A Mortalha de Alzira/II/IX
O resto desse dia passou-o Ângelo em piedosas visitas aos pobres de Monteli. Só ao cair do sol tornou à casa, prostrado de fadiga e torturado pelas suas favoritas agonias.
Salomé trouxe-lhe o jantar, em que ele, como de costume, mal tocou, para recolher-se logo às suas orações defronte do altar da Virgem.
Às sete horas deitou-se cansado e adormeceu logo, precipitando-se no sonho, como se acordasse da vida.
Alzira esperava lá por ele.
— Ah! enfim! exclamou ela, abrindo-lhe os braços e apresentando-lhe os lábios. Tremia com a idéia de que te demorasses! . . . Não imaginas como estava impaciente por tornar a ver-te!. . . A imobilidade a que me vejo condenada durante as horas do dia, é para mim indefinível tormento!. . . Maldita seja a sepultura!. . .
— Mas eu me não demorei!. . . observou Ângelo. Adormeci pouco depois de anoitecer... Não seriam mais de sete horas quando. . .
— Tens razão. Não percamos tempo! Partamos. Os cavalos chamam-nos à montaria, escarvando a terra . . .
— Onde vamos nós?. . .
— A um lugar esplêndido. Sigamos!
Montaram e partiram desenfreadamente como na véspera, varando a alma trevosa da noite.
Galoparam! Galoparam!
No fim de algum tempo, Alzira chamou a si as rédeas do seu cavalo.
— É aqui, disse. Chegamos afinal!
Os dois apearam-se.
Achavam-se na estreita garganta de uma sombria serra, onde nenhum rumor de folhas se escutava.
— Andemos, disse ela.
Ângelo obedeceu.
E seguiram caminho avante, por entre um pedregal de serros e cabeços silenciosos, que se perdiam no céu, escondendo-lhe as estrelas.
O caminho fazia-se cada vez mais escuro, mais penhascoso e íngreme. Era já necessário aos dois ampararem-se um no outro, para que não rolassem juntos por aqueles precipícios.
Afinal, penetraram num vale, fechado entre rochas negras e gigantescas, em torno das quais giravam aflitivamente sinistras aves, que corvejavam e gemiam, como se a cada instante rasgassem o peito nas arestas da pedra.
Era um convulso redemoinhar sem tréguas, lembrando um irrequieto bando de gaivotas, a doudejarom sobre as águas, no alto mar, quando a tempestade se aproxima, abrindo as longas asas prendes e agoureiras.
— Que diabo vimos nós buscar aqui?! perguntou o sonhador, intimidado por aqueles loucos gemidos que singravam no espaço.
— Viemos buscar dinheiro. . . respondeu Alzira.
— Dinheiro?... Para que dinheiro?...
— Ora essa! Para tudo! com dinheiro teremos prestígios nos lugares que vamos percorrer!
E avançando alguns passos, mostrou ao companheiro uma grande pedra encravada no rochedo.
— Vês esta pedra? disse ela. É a porta das cavernas do Ouro. Nesta misteriosa gruta acha-se encerrada toda a riqueza dos avarentos já mortos, entesoura-se aí todo o ouro desses miseráveis, que em vida sofrem as mais duras privações, para acumular dinheiro sem proveito de ninguém!
— E como vieram parar aqui todas essas riquezas?... indagou Ângelo.
A cortesã explicou:
— Por intermédio dos herdeiros pródigos e das mulheres da espécie a que pertenci no mundo dos vivos. Por minhas mãos passaram muitos e muitos milhões, que aqui caíram, derramados em longas e ruidosas noites de orgia. Esta esplêndida caverna é o tormento das almas amarelas dos usurários. . .
— E ao mesmo tempo é o teu banco. . . faceciou Ângelo.
— Justamente, tornou Alzira. Quando preciso de dinheiro, venho buscá-lo aqui.
— E estas aves, porque esvoejam em torno da montanha, e por que soltam assim uivos tão tristes?. . .
— São as almas dos avarentos. . . Rondam, noite e dia, sem cessar, o tesouro que já não podem possuir e que ainda cobiçam. Atrai-as o cheiro do dinheiro! Deixa-as lá, míseras que são!
E Alzira encaminhou-se para o pedregulho que fechava a gruta, e tocou sobre ele com a sua linda mão cor de nove.
A pedra afastou-se incontinenti, e uma fulgurante abertura fez-se defronte da cortesã, jorrando luz como a boca de uma fornalha.
As aves que rondavam a montanha, assanharam-se e logo se puseram a rodopiar com mais fúria, multiplicando os uivos e os gemidos.
Ângelo adiantou-se deslumbrado, olhando para dentro daquela esplêndida galeria de ouro e pedras fulgurantes.
— É maravilhoso! exclama ele. É surpreendente! Oh! quanta riqueza! Que interminável tesouro!
E olhava, fascinado.
A galeria, plana embaixo e por cima abobadada, firmava-se em colunas de ouro. O chão era calçado de moedas de todos os países; de espaço a espaço erguia-se um repuxo também de ouro, donde espipava ouro líquido que se derramava, entre rocas de esmeralda, formando reluzentes lagos nunca secos. Do teto pendiam estalactites de ouro, de coral e de topázio. As paredes cintilavam num delírio de fogos multicores, em que fulguravam diamantes, safiras, rubis, opalas e cornalinas.
— Oh! Que deslumbramento! exclamou Ângelo, sem desviar os olhos da refulgente caverna. Que grande maravilha!
— Não tão grande, opôs-lhe Alzira, procurando com os lábios alcançar-lhe a boca; não tão grande como o amor que me inspiraste!
Ângelo não lhe ouviu as palavras, nem recebeu a carícia que ela lhe oferecia. Toda a sua atenção era para a sedutora caverna.
— Não me escutas, meu querido amor?. . .
Ele, em vez de responder, perguntou avidamente:
— Eu também posso levar daqui o ouro que quiser, não é verdade?. . .
— Não, disse Alzira entristecendo; não podes carregar daqui com um grão de ouro. . . Eu, sim!
— Por quê?
— Porque nunca foste perdulário... Ah! mas descansa que nada te faltará!. . . Estarei sempre a teu lado, e sempre terás à mão a minha bolsa.
Ângelo abaixou os olhos, empalidecendo.
— Que tens, meu amor?. . . interrogou a amante. Sentes-te mal? . . . Fala.
— Nada!...
E cerrou os punhos, rilhando os dentes.
— Oh! cala-te! Terrível sentimento apodera-se do meu coração! Sinto-me ambicioso e ávido de riquezas! Desejo ser o único dono de todos aqueles tesouros que ali estão acumulados! E esta cobiça me faz estalar o cérebro' Tenho o sangue a escaldar! Tenho febre! Tenho febre!
— Empalideces! Ó Ângelo! Ângelo! não te preocupes com o ouro! Pensa em mim, que sou a tua riqueza!
Ele, afastou-a com o braço.
— Sofro! sofro neste instante! acrescentou. Faz-me mal a vista de tanto ouro! Tenho vertigens! Desejava agora ser mil vezes milionário e ter todas as grandezas da terra!
— Ângelo! Ângelo!...
— Oh! deixa-me! Afinal não passo de um pobre aventureiro, sem o menor prestígio, sem ter sequer um nome de família! não passo de um miserável, sem passado e sem futuro, uma sombra de homem, sem esperanças e sem saudades! Não sou ninguém! ninguém!
— És muito, és tudo, meu amor, és tudo, pelo menos para mim! exclamou Alzira, tentando inutilmente chamá-lo a seus braços. Que te importam o futuro e o passado, se tens o presente, que sou eu?. . . Riquezas e grandezas! mas tudo isso não vale o ser amado como eu te amo, meu Ângelo!
— Não! Não! Quero ir morrer lá dentro, afogado naquelas voragens de ouro!
E, desprendendo-se dos braços dela, precipitou-se para a caverna.
Mas uma resplandecente figura, de longas barbas e cabelos de ouro vivo, cortou-lhe a passagem, colocando-se à entrada da grata.
— Era o Demônio de Ouro.
Vinha cintilante da cabeça aos pés, e o diadema, que lhe guarnecia a fronte, refulgia como um sol.
— Para trás! disse ele a Ângelo. E presta toda a atenção ao que vais ouvir!
O ambicioso abaixou o rosto e recuou dominado.
O opulento gênio avançou alguns passos e disse, tocando no ombro da cortesã:
— Alzira! continuas então a vagar durante a noite pelo mundo dos vivos, em vez de jazeres tranqüilamente na tua sepultura?. .
— Cala-te, por amor de Deus, que essas palavras desconsolarão o meu amante, se as ouvir. ..
— Volta de vez para o túmulo! . . .
— Não! A minha sepultura é tão fria e eu morri tão moça... que, à noite, quando os vivos dormem, preciso vir aquecer-me nos braços de Ângelo. .. Não é assim, meu amor?. . . acrescentou ela, indo ter com o companheiro.
Este, porém, não respondeu, nem desviou os olhos das riquezas da caverna.
— E ele te ama?... perguntou o demônio à cortesã.
— Adora-me! afirmou a interrogada; e por mim ama a vida e os prazeres.
— Queres dinheiro, já sei, tornou aquele. Entra e enche-te à vontade. Leva o que quiseres; tudo o que levares, voltará multiplicado!
Alzira entrou na gruta. Ângelo quis acompanhá-la; o gênio de Ouro deteve-o de novo.
— Espera! Ouve! disse.
E tomou-o amigavelmente pelo braço, acrescentando:— Que te falta, ambicioso?.. . Que te falta para seres feliz?... Tens mocidade e dispões da bolsa de Alzira, a quem é permitido fartar as mãos neste inesgotável tesouro! . . .
— O que me falta? volveu Ângelo. Falta-me tudo! falta-me o poder absoluto! Queria ser um homem tão poderoso, que a um gesto meu o mundo inteiro se curvasse submisso e escravo!
— Por pouco que desejavas ser Deus!
— Oh, não! Não me fale em Deus! Não lhe invejo a grandeza! Queria uma glória mais humana, queria ter as conquistas de César e Alexandre, ligadas ao genial prestígio de Homero e Dante!
O demônio sorriu, mostrando os seus dentes de ouro luminosos, e replicou depois, fechando de novo a fisionomia:
— Não posso satisfazer tanta ambição!... Conquistam-se tronos, como verá teu espírito no século futuro, porque um homem virá ao mundo, e mesmo em França, tão atrevido, que com a ponta de sua espada descobrirá as régias frontes, para guarnecer a sua cabeça de soldado com uma coroa de imperador. . . Sim! conquistam-se coroas de rei, mas não se conquista a coroa de louros do mendigo de Tebas, porque essa não cabe em nenhuma outra cabeça. Falaste em Dante!. . . faze tua alma tão grande como a dele, e serás o mais desgraçado dos homens... Abre-lhe o cérebro, abre-lhe o peito, abre-lhe os intestinos! encontrarás nessas três regiões do pensamento, do amor e da animalidade, o modelo bêstas espoja-tedos círculos do inferno, que ele traçou no seu lancinante poema. E nesses círculos só uma força há que os iguala e nivela, é a dor! A dor de quem pensa, a dor de quem ama e a dor de quem tem fome! Queres ser feliz?. . . Vive bestialmente! opõe os teus sentidos ao teu cérebro e ao teu coração! Sê bruto, meu filho! A natureza é um pasto de bêstas— espoja-te nele, se quiseres gozar a vida!
E tirou da cinta um punhal de ouro, que apresentou ao seu interlocutor, acrescentando:
— Guarda esta arma! Defende-te com ela e vencerás sempre!
Ângelo apoderou-se do punhal.
— Obrigado! exclamou. Obrigado! Com esta arma poderei dominar os meus semelhantes!
— Se foras deveras um ambicioso!. .. Mas não o és, pois ao contrário principiarias por tentar vencer a mim próprio, para te apoderares dos meus tesouros. . . Adeus! Não passas de um ambicioso vulgar!. . .
E recolheu-se à gruta.
Alzira saiu logo em seguida, fechando-se sobre ela o pedregulho da entrada.
Fez-se de novo escuridão completa. As aves recomeçaram a doudejar desesperadas, perseguindo agora a cortesã, como se lhe fariscassem o dinheiro que ela levava consigo.
Alzira, com efeito, vinha carregada de ouro e pedras preciosas.
— Vamo-nos daqui! disse ao companheiro.
E puseram-se a subir a montanha, com os braços na cintura um do outro.
Ângelo ia preocupado e triste.
— Que tens tu?... perguntou-lhe a amante ao fim de algum tempo de caminho.
— Nada! tartamudeou ele.
— Tremes, meu amigo!. . .
— É do frio da noite. ..
E nesse instante saiu-lhes em frente meia dúzia de salteadores armados, cortando-lhes a passagem.
O amante de Alzira mal teve tempo de puxar o seu punhal e passar a amada para trás de si.
— Matem o homem e prendam a mulher, que a quero para mim! ordenou o chefe da quadrilha.
Mas os primeiros bandoleiros que se precipitaram sobre o viajante, caíram apunhalados, rolando a montanha.
— Matem-no, com um milhão de raios! exclamou furioso o chefe, levando a arma ao rosto e fazendo pontaria sobre o assaltado.
O tiro partiu, alcançando um dos bandidos, enquanto mais dois caíram aos pés de Ângelo.
— Ah! bradou o chefe, desembainhando o seu sabre; agora somos apenas um homem contra outro homem, pois veremos qual dos dois fica com esta mulher!
E atirou-se de um salto sobre o adversário, que o esperou na ponta da sua arma invencível.
— Maldito sejas! bramiu aquele já ferido. Hei de matar-te!
— Hás de morrer! tornou o outro, abrasado de cólera. Nunca mais terás olhos para cobiçar a minha amante!
E arrancando contra ele, coseu-lhe o peito a punhaladas.
— Ai! gemeu o salteador agonizando.
— Fujamos! segredou Alzira, puxando pelo braço o companheiro.
— Não! Hei de beber-lhe primeiro o sangue! Hei de beber o sangue de todo aquele que pretender arrancar-te de meus braços!
E vergou-se sobre o cadáver, colando-lhe os lábios a uma ferida do peito que sangrava.
— Ângelo! Ângelo! partamos! Olha que aí vem o dia! exclamou a cortesã.
Ângelo ergueu então a cabeça e notou que, com efeito, em volta dele tudo começava a esbater-se à luz da aurora. O próprio cadáver de cuja ferida acabava ele de despregar a boca cheia de sangue, nada mais era do que uma transparente sombra, estendida a seus pés.
E as montanhas foram-se dissolvendo, e outros objetos se acentuando por detrás delas.
E Ângelo, de olhos bem abertos, foi a pouco e pouco distinguindo e reconhecendo o seu modesto aposento de Monteli. Através da tenebrosa paisagem que fugia, viu ele surgirem lentamente as velhas estantes pejadas de livros santos, viu o seu genuflexório de madeira escura e viu surgir o altar, onde a Virgem sorria com o coração atravessado de punhais.
E ergueu-se a meio sobre a cama, tateando os olhos e apalpando a enxerga.
Levou a mão aos lábios e consultou-a depois, tal era o enjoativo gosto de sangue que ainda sentia na boca.
Os sinos tocavam lá fora, chamando para a missa. Levantou-se, abriu a janela, olhou um instante o aia recém-nascido, e em silêncio preparou-se para sair.
Daí a pouco, o seu trêmulo e negro vulto atravessava a capela, e ia cair ajoelhado nos degraus do altar, arquejando, que nem um libertino depois de uma larga noite de dissipação.
Seus olhos amortecidos, quedavam-se como que indiferentes à própria imagem defronte da qual ia ele celebrar. A sua triste figura, sombria e vacilante, já não era a de um fervoroso crente, a de um sacerdote contrito, mas sim a de um cansado ascético, que não pode nem sabe chorar nem rir.
E os fiéis começavam até a murmurar contra ele, principalmente depois que alguns pares da vizinhança se achavam de passagem em Monteli, aproveitando o tempo para conspirar contra o vigário do lugar.
— Olhe você para aquilo! segredou um dos tais a outro que tinha ao lado! Veja só se aquilo são modos de estar ao altar!... Parece um ébrio! Não é debalde que todos nós estamos prevenidos contra este esquisitão! . . .
— Creio que ele não regula bem da cabeça. . .
— É pancada, ou finge que o é!. . . Mas inclino-me a acreditar que, no fim de contas, é nada menos que um grande velhaco... Você não conhece a história que por aí corre, a respeito deste santinho com a brejeira viúva do morgado de Thevenet?. . .
— Não! Não sei de nada... respondeu o eclesiástico, já arregalando gulosamente os olhos e cheirando sorrateiramente uma pitada.
— Pois deixe acabar a missa, que eu lhe contarei tudo. . . Você vai ficar abismado! . . .