A Morgadinha dos Canaviais/XIII

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XIII


Ao outro dia a impaciencia de Angelo não lhe permittiu longa demora no leito. Tardava-lhe o vêr todos aquelles sitios, tão seus conhecidos; arvores que uma por uma distinguia, sebes, atalhos de campos, e quebradas de montés. A custo o puderam reter para o almoço; resignou-se porém a não ultrapassar, até então, os muros da quinta. Logo porém que sorveu á pressa o ultimo golo de chá, partiu, veloz como uma lebre, sem nem sequer dar ouvidos á enfiada de recommendações de sua tia D. Victoria, que teimava em o querer prévenir, com sócos, gabão e guarda-chuva, de uma hypothetica mudança de tempo.

Angelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava ligada uma recordação e uma saudade; mas seguia sempre, como quem não errava ao acaso pelos campos, antes era guiado n’aquelle passeio por um intento, que tinha pressa de realisar.

Atravessou grande parte da aldeia, cortejado, cumprimentado e festejado por quantos encontrava pelos caminhos, ou ás portas e janellas das casas, nos campos e nos ribeiros.

Chegou emfim á casa, onde já dissemos morar o recoveiro Cancella e a sua filha Ermelinda.

Era evidentemente aquelle o termo proposto por Angelo ao passeio matinal, porque retardou o passo á medida que se approximava, e parou á porta da casa.

Achou-a fechada, mas não lhe causou isso embaraço.

Como quem estava habituado a vencer estes estorvos, sondou resolutamente o muro do quintal, construido de pedras soltas, e dispoz-se á escalada.

Com a agilidade e destreza proprias de quem passou na aldeia os primeiros annos da vida, o irmão de Magdalena trepou sem vacillar até o alto do muro, e n’um momento pousou os pés no chão do quintal.

Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor com precaução e, com mais precaução ainda, se dirigiu para um bosquezito de laranjeiras, que era o logar de recreio do pequeno horto.

Foi motivo d’estas precauções o ter já avistado, por entre os troncos e a rama baixa das laranjeiras, um vulto que se lhe figurou conhecido.

Assim se foi approximando sem que o presentissem e, occulto por detraz de uma sebe de roseiras silvestres, poz-se á espreita.

Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.

Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira velha, que mezes antes havia sido derrubada, a filha do Cancella e afilhada da familia Zé P’reira, tinha todas as faculdades applicadas á decifração dos hieroglificos caracteres de um pequeno papel manuscripto, que segurava nas mãos, e lia a meia voz. De quando em quando interrompia a leitura e, erguendo a cabeça para o céo, parecia repetir o que lera, como se pretendesse decoral-o.

Angelo applicou mais o ouvido, a vêr se alguma das palavras, que ella declamava, lhe revelava a natureza do manuscripto.

De facto, de uma vez, a pequena leu em voz mais audivel e elle escutou a seguinte quadra:


— Que lamentavel tragedia,
Que os meus olhos tristes viram!
E publicam minhas vozes
Aquelles que não ouviram!

E principalmente o rei,
Que se chama o rei tyranno,
N’esta região remota
Do Egypto dilatado.

Depois de ler isto, a rapariguita levantou a cabeça e repetiu:

— Que lamentavel tragedia
Que meus olhos tristes viram...

Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente, e com precaução, veio collocar-se por detraz d’ella, sem que fôsse presentido ainda.

Tão perto chegou, que, por cima do hombro de Ermelinda podia já ler as quadras que ella estava decorando:


— Tenho mil linguas, mil bôcas...

ia Ermelinda continuar a ler, quando uma respiração mais profunda de Angelo a fez desviar a cabeça.

Dando com os olhos n’elle, soltou um grito de sobresalto; depois sorriu e instinctivamente procurou esconder no bolso do avental o papel que lia.

Angelo segurou-lhe a mão.

— Que estavas a ler, Linda?

— Não é nada...

— Deixa vêr.

— Não deixo.

— Por que não deixas?

— Para não ser curioso. Que modos são esses de andar a escutar a gente?

— Pois sim, sim; mas deixa-me vêr os versos.

— Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?

— Pois não ouvi? Que era isso de tyranno e de Egypto, que dizias?

— Que ha de ser? — disse a final Ermelinda, dando-lhe o papel. — São os versos do auto dos Reis. Sabe agora?

— Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o dia! Mas que tens tu com o auto dos Reis?

— É que este anno meu pae quer que eu seja a Fama.

— Viva! E que bonita Fama que vaes ser! E já sabes os versos?

— Estava a decoral-os.

— Tenho mil linguas, mil bôcas...

dizia Angelo, lendo no principio. — O que é pena é pôr uma chochice d’estas na bôca de uma Fama como tu.

— Que está a dizer? Então os versos não são bonitos?

— Oh! pois não são! — exclamou Angelo, gracejando. — São uma perfeição!

E tendo-os corrido com a vista, principiou a lel-os com accentuação e emphase comicamente exaggeradas.

— Ora ouve lá:

Sabei que aquelle Herodes,
Lobo cruel carniceiro,
Tremendo de inveja pura
Lhe venham tirar o reino...

— Então que ha que dizer a isto?

E proseguiu:

Feria raios de fogo
De seus olhos com mudança;
E só pretende fazer
Alvo da sua vingança.

— Isto é claro e sublime!

— Lendo assim, pudéra! — disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e auto, a que nos estamos referindo, não são obra da nossa imaginação. Por ahi corre manuscripto o auto, mais ou menos extravagantemente orthographado, segundo o systema ou o capricho do copista. Em quasi todas as aldeias dos arredores do Porto podem vêr em cada anno representado este ou outro analogo, com applauso e gloria da arte. Ás mãos nos veio uma d’essas cópias, á qual, menos na orthographia, escrupulosamente nos cingimos.

Angelo era talvez em demasia severo na apreciação critica sobre o merecimento litterario da obra, ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração. N’este mesmo auto, se encontram vestigios d’ella. Mas não é nossa missão apreciar as opiniões dos actores que pomos em scena; tão sómente as registamos, sem nos responsabilisarmos por nenhuma.

Angelo redarguiu á reflexão de Ermelinda:

— Pois bem; para que não digas que é da maneira de ler, que elles parecem chôchos, repara; vou lel-os agora com toda a seriedade. Ora escuta.

Que quantos até dois annos
Em Belem fôssem nascidos,
E toda a sua comarca
Matassem a ferro frio

Sem excepção a pessoa
Que nos districtos se achasse,
Entendendo d’esta sorte
Que nós lhe não escapassemos.

— Olhem que semsaboria!

Esta divisão administrativa e judicial, em districtos e comarcas, que o auctor fez na Judéa e que tanto parecia revoltar Angelo, era uma d’estas liberdades shakspeareanas, que se devem perdoar aos genios.

— E não foi assim? — perguntou Ermelinda, que não percebia ainda o motivo dos reparos de Angelo. — Pois Herodes mandou matar todas as creanças da Judéa; então não mandou?

— Mandou, mandou; mas a Fama é que devia contar isso melhor.

— Melhor?! Então não é bonito esse verso?

E Ermelinda, tirando o manuscripto das mãos de Angelo, leu a seguinte quadra:

Para livrarem seus filhos
Da morte dos innocentes,
Dos braços faziam cruzes
Aquellas mães impacientes.

Os instinctos populares da filha do Cancella perceberam a belleza, talvez um pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.

Esta pequena contenda litteraria entre duas creanças podia dar margem a profundas reflexões a quem para ellas estivesse disposto.

Angelo estava no principio de uma educação esmerada. Principiára já a desenvolver-se n’elle a intelligencia, e a acordar os instinctos artisticos que estremeciam já sob as primeiras seducções da fórma. N’estas épocas criticas, em que esses segredos se revelam, é tal o encanto em que elles nos trazem que exclusivamente nos votamos ao novo culto, com a fanatica intolerancia. Onde as louçanias do estylo, os primores e a sonora harmonia do metro, e o brilhantismo das imagens nos não afagam os sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos assim na sombra muita belleza real, ás vezes occulta sob a grosseira revestidura da poesia ou narrativa popular.

É necessario que passe o enthusiasmo, a violencia da paixão nascente, que venha a frieza de animo necessaria á imparcialidade do juizo, para que nos não cause repulsão a aspereza, e grosseria até, da fórma e consigamos apreciar o bello que por ventura n’ella se envolva.

Dá-se com a belleza da ideia e da fórma de qualquer obra litteraria, o que se dá com a belleza moral e a belleza physica de uma mulher.

Ambas são feitas para nos commoverem e dominarem. Mas, quando o assomar de um sentir novo começa a alvoroçar o sangue do adolescente, quando fórmas vagas e formosissimas principiam a encantar-lhe os sonhos de suas noites febris, a paixão da fórma domina-o; por ella sacrifica tudo; uma modelação perfeita, um delineamento gracioso poderá decidir da sua vida inteira, e na fascinação que o cega, nunca verá a formosura da alma, que se abriga n’uma pouco feliz encarnação. É que para apreciar a belleza moral, para a vêr transparecer, através do involucro exterior é preciso deixar passar a vertigem dos primeiros momentos, ou não a ter ainda experimentado.

Por isso na infancia e nas idades viris é que melhor se apreciam essas fealdades, que escondem um coração angelico. A adolescencia é impiamente cruel para com ellas.

Por uma lei analoga é o povo, o simile da creança, porque não tem os sentidos educados para as mais subtis bellezas da fórma, e é o homem a quem ella já não fascina, embora ainda e sempre o deleite, como poderosissimo elemento de belleza litteraria, — são estes os leitores que mais aptos estão para avaliarem uma ou outra inspiração que, entre muitos desvarios, tem a humilde musa que visita a cabana do lavrador ou a officina do artista.

Apesar da defeza de Ermelinda, Angelo não perdoou ao auto.

— Sabes que mais? Não decores isso — disse-lhe elle resolutamente.

— Meu pae quer.

— O que é que quer teu pae?

— Quer que eu entre no auto.

— E has de entrar. Quem te diz que não?

— E quer que seja a Fama.

— E has de ser a Fama.

— E não hei de falar?

— Has de falar. Tinha que vêr uma Fama que não falasse. Para que lhe serviriam as cem bôcas?

— Então?

— Então; é que não é forçoso que digas o que ahi está.

— E que hei de eu dizer?

— Outra coisa.

Ermelinda olhava Angelo admirada, sem conseguir comprehendel-o.

— Outra coisa! repetiu ella, instinctivamente.

— Olha, proseguiu Angelo. — D’aqui até chegar o dia do auto vae muito tempo. Eu te darei outros versos para estudares, em logar d’esses.

— E onde os tem?

— Eu os procurarei. Não digas tu nada. Basta que no dia recites, em vez d’esses, os que eu te der!...

— Mas que dirá meu pae e o sr. Pertunhas?

— O mestre de latim? Pois que tem elle com o auto?

— É quem ensina como a gente ha de dizer.

— Ah! sim? Pois para que elle nada diga, guarda para a occasião os versos que eu te arranjar. Até ha de ter graça vêr a cara com que elles ficarão todos, quando lhes sair uma coisa bem differente do que esperam.

— Mas... diga: onde é que vae buscar esses versos?

— Não sairei da aldeia para isso. N’uma visita que d’aqui vou fazer, conto obtel-os. Agora falemos de outra coisa. Que é de teu pae?

— Saiu a levar umas encommendas. Minha madrinha, d’alli defronte, está para a igreja e meu padrinho nas hortas. E eu vou tratar do jantar de meu pae.

— Pois vae, que eu faço-te companhia.

E Angelo seguiu-a á cozinha, e ahi, ella sentada na soleira da porta a escolher hortaliça, elle a dar de comer aos coelhos e ás gallinhas, se entretiveram a conversar.

Angelo falou-lhe de Lisboa, dos theatros, contou-lhe enredos de dramas que o tinham commovido; typos e situações de romances, que se lhe haviam gravado na memoria; invenções da arte moderna, versos, anecdotas, contos.

Ermelinda era toda ouvidos a escutal-o.

Passadas horas, Angelo levantou-se e despediu-se, para sair.

— Onde é que vae?

— Vou visitar Augusto, que deve estar agora em casa.

— E ainda o não viu?

— Ainda não. A minha primeira visita foi esta.

— Então vá, que elle deve estar morto por o vêr. Ah!... já sei a pessoa a quem vae pedir os versos!

— Quem te disse que Augusto os fazia?

— Eu vi-o estar a escrever na parede da capella da Senhora da Saude de uma vez que eu ia levar o jantar a meu padrinho, que estava a trabalhar para aquelles sitios.

— E leste-os?

— Não, que não quiz que elle me visse. Mas que havia elle de escrever na capella? Então não adivinhei?

— Não sei. Adeus.

— Diga.

— E chamavas-me curioso!

E Angelo saiu apressadamente.

Momentos depois estava com Augusto.

A conversa entre ambos teve toda a intimidade da de dois affectuosos amigos.

Angelo fez a narração dos episodios da sua vida de collegio; das difficuldades e das bellezas dos seus estudos n’aquelle anno. Augusto, que da aldeia com elle os seguia, passo a passo, interrogava-o sobre algumas dúvidas que tinha, e esclarecia ás vezes tambem, graças á sua poderosa penetração e natural lucidez, as que o ensino do collegio havia deixado no espirito do seu antigo discipulo.

A geographia e a historia, que eram as disciplinas estudadas n’aquelle anno por Angelo, deram assumpto a grande parte d’este dialogo.

Augusto inclinára-se aos estudos historicos, inclinação em que o herbanario o entretinha com frequentes presentes de livros d’aquelle genero.

Em exame de livros novos, referencias a outros lidos, e leituras de alguns mais apreciados, passaram os dois grande parte da manhã, até que por fim Angelo disse a Augusto:

— Ah! é verdade! Tenho um favor a pedir-lhe.

— Qual é?

— Sabe que está para breve o dia dos Reis?

— Sim.

— E portanto o auto com que o povo d’aqui o festeja; aquelle auto em que o Herodes faz tremer meio mundo?

— Bem sei — respondeu Augusto, sorrindo.

— Este anno teremos a Linda a fazer de Fama. Fama bonita, por certo; mas se soubesse os versos que lhe deram para recitar!

E Angelo reproduziu, como pôde, as quadras do monologo da Fama no auto dos Reis.

De quando em quando passava um sorriso pelos labios de Augusto.

— Eu já conhecia isso. É o costume — disse elle no fim.

— Mas não lhe parece que de uma Fama como aquella, se devia esperar melhor do que isto?

— E então que quer que eu lhe faça?

— Outros versos para o logar d’estes.

— Outros!... Eu?... — perguntou Augusto.

— Por que não?

— Que lembrança!

— Não me venha negar que os faz.

— Versos?

— Sim.

— Quer dizer que os leio.

— E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em recusar, diga-me então quem é que os escreveu na parede da capella da Senhora da Saude, para eu me dirigir a elle.

— Então houve quem escrevesse versos na parede da capella? — perguntou Augusto, sorrindo.

— Não que eu visse; mas já duas pessoas m’o affirmaram, e as suspeitas de ambas recaíram no mesmo homem.

— Quem foram essas pessoas?

— De uma o ouvi agora mesmo. Foi Ermelinda.

— Ah!

— A outra foi Lena.

— Le... A sr.a D. Magdalena?

— É verdade, minha irmã. E estranhou, com razão, que eu o não soubesse.

— E como o soube ella?

— Leu-os, e pela leitura conjecturou o auctor.

Augusto calou-se como absorvido por um pensamento, que todo o preoccupava.

Angelo continuou falando, sem que fôsse escutado; a final concluiu, dizendo:

— Então quer falar ao poeta da Ermida para que me dê o que lhe peço?

— Poesia não lhe pode elle dar, agora se... alguns versos o satisfazem...

— Sim, sim, venham os versos; que a poesia eu a procurarei n’elles, até a achar. Desde já lh’os agradeço.

— A elle?

— A ambos — respondeu Angelo, rindo. — E agora diga-me, Augusto: Ainda está resolvido a viver aqui sempre enterrado? Não pensa em mudar de vida?

— Nenhuma outra me namora mais; o destino que a bondade da morgada me offerecia... não tenho coragem para acceital-o. Assusta-me o peso do crepe.

— Nem eu lhe digo que deva acceitar esse. Mas o Augusto não terá amigos que ajudem a seguir outros destinos menos obscuros do que este e menos pesados do que o que o legado lhe impunha? Meu pae já ...

— Que quer? Não me posso vencer até pedir ou acceitar de outrem auxilios, quando Deus m’os não tem recusado ainda; nem sei até se esses destinos, que diz menos obscuros, me fariam mais venturoso. Ha indoles que nasceram affeiçoadas para a obscuridade. Incommoda-as a demasiada luz. Umas plantas querem ar, e sol e luz; outras vivem ahi em qualquer canto escuso e obscuro, e lá mesmo dão flôr. Porque é isto não sei, mas...

— Sei eu — disse uma voz da parte de fóra da janella, junto da qual se passára o dialogo...

Voltaram-se os dois ao ouvil-a. A figura do herbanario desenhava-se no vão da janella, como um retrato de velho n’um caixilho de galeria.

— Ah! o tio Vicente! — exclamou Angelo, correndo-lhe ao encontro.

O herbanario encostou-se, ainda de fóra, ao peitoril da janella, ficando assim com meio corpo para dentro da sala.

— Viva o nosso doutor — disse elle, sorrindo, a Angelo.—­Por emquanto ainda esse coraçãozito está como era. Não esqueceu os seus amigos da aldeia.

—­Está como sempre estará—­respondeu Angelo.

—­Sempre!—­repetiu o velho.—­Sempre e nunca são duas palavras de terrivel significação... Mas emfim... de bom metal é o coração, assim o não enferrugem os ares da cidade, como ao de... como ao de tantos...

E mudando subitamente de tom, disse para Augusto:

—­Com que dizias tu que não sabes porque algumas plantas vivem de pouca luz e de pouco ar, ahi em qualquer buraco do muro? É porque vivem muito pelas raízes essas. As plantas vivem do ar pelas folhas e vivem da terra pelas raízes. Lá diz aquelle livro da Historia Natural que eu tenho. Umas prendem-se pouco ao chão; precisam, pois, de se abrirem muito ao ar para poderem viver; outras porém, profundam tanto a terra, com tantas raízes se seguram, que d’ellas lhe vem todo o sustento e não desdobram muitas folhas, nem crescem em grandes ramos para o ar. Como umas e como outras ha homens no mundo. Tu és dos que deixam ganhar raízes ao coração e d’ellas vivem. Que te importa o maïs? essas grandezas que os outros procuram? Mas é preciso cautela, rapaz! Ha corações como a hera, que onde quer que se encosta, prende-se com raízes. Quem é assim deve dirigir com prudencia as suas inclinações. Se para mau lado dobra, se se encosta a arvore de preço... mal d’elle! que o separarão com fôrça, fazendo-lhe estalar todas as raízes, que o prendiam.

As palavras de uma obscuridade sibyllina, ditás pelo herbanario, parecia terem um sentido para Augusto, que visivelmente se perturbou ao ouvil-as.

—­Que está ahi a dizer, tío Vicente!—­disse Augusto, sem ousar fitar o velho.

—­Nada. Tonterías de velhice. A prudencia, que os annos dão, vê longe e fundo, rapaz... É verdade que... ás vezes... o arrojo dos mocos é tambem guía feliz... Anda lá com a tua estrella, anda. Ao que já vejo, não sei se te possa chamar louco... como ao principio não duvidei fazel-o. É certo que é pouco seguro o terreno, em que sustentas os teus castellos.

—­Os meus castellos! Que castellos faço eu?

—­Não hei de ser eu que t’os mostre... Só te quero avisar que não ponhas grande fé em sonhos... Lembras-te do que se passou no monte da ermida?

—­No monte da ermida?

—­Não viste por lá no outro dia uns signaes de trovoada? A inconstancia é sempre de receiar. O que n’aquella manhã se passou, o que então vi...

—­Que viu?... Que se passou?

O herbanario demorou por algum tempo o olhar em Augusto e com tal expressão, que o obrigou a desviar o seu; depois accrescentou:

—­Nada; o que todos os dias acontece. O céo azul fez-se pardo, a luz clara cobriu-se de sombras, os raios do sol tornaram-se torrentes de chuva. Pois não te lembras?... E tudo devido a uma mudança... de vento... a uns ares que vinham do sul...

Augusto não entendia où fingia não entender estes mysteriosos dizeres do herbanario. Angelo estava distrahido devéras.

O velho voltou-se, de subito, para este, perguntando-lhe:

—­Tem ido ao mosteiro o hospede de Alvapenha?

—­Esteve lá hontem.

—­É amigo das creanças?

—­Parece-o.

—­Conta muitas historias ás senhoras?

—­Entretem-as bastante.

—­E ao... e a teu pae? Ouve-o com attenção?

—­Conversaram muito toda a noite.

O herbanario parecia ligar grande valor a estás perguntas, porque a cada resposta obtida, abanava pausadamente a cabeça com certo ar meditativo.

Augusto relanceava tambem para a fronte, meio contrahida, do velho um olhar entre curioso e timido.

O herbanario proseguiu:

—­Emfim... A desconfiança é um achaque de velhice e nem sempre os maïs felizes são os maïs acautelados. Deus que vêle, se os bons lhe merecem ainda a graça da sua protecção.

—­O tío Vicente desconfia do primo Henrique? perguntou Angelo, rindo.

—­Primo?!—­repetiu o velho, admirado.

—­Primo lhe chamamos nós, porque a tia Victoria teima que, sendo elle sobrinho da tia Dorothéa, é nosso primo tambem.

—­Ah? Já ahi vamos? E Lena?...

—­Lena, Christe, todos lhe chamam por lá assim.

O herbanario poz-se a murmurar algumas palavras inintelligiveis, terminando por estás:

—­E, como no Egypto, é o vento sul que traz a praga dos gafanhotos. Mas Deus que vêle, Deus que vêle. E eu não me demoro maïs, que vou ainda d’aqui aos pardieiros de Cernuche.

—­Á caça dos sapos, tío Vicente?—­perguntou Angelo, gracejando.

—­Não, que não é agora o tempo—­respondeu, sisudo, o velho.

—­Dos sapos! Galante caça, na verdade!—­continuou Angelo no mesmo tom.

—­Galante não será ella, pequeño,—­respondeu o velho;—­mas abençoada a chamarias se te torcesses no leito com as dores do carbunculo, que não ha remedio maïs efficaz para o curar, do que a pelle d’estes animaes sêcca ao ar livre.

—­E a das toupeiras? O tío Vicente tambem caça toupeiras?

—­Em seu tempo. Oh! a toupeira é animal de abençoadas virtudes! Basta que um dente que se lhe arranque, estando ella viva, trazido ao pescoço, cura a maïs desesperada dor de dentes.

—­Não deve ser fácil operação a de tirar os dentes ás toupeiras—­tornou Angelo.

O herbanario continuou:

—­A quinta essencia das toupeiras é milagrosa contra cancros e herpes.

—­A quinta essencia das toupeiras!—­repetiu Angelo, rindo.

—­Não rias, creança—­acudiu severamente o herbanario.—­Que não é bonito rir do que os homens doutos asseguram. Eu já o experimentei, logo que o li n’aquelle grande livro da Polyantheia, livro como se não faz hoje outro.

—­E como é que se tira a quinta essencia a uma toupeira, tío Vicente?

—­Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as fazer em cinzas. Mistura-se a estás cinzas o sumo de celidonia maior, até haver quatro dedos de sumo acima das cinzas. Mette-se tudo n’um vidro bem fechado, que se enterra por dez dias e... e... Bem, bem. Elle ri!... Tolo sou eu em gastar tempo e paciencia com creanças.

—­Espère, espère, tío Vicente... Não vá embora... Então depois de enterrar tudo isso, que se faz?

—­Até logo... Pede a Deus que nunca te seja preciso fazer a pergunta com menos vontade de rir.

—­E assim vae sem me dar um remedio! Olhe, tío Vicente, eu padeço ás vezes de um somno tão pesado que me não deixa estudar.

O herbanario voltou-se e, com toda a seriedade, respondeu:

—­E julgas que não sei de remedio para isso? Experimenta e verás. Mette um où dois morcegos debaixo dos travesseiros e eu te affirmo que...

Mas adeus, que se me faz tarde e d’aqui a Cernuche é uma legua.

E o herbanario retirou-se, meio agastado com o scepticismo de Angelo e sobraçando a caixa de lata e o sacco dos seus thesouros medicinaes.

Angelo e Augusto ficaram rindo da sciencia e das singularidades do velho, riso em que não entrava, porém, o menor laivo de malignidade; porque ambos tinham pelo velho uma verdadeira estima, que elle bem lhes merecia, pois sempre do coração o achavam votado a seu favor.

O dialogo de Angelo e de Augusto prolongou-se ainda, até ás horas do jantar.