interlocutores; reproduziram-se n’elle os galanteios de Henrique a Magdalena, a leve ironia d’esta e as respostas timidas e silenciosos despeitos de Christina.

D. Victoria e D. Dorothéa entremetteram-se, dentro em pouco na conversa, e desviando-lhe o curso, fizeram-a cair sobre o assumpto das proximas consoadas.

Passado tempo, ouviu-se o conselheiro dizer, elevando a voz, para o Tapadas:

—­Pois, meu caro Tapadas, que tenha paciencia este bom povo. Com isso é que eu não transijo. Ninguem é maïs condescendente do que eu, menos no que pode arriscar a vida de muitos e entre essas as dos que me pertencem. O abuso ha de acabar. Por estes dias deve chegar uma portaria, mandando expressamente cumprir a lei. Consegui isso do governo. O cemiterio fez-se. Eu fui o primeiro a dar o exemplo, levantando alli o sepulchro para a minha familia. Depois d’isso, graças a um preconceito tolo, á má fé de alguns padres, á frouxidão das auctoridades e talvez a alguma incuria minha, ainda ninguem maïs se enterrou alli. No entretanto quasi todos os estíos se repetem os casos d’essas febres que a sciencia attribue em grande parte aos miasmas da igreja onde a extrema devoção d’este povo accumula em certos dias, durante horas e horas, uma extraordinaria quantidade de fieis. Portanto, com isso não transijo. Hei de acabar com o abuso.

—­Pois sim... mas agora na occasião das eleições... sr. conselheiro, não sei se faz bem.

—­Para compensação trataremos de apressar o principio das estradas; tambem o pude conseguir.

—­Inda assim... Receio alguns motíns.

—­Reprimem-se.

—­O peor é que ha de haver quem lance mão d’essa arma contra nós.

—­Quem?

—­Ora! não falta quem. Basta o missionario, que já prégou contra isso.

—­Não tenho mêdo. Quando muito, algum motimzito sem consequencia. Leve-os por bem. E se fôr preciso fale ao ouvido d’esse tal missionario... O homem que quer? Provavelmente alguma abbadia? algum canonicato? É preciso vêr isso.

—­Elle diz que não quer nada.

—­Bem sei, todos dizem o mesmo—­disse o conselheiro, com a sua descrença de homem politico.

Tapadas retirou-se mal assombrado. De facto a opinião publica era, por toda a aldeia, em extremo adversa aos cemiterios, e elle mesmo não estava de todo limpo do preconceito geral, mas a sua affeição ao conselheiro obrigava-o a digerir a disposição legal, conforme podia.

Depois d’elle se retirar, o conselheiro disse, erguendo-se:

—­Vem em má occasião a medida, vem; é arrojada para épocas eleitoraes; se houvesse um chefe hábil que a aproveitasse, podia... Em todo o caso não transijo.

Eram dez horas quando se levantou a sessão, e Henrique voltou com a tia para Alvapenha.