A Morgadinha dos Canaviais/XXI

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XXI


O acto violento do Cancella, contra a pessoa do missionario, foi assumpto das conversações geraes de toda a aldeia. Era com indignação que se commentava a façanha. Dizia-se que o Cancella fôra apenas o instrumento de que se servirà a gente do Mosteiro para se vingar do padre, pela occorrencia da tarde do sermão.

Os adversarios do conselheiro aproveitaram o ensejo que se lhes offerecia para lhe alienarem sympathias e tentarem um cheque, pelo qual havia muito suspiravam.

O missionario e os seus ardentes sequazes fôram dos maïs acerbos propugnadores d’estas ideias, que reforçavam com muitas accusações, de hereticos e de impios, contra todos os membros da familia do conselheiro.

A politica viu n’isto uma arma favoravel para combater o adversario, e não a desprezou; depois, veio a portaria a respeito do cemiterio, manifestamente devida á iniciativa do pae de Magdalena, e impopularissima na aldeia, augmentar a irritação dos animos e servir de thema a uma violenta diatribe do missionario contra a impiedade da época, que nem aos fieis concedia a santa consolação de repousar á sombra dos templos.

Tudo isto começou pois a fomentar uma reacção contra o conselheiro, a qual ameaçava o resultado da sua candidatura.

Não pequena parte n’esta guerra surda, que principiára a lavrar, tomava o seu companheiro de infancia e particular amigo o brazileiro Seabra.

Nunca elle sentira entranhada no coração metade da bem-querença que apparentemente ostentava para com o conselheiro: mas depois de uma conferencia que tivera com mestre Pertunhas tornára-se mais manifesta a sua hostilidade e menos observadora de etiquetas e rebuços.

Foi elle, por exemplo, quem teve o cuidado de lembrar que a familia do conselheiro estava de posse de bens religiosos; circumstancia que o missionario attendeu, clamando do pulpito contra os delapidadores dos bens da Igreja.

Foi tambem o brazileiro quem trouxe á flor de agua os antigos excessos demagogicos, que caracterisaram o principio de carreira politica do conselheiro, e referira, com modos de horrorisado, a substancia dos exaltados discursos que elle proferira nas camaras, advogando ideias cuja só exposição ferira de pavor a imaginação dos povos.

Finalmente, até o principio dos trabalhos para as estradas, cujo protrahido adiamento fôra até aquelle tempo um capitulo de accusação contra o pae de Magdalena, servia agora de arma á opposição.

O brazileiro, em attenção a quem se adoptára o traçado que ia ser posto em execução, era o que provava á saciedade com grande exhibição de cifras e de razões economicas, ser esse traçado, sobre dispendioso, irracional.

E cumpre advertir que estes argumentos ouvira-os elle ao proprio conselheiro, quando este os allegava para vêr se conseguia demovel-o do empenho que mostrava em que o traçado em questão fôsse preferido aos outros. Tal era o estado das coisas publicas na terra no dia em que principiaram os primeiros trabalhos de campo.

Tinham-se passado alguns dias depois da prisão do Herodes.

A aldeia vira-se invadida por um bando de sêres desconhecidos, que vieram alterar a perenne serenidade de animo de uma população habituada a considerar como occorrencias de maximo interesse a reforma dos muros ou das cancellas de qualquer proprietario da localidade.

A cohorte de engenheiros, conductores, apontadores, cantoneiros e mais operarios vinha, com seus habitos e costumes novos, fazer tantas ou maiores mudanças na vida moral da aldeia do que nas condições physicas d’ella as bandeirolas, os niveladores, as enxadas, as pás, alviões, picaretas, carros de mão e padiolas, de que era armada essa cohorte.

Por isso corria uma verdadeira romagem para o logar onde com a maior actividade tinham começado os trabalhos. Era como já dissemos, na casa do herbanario. Pela demolição d’ella, e do quintal que a rodeava, principiaram as obras.

O velho Vicente assignára dias antes o auto de expropriação e recebera o preço da venda, estipulado, o qual, por influencia do conselheiro, não lhe foi muito regateado.

Elle, porém, o desconsolado velho, recebeu-o comovido. Por as arvores nada quiz; não podia resignar-se a vendel-as. Podia vêl-as cair, como amigos sacrificados no cadafalso, mas mercadejar-lhes com os restos, isso não.

O desinteresse e o escrupulo do herbanario serviu á Fazenda Nacional de compensação ao excessivo preço por que fôram expropriados os bens de que o brazileiro se apossára, com o patriotico intuito de promover os seus melhoramentos particulares, preço que por empenho do conselheiro não foi litigado.

Ao principiarem os trabalhos, alguns grupos populares tentaram resistir, mas refrearam-se, em parte pelo respeito devido á cohorte de operarios melhor armados do que elles, em parte cedendo ás imperiosas ordens do herbanario, que, ao sair pela ultima vez da casa, onde envelhecera, lhes disse, com voz irritada e severa:

— Quem lhes pediu que defendessem estas arvores? Que amor lhes tendes vós, para vos amotinardes por causa d’ellas? Para traz!

Os instigadores das massas conheceram que não era aquella a occasião nem aquelle o pretexto proprio para os seus projectos, e adiaram, em vista d’isso, a empresa prudentemente.

Era ao fim da tarde de um dia ennevoado e frio, de um d’esses dias em que os animos mais fortes se deixam dominar de uma melancolia profunda.

Na baixa em que ficava a habitação do herbanario, ia uma azafama extraordinaria.

O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de destruição; desconjuntavam-se as pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa secular, caíam a golpes de machado as vigas dos tectos e os troncos das arvores, alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos taboleiros, e cêdo, de toda aquella vivenda tão amena e virente, só restavam ruinas.

Numerosos grupos de já pacificados espectadores seguiam com curiosidade as operações de devastação; mas, longe d’alli, a maior distancia do que os indifferentes, assistiam ao espectaculo os unicos olhos que elle orvalhava de lagrimas, o unico coração que elle devéras apertava de dor.

O herbanario foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, d’onde se divisava toda a scena. Com a cabeça pousada na mão e o braço apoiado sobre o joelho, com voz commovida, dizia adeus a cada arvore, que d’alli via vacillar e cair, como se fôsse um amigo que o precedesse no tumulo. Parecia ter fugido para longe, para pelo menos não lhes ouvir o estertor da agonia.

Ao lado do velho estava Augusto.

Não era tambem sem tristeza que elle seguia os progressos da demolição.

Mais do que uma vez tentára arrancar o herbanario d’aquelle sitio. O velho, porém, resistiu; queria estar alli até vêr cair a ultima arvore.

Ao pinheiral d’onde assistia á scena, chegava em confusão o alarido dos trabalhadores, o rumor do manobrar dos instrumentos, e até o da quéda das arvores cortadas.

O herbanario sempre que via brilhar o machado sobre uma nova arvore, recordava sentidamente algum episodio do seu passado, a que ella estava ligada.

— Lá vae aquella faia! — dizia elle, com intensa melancolia — pobre velha! Era á tua sombra que meu pae me ensinava a ler! Encostava-se áquelle tronco sobre a grossa raiz que elle tem á flor da terra e pegando em mim ao collo, guiava-me nas primeiras lições! E viver eu para te vêr cair!

E, ao perceber-lhe balançar as sumidades, o velho fechou os olhos instinctivamente. Cêdo ouviu um estrondo... Quando os abriu, estava por terra a faia.

— Agora é a tua vez, pobre carvalho! — dizia algum tempo depois — muito queria minha mãe áquella arvore! Por suas mãos a plantou bem tenra. Nunca me sentei áquella sombra, que me não lembrasse da santa mulher! Parecia que eram vozes tuas, que m’a recordavam, infeliz! Barbaros! Olha com que desamor a decepam! Perdôa-me, meu velho amigo, mas bem vês que te não posso valer.

E o carvalho caíu.

— Eil-os agora comtigo, cerdeira. Mal adivinhavas tu, quando o anno passado te enfeitavas com aquellas cerejas escarlates, que tanto cubiçavam as creanças, que pela ultima vez o fazias!... Adeus, pobre amiga, adeus.

E caía a cerdeira tambem.

E caíam, uma após outra, todas as arvores do quintal, os limoeiros, as nogueiras, os salgueiros e toda a familia vegetal do velho Vicente, que sentia ir-se-lhe com ella a alma. Memorias de infancia, sonhos de juventude, e reminiscencias de velho, como aves invisiveis, occultas nas copas d’aquellas arvores, surgiam agora, espavoridas e desnorteadas, a procurar o refugio que não encontravam fóra dalli.

Por outro lado os delicados sentimentos do herbanario eram dolorosamente feridos, ao desmoronarem-se as paredes d’aquella pequena casa, onde elle envelhecêra e contava morrer, e ao patentear-se indiscretamente aos olhos irreverentes e curiosos do povo aquelle recatado asylo.

A demolição proseguia com ardor e actividade. Em pouco tempo, só restavam da casa os muros, meio derrocados; e, no quintal, a serra e o machado principiavam a exercer no tronco da ultima arvore a sua obra destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de outro seculo, que desafiára os raios de muitos invernos successivos.

A exaltação do herbanario cresceu n’aquelle momento. Ergueu-se, pallido e trémulo, apoiou-se no hombro de Augusto, murmurando:

— Tambem o castanheiro! Já era arvore quando eu nasci! Como elles se encarniçam contra elle! Mas não te parece, Augusto, que não soffre muito o castanheiro?... Sabes? É que elle já não agradeceria a vida, porque tinha de viver assim desamparado dos seus outros companheiros, que vê caídos no chão... Tarda-lhe talvez o deitar-se ao lado d’elles... É como eu.

O castanheiro principiou a oscillar.

— Repara — disse o herbanario, cada vez em tom mais baixo, e apertando o braço de Augusto. — Elle já treme! Não vês!... Lá lhe deitam a corda... Vae cair!... Parece-me que estou a sentir aquelle estalar de fibras...

E a arvore caíu com fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de sombras.

Estava ultimada a obra.

O herbanario encostou a cabeça ao hombro de Augusto e rompeu em soluços.

— Então, tio Vicente, tenha animo — dizia-lhe Augusto, igualmente commovido.

— Se tu soubesses, Augusto, o que eu estou sentindo! Olhar para acolá e não ver em pé uma só das arvores que eu conheci em pequeno! Parece-me um sonho isto, um sonho de afflicção! Sinto-me tão só no mundo! Ai! se a morte me ferisse agora!

A dor, a saudade e o desalento davam uma uncção de poesia elegiaca á figura, ao gesto e ás palavras do velho, que desvanecia tudo o que n’elle pudésse haver, nas situações ordinarias da vida, capaz de desafiar um sorriso nos labios de quem o observasse friamente.

Conceda-se uma lagrima a estas obscuras victimas dos progressos materiaes, lagrima que não importa uma ironia á civilisação. Exalte-se embora a rapida carreira da locomotiva, que atravessa, como meteoro, as povoações e os êrmos; mas não seja isso motivo para condemnar a compaixão pela violeta dos campos, que as rodas deixaram esmagada á beira do carril. Inda quando um vencedor tem um papel providencial a cumprir, e o seu triumpho seja uma obra de redempção, o vencido, desde que cáe, tem direito a um olhar compassivo, a uma lagrima de saudade. Não tenteis a louca empresa de anniquilar o sentimento, espiritos áridos que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida á vossa alma sêcca e esteril. Quem devéras confia nos destinos da humanidade não tem mêdo das lagrimas. Pode-se triumphar com ellas nos olhos.

Passado algum tempo, e quando já as sombras da noite se condensavam nos valles e subiam lentamente as encostas dos outeiros, o velho disse para Augusto:

— Agora que não tenho casa, dá-me por alguns dias o abrigo da tua.

— Por alguns dias? — repetiu Augusto, admirado. — Pois quer deixar-me depois!

— Quero. Vou com ellas.

E apontou, ao dizer isto, para as arvores derrubadas.

Atravessaram a aldeia á hora a que vibravam nos ares os sons melancolicos das Avé-Marias.

Em silencio chegaram a casa de Augusto, agora commum para os dois.

— Mettes em tua casa um triste hospede, pobre rapaz! — disse o herbanario, ao transpor o limiar. — Má companhia te fará a minha velhice.

— Boa companhia me faz sempre a sua amizade, tio Vicente. Nem a sua presença podia desalentar quem na mocidade é mais fraco e desalentado do que ninguem o pode ser na velhice.

— Custou-me muito este golpe de hoje! Não contava com elle! Desde hontem envelheci muitos annos. Podes crêl-o.

Quando Augusto ia a replicar, interrompeu-o uma voz que dizia de fóra da porta:

— Dão licença?

E no limiar appareceu a figura do mestre Pertunhas, animada de cordiaes sorrisos.

O herbanario e Augusto não reprimiram um gesto de impaciencia.

O homem entrou.

— Ora Deus seja aqui! Tão grande é o dia como a romaria, sr. Augusto! Ainda ninguem o viu hoje!... Disseram-me que tinha ido de manhã para casa do tio Vicente; vou lá... estava um mundo de gente no sitio... Mas qual sr. Augusto, nem tio Vicente! Então com que escorraçaram-n’o do seu ninho?... Pobre homem! A falar verdade, n’essa idade! Já sei que vem para casa do nosso Augusto. Hontem vi para ahi entrar os fardeis. Ainda bem que o temos por vizinho... Faremos boa camaradagem... Olhe que tambem fizeram-n’a fresca com o tal projecto de estrada! Uma coisa assim!... Coisas cá do sr. conselheiro! Vae-se fundir um dinheirão na tal estrada! E já por ahi se rosnam coisas! Emfim, politicos! politicos! Todos são os mesmos... Vae por ahi uma poeira dos meus peccados com a ordem a respeito do cemiterio; e com a historia do Herodes! Sabem que elle esteve hontem para matar o missionario?... E valha a verdade, dizem que por ordem de alguem do Mosteiro... Que eu não acredito, mas emfim, aquella historia no sermão do outro dia... E o tal sr. Henrique, que é unha e carne com elles... Elle será muito boa pessoa, mas não me calha... Lá feliz, isso como não sei de outro, com dinheiro e sem cuidados! E sempre se faz o casamento d’elle com a morgadinha?... Ouvi dizer que sim.

O herbanario levantou os olhos para fitar Augusto; a apparente impassibilidade d’este não illudiu o velho.

O Pertunhas não se exgotára ainda:

— Ora agora, quem anda fulo é o brazileiro, o Seabra. Pelos modos, eu não sei o que ahi houve; o conselheiro não o tratou muito bem, dizem, n’uma carta que escreveu ao ministro, ou creatura do ministro. Umas historias muito complicadas, que eu não entendo, mas que promettem dar de si... Veremos em que ficam as eleições este anno... O conselheiro bem pode trabalhar, senão... Elle cuidava que era só apresentar-se, e emquanto a fazer vontades... Que me dizem do sr. Joãozinho das Perdizes? Será fiel esse? Já me disseram tambem que...

— Ó sr. Pertunhas, — atalhou o herbanario, enfastiado — antes queremos não saber. Importa-nos pouco a politica.

— Estão como eu... Isto tambem não é politica, mas emfim... Pelo que vejo estão cançados? Eu tambem não os maço mais... E antes que me esqueça, ha muitas horas que estou de posse de uma carta para vossemecê, tio Vicente. É de Lisboa, veio por o correio de hoje. Não lh’a mandei a casa, porque... não sabia o que era feito d’ella. Eh, eh, eh... Mas como o vi passar, conjecturei que viria para aqui, e por isso...

O herbanario recebeu a carta, que o mestre Pertunhas lhe deu, e olhando para o sobrescripto, disse com indifferença:

— É do Manoel.

E abriu-a lentamente.

O mestre de latim deixou-se ficar, na esperança de ouvir novidades.

A meio da leitura o herbanario ergueu-se com impeto e exclamou, cheio de indignação e de colera:

— Mentiu-me como um vil! Mentiu-me aquelle homem sem dignidade nem sentimentos! Aquelle homem importa-se menos com a felicidade dos amigos, com a justiça das causas e com a voz da propria consciencia, do que com os caprichos e interesses dos poderosos com quem vive!

— Mas que é? — perguntou Augusto, sem atinar com a significação d’aquellas palavras.

— Lê.

E passou a carta para as mãos de Augusto.

O conselheiro participava n’esta carta ao herbanario que se vira obrigado a ceder, na questão do despacho de Augusto, a fortes influencias que se empenhavam n’isto muito mais do que elle julgava; que mais tarde lhe explicaria tudo. Quanto a Augusto, accrescentava elle, talvez fôsse isto até uma vantagem; que o logar que pedia era a sua annullação perpetua, e que elle, conselheiro, havia de luctar contra a grande modestia do rapaz, trazendo-lhe á luz os merecimentos reaes, dando-lhe melhor collocação, e que esperava ainda empregal-o na capital.

Era uma carta toda de homem politico, que tudo espera da diplomacia.

Ao acabar de ler, Augusto disse, com um sorriso amargo nos labios:

— Eu sou pouco ambicioso; contento-me com morrer aqui.

— A mim me deu elle, ao partir, a sua palavra de que te faria despachar, e breve; e quebrou-a como um pêrro! Oh! o que fizeram d’aquelle homem!

— Quê?! Pois é possivel? — perguntou, exaggerando a sua consternação e espanto, o officioso Pertunhas. — É possível que o sr. Augusto não fôsse despachado?!

E dizendo isto, passou a desfiar uma série de consolações, qual d’ellas mais tôla e sem cabimento.

Até que emfim, tendo já novidades para contar, e almejando communical-as aos frequentadores da taberna do Canada, onde devia estar reunida grande e luzida assembleia, o Pertunhas saiu, a pretexto de não ser mais tempo incómmodo, e deixou-os outra vez sós.

— Estão-me guardados para o fim da vida todos os desenganos! todas as amarguras! todos os desesperos!... — disse o herbanario momentos depois. — É para se odiar o mundo e os homens vêr um, que conhecemos generoso e innocente, contaminado tambem!... Pobre Augusto! Não basta que sejam modestos os teus desejos... nem assim t’os deixam realisar.

Guardados alguns momentos de silencio, continuou, com amargo sarcasmo:

— Por que te não fazes politico? Por que não vaes tambem para a taberna do Canada dizer tolices sobre a governança do paiz? Talvez levasses comtigo alguns tôlos, e tinhas n’isso uma recommendação poderosa. Olha para aquelle basbaque do morgado das Perdizes... ahi tens um influente... Imita-o... Mas dize: o que tencionas fazer?

— Ficar — respondeu Augusto, com firmeza.

O herbanario fixou-o com um olhar penetrante.

— Ainda?... Mas... não te vae ser suave agora a vida, rapaz. Para se viver não basta uma... uma loucura. Repara bem. Se quizeres... O Manoel é leviano, mas creio que ainda não perverso; eu lhe escreverei... talvez que em Lisboa...

— Não lhe escreva. Sabe que não partiria para Lisboa...

— Mas... repara!... Estás muito novo, Augusto... Tens um longo futuro deante de ti. E, ficando, o que te espera?...

— A morte que fôsse, a morte de miseria e de fome, ficava. Mas resta-me ainda o trabalho. Tenho coragem para acceital-o.

O herbanario baixou a cabeça, pensativo.

Soaram n’isto á porta da sala duas pancadas lentas.

O herbanario fez um gesto de enfado.

— Não abras sem eu sair, — disse elle a Augusto, que se erguera — não estou de animo para aturar importunos.

E passou para uma sala contigua.

Augusto foi abrir ao novo visitante.

Achou-se na presença do brazileiro Seabra.

A grave personagem entrou pausada e sisuda, como homem que sabe fazer valer a honra que dispensa, visitando um rapaz sem dinheiro.

Augusto offereceu-lhe cadeira Augusto offereceu-lhe cadeira para se sentar, sem inquirir do motivo de tão inesperada visita. O brazileiro sentou-se e principiou:

— Acabo agora mesmo de saber da injustiça que lhe fizeram. Senti-a como se fôra propria, e venho aqui declarar-lh’o.

Augusto curvou-se, em signal de agradecimento.

— Mas então que quer? — proseguiu o homem. — Hoje em dia é tudo assim. Padrinhos e mais padrinhos, e o mais são historias. Estamos n’uma época de corrupção e de immoralidades, e ninguem sabe onde isto irá parar.

Augusto ouviu em silencio os threnos do capitalista, que proseguiu:

— Tôlo é quem não faz como os mais. O mundo está para os velhacos.

Parou, assoou-se, tossiu, e puxando a cadeira para mais perto da de Augusto, continuou, em tom differente e mais baixo:

— Quando um homem tem uma gotta de sangue nas veias não pode receber as offensas e ficar-se com ellas assim. O perdão evangelico é muito bonito, mas não é para homens. Não lhe parece? Eu por mim não gósto de genios de lama. Falemos como amigos. Nós ambos somos victimas de um mesmo homem. O sr. Augusto foi enganado e escarnecido por o conselheiro, que se apregoava seu protector. Ahi temos a protecção que elle lhe deu. Eu tambem lhe devo finezas.

— V. s.a? — perguntou Augusto, que não podia saber o que lhe queria no fim de tudo o brazileiro.

— Eu, sim, senhor. Eu lhe digo como isto foi.

E o brazileiro, puxando a cadeira, approximou-se mais de Augusto, e deu principio á exposição dos seus aggravos:

— O conselheiro, que joga em politica com pau de dois bicos, andou-me a causticar, para que eu acceitasse um titulo qualquer... Queria fazer-me visconde por fôrça. Coisas de que eu me estou rindo... Mas... emfim, para me livrar d’aquelle importuno, disse-lhe que... fizesse lá o que quizesse... Pois, senhores, não teve o petulante o atrevimento de escrever ao ministro, com quem, apesar de se dizer da opposição, mantem aturada correspondencia; não teve a audacia de lhe dizer que eu andava sonhando com viscondados, e que a minha mania era attendivel, pois promettia ser uma fonte de melhoramentos locaes muito baratos ao Estado, visto que com tão pouco me contentava, e outras coisas n’este gôsto? O petulante!...

Augusto, apesar dos pensamentos pouco alegres que o preoccupavam, luctava para se conservar sério perante aquella indignação do sr. Seabra.

— Mas tem a certeza d’isso? — perguntou elle. — Ás vezes são calumnias...

— Eu vi a carta do ministro em resposta a esta; do ministro não, mas do secretario, que é o mesmo... Um acaso fez com que ella me chegasse á mão... O ministro fazia-me o favor de me conceder o titulo; mas era de parecer que, por cautela, se tirasse antes de mim tudo quanto eu pudésse dar, porque... porque... por umas tolices de que eu me lembrei a tempo... Ora ahi tem como elles são!... Que venham para cá com os seus melhoramentos... Eu lh’as cantarei; prometto-lhes que se hão de arrepender.

— Mas... talvez haja equivoco.

— Equivoco? Ora essa! Pois eu não li a carta? Ella ha de apparecer em publico; oh! se ha de! Isto é, não a parte que me diz respeito, porque... porque emfim são negocios particulares, que não interessam a terceiros; mas umas ultimas linhas d’ella, umas promessas do ministro, que põem a calva á mostra a este Catão, que nos anda aqui a prégar liberdade e independencia! Isso ha de apparecer, e ha de ser lido com muita vontade.

— Acaso tenciona?...

— Se tenciono?! Pudéra não! Eu lhe afianço que o homem ha de saber com quem se metteu. Deixe vir as eleições, deixe-as vir. Já ha de achar o caldo azedado, quando quizer comel-o; isso lhe prometto eu... A lição ha de leval-a breve.

— Vão guerrear a eleição do conselheiro?

— Faço essa tenção.

— E quem lhe oppõem?

— O candidato que a auctoridade propuzer; um individuo de Lisboa.

— Que nem o circulo conhece?

— Que importa? É uma lição. Aqui não ha politica nem meia politica. Eu não morro pelo governo, porque eu tambem fui offendido pelo ministro. Mas é preciso aproveitar tudo. E assim temos por nós a auctoridade, além dos padres.

Augusto não se sentia com disposições para discutir esta questão politica; por isso nada mais lhe replicou.

O Seabra proseguiu:

— O que eu quero saber é se o amigo quer entrar na nossa alliança e acceita uma proposta que eu lhe vou fazer. A vingança é o prazer dos deuses, e visto que foi tambem offendido...

— Não, senhor, não acceito — acudiu com vivacidade Augusto.

— Escute. Deixe-me concluir. Não sabe do que falo. Pouco se exige. A coisa é esta: na carta a que me referi, e que por acaso me chegou ás mãos, fala-se n’uma outra, ou em outras anteriores, em que se tratava, mais por miudo, de uma curiosa transacção politica que n’esta se revela claro. O conselheiro é pouco acautelado; haja vista ao extravio d’esta, e por isso...

Augusto olhava admirado para o brazileiro, como se não pudésse comprehender onde elle queria chegar.

O Seabra proseguiu:

— Ora, a mim lembrou-me... como o senhor vae muito pelo Mosteiro... sim, porque julgo que continúa a ensinar os pequenos, e, já se sabe... como mestre, entrando a qualquer hora no mais intimo da casa, sim... demais como a D. Victoria é... um tanto descuidada, como todos nós sabemos... Não sei se me percebe?... Dizia eu... sim, que se ás vezes, por acaso, encontrasse coisa que valesse...

Augusto levantou-se, indignado.

— Sr. Seabra! — exclamou, cheio de cólera.

— Valha-me Deus, eu não quero dizer... Não me entendeu... Bem vê que se o senhor devesse obrigações ao conselheiro, eu não ousava... Mas...

— Obsequeia-me muito, sr. Seabra, se não insistir...

— Entendamo-nos. O senhor está no principio da vida. Precisa do auxilio de alguem. Offerece-se-lhe occasião para fazer serviços ao governo, que é finalmente quem pode pagal-os; e que se lhe pede para isso? Quasi nada... O senhor sabe perfeitamente que se não trata aqui de desgraçar ninguem, de levar ninguem á forca.

— Visto que v. s.a insiste, sou obrigado a retirar-me.

— Espere, sr. Augusto — acudiu o brazileiro, segurando-o. — Repare no que faz. Não seja precipitado. Eu estou prompto a fazer alguns sacrificios, se vir que nas suas circumstancias...

— Visto que v. s.a não se cala, nem quer que eu me retire, ouça então o que tenho para lhe dizer. A sua proposta seria para mim o maior dos insultos, se não fôsse tal a baixeza d’ella, que até despe de toda a imputação a pessoa que a faz. Os homens, faltos de sentimentos de honra, não offendem, quando insultam; não se lhes pode pedir razão da infamia, porque não a conhecem como tal; identificaram-se com ella. Por isso, só me resta um partido, é convidal-o a sair.

O brazileiro fôra erguendo-se á medida que Augusto falava. Estava espantado por vêr que um rapaz, sem um vintem de seu, ousasse falar com tal a um homem que tinha dinheiro e crédito em tantos bancos! A ordem do mundo estava perturbada!

—­Ora está!—­disse elle no fim.—­Então o senhor ordena-me?...

—­Que saia!—­respondeu Augusto, indicando-lhe a porta.

O brazileiro estava pasmado. Olhou para Augusto como se duvidasse do que ouvia; deu dois passos para a porta e tornou a olhar, seguiu outra vez, e, no limiar, parou para dizer:

—­Veja lá o que faz! Eu só lhe digo que me não convem dar a minhas filhas um mestre de soberbas.

—­Decerto que lhe não poderá convir a educação que eu désse a suas filhas; é natural não querer educar consciencias que sejam juizes da sua corrupção. Deixe-as ignorantes, para não ser castigado pelo desprezo d’ellas.

—­Quer então dizer...

—­Que lhe desejo muito boas noites, sr. Seabra.

O brazileiro saiu, bufando.

Augusto, que ficára só, sentiu-se apertar nos braços de alguem que entrou, sem elle sentir.

Era o herbanario.

—­É assim, é assim que te vingas de todos, rapaz! Esmaga-m’os com a tua nobreza!

Augusto sorriu-se tristemente.

—­O peor é, meu amigo—­disse elle—­que é a segunda subtracção que hoje se opéra no meu orçamento, e... a nobreza não nutre!

—­Mas consola!—­replicou o velho.