A Mortalha de Alzira/II/VIII
Pobre Ângelo! Sua alma tinha remorsos daquela noite passada em companhia de Alzira. Travava-se dentro dele. uma pungente revolta contra o misterioso inimigo, que assim o arrancava à doce e honesta tranqüilidade do leito, para levá-lo de rastos, como um perdido, pelos barrancos da fantasia, obrigando-o a percorrer antros sensuais, ao lado do fantasma de uma cortesã, que o ameaçava de voltar todas as noites.
— Maldita sejas tu, imunda fantasia! pensava ele, maldita sejas tu, danosa imaginação! Ah! se pudesse eu fechar-vos entre os dedos e reduzir-vos a pó!. . . entretanto, governa ainda os meus sentidos e perturba ainda a minha consciência!. . . O pó e a lama dos sepulcros não são menos poderosos do que a carne palpitante, quando os reanimam a nossa saudade e o nosso amor!. . . Não há mulher que de nós desapareça para sempre, quando nós deveras a amamos!... Foge-nos dos olhos, foge-nos dos braços, foge-nos dos lábios; mas da alma, ah! da alma, nunca mais, nunca mais desaparecerá a mulher amada!
E Ângelo voltou os olhos para o céu, interrogando-o. E exclamou:
— Meu Deus, teria eu pecado com o sonho desta noite?. . . O sonho, bem sei, é produto do pensamento, e por pensamento se peca tanto como por palavras e por ações; mas o sonho não obedece à vontade de quem sonha, porque, se obedecesse eu só construiria meus sonhos com as cousas que vos pertencem... Deveis saber que sou bem intencionado e que sou sincero!. . . Ah! Maldita sejas tu, minha louca e desvairada fantasia, que me fazes revoltar contra mim mesmo!. . .
Se o velho Ozéas estivesse ali, ao lado dele. Ângelo teria ao menos a quem consultar o que devia fazer contra aquele inimigo terrível e traiçoeiro.
Mas só, como se achava, o mísero vacilara perplexo. Devia penitenciar-se pelos desvarios da sua imaginação, ou devia deixar que o sonho continuasse a correr à solta, cometendo todos os desatinas que lhe aprouvesse?
Entretanto o sino lá fora o chamava para junto do altar. O sino o chamava para que fosse ele erguer a hóstia consagrada acima da sua atordoada cabeça, oferecê-la a Deus em sacrifício!
Deveria ir?...
Sua alma estaria em suficiente estado de pureza, para arrastar-se até ao supremo trono do Criador, ou deveria a mísera arrojar-se por terra, envergonhada e corrida, à espera que as lustrais águas do tempo perpassassem bem por cima dela e a limpassem de todo?
Mas se ele em tudo aquilo não tinha a menor culpa?... Mas se o seu coração era puro, e só, em consciência, se preocupava com as causas divinas?...
Que deveria, pois, fazer?...
E o sino tocava, tocava, chamando-o com insistência.
Ângelo preparou-se, saiu do quarto e dirigiu-se para a capela, em silêncio e aligeirando o passo.
— Sim, sim! pensava ele pelo curto caminho. O meu lugar é lá, junto do altar!. . . O meu lagar é aos pés da Divindade!. . . Que importa que as bruxas do sonho maquinem e conspirem durante a noite, furtando-me a alma a Deus?. . . Eu sou da Igreja, só à Igreja pertenço, e é lá que devo estar como um marinheiro a bordo do seu navio, principalmente em dias de tempestade!
E entrou na capela.
Os aldeões o esperavam ajoelhados na nave, contritamente. Alguns tinham ao lado as ferramentas que deviam servir ao seu trabalho desse dia. Mulheres amamentavam os filhos, com os olhos fitos nas imagens dos santos. Velhos, secos e nodosos como esqueletos de árvore ressequidas pelo inverno, vergavam a cabeça sobre as trêmulas mãos apoiadas no bordão.
Os pardais e os melros chilreavam por entre as frestas das altas paredes da capela, caiada de cima a baixo.
As velas do altar derretiam-se tristemente, consumidas pela surda chama que a sanguínea luz da manhã tornava desluzida e lívida.
Ângelo atravessou a igreja, de olhos baixos, e foi colocar-se de joelhos nos degraus do altar.
A sua oração preparatória nesse dia durou mais tempo que nos outros. Notaram que as lágrimas lhe corriam pelas faces, quando ele se ergueu para celebrar o sacrifício.
E seus lábios tremeram na ocasião de receber a hóstia consagrada. Naquela alma, imaculada e sincera, um doloroso escrúpulo tolhia a confiança na sua própria pureza.
Mas celebrou.
E depois voltou-se, de braços abertos para os crentes, abençoando-os em nome do Pai de todos os homens.
Os sinos repicaram de novo.
Ângelo, mais sucumbido ainda que antes do sacrifício, retirou-se da igreja cabisbaixo e concentrado.
À saída, um cavalheiro saiu-lhe ao encontro e tirando o chapéu, disse-lhe cortesmente:
— Perdão, sr. vigário; tenho que desempenhar uma sagrada missão ao lado de vossa reverendíssima. . . Sagrada, porque é voto de uma pobre criatura que já não existe. . .
Esse cavalheiro era o conde de Saint-Malô.
Ângelo convidou-o a entrar em casa.
— Tenho um companheiro comigo. . . observou o conde, chamando com um gesto Artur Bouvier, que o esperava a certa distancia.
Depois de trocados os cumprimentos, entraram os três na modesta sala de jantar do pároco. Bouvier não se fartava de olhar para este como se observasse um fenômeno precioso pela raridade.
Naquela pobre casa desfavorecida do menor conforto, a elegante roupa de seda bordada a ouro dos dois cavalheiros destacava-se escandalosamente. Ângelo, defronte deles pálido e mal vestido, parecia um esfarrapado cadáver saído naquele instante da vala comum dos miseráveis.
Uma idéia o preocupava todavia, desde o momento em que os considerou de perto. É que, ao vê-los assim, cheios de saúde, gentilmente vestidos e empoados, levantando entre as abas da casaca a petulante ponta do florete, lembrava-se da sua própria figura essa noite ao lado de Alzira, e seria capaz de jurar que já em sua vida, ou nos seus sonhos, tinha visto aqueles dois homens.
Salomé trouxe-lhe pão fresco e leite fervido.
O pároco deu às visitas os melhores assentos que havia na casa, e ofereceu-lhes do seu almoço.
Enquanto comiam, o conde expôs o motivo da sua viagem a Monteli.
— Venho, senhor cura, disse ele, entregar-lhe um cofre e uma carta, que encontramos no espólio da falecida condessa Alzira... Aqui estão. Trazem o seu nome.
— O meu nome?. . . balbuciou Ângelo, a tremer, visivelmente perturbado, mas. . .
— Testamenteiros dela, como somos, acrescentou o conde, indicando ao mesmo tempo Bouvier, cumpre-nos fazer entrega desses objetos. Ei-los.
E apresentou-lhe um pacote de pouco mais de um palmo de tamanho, cuidadosamente embrulhado e lacrado. Tenha a bondade de recebê-los.
Ângelo, sumamente pálido, estendeu a mão, hesitante.
E tal era o seu tremor, que o conde teve de ajudá-lo a quebrar o selo do pacote e tirar de dentro a carta, que lhe passou incontinenti.
— Leia, disse. Creio que esse papel explica a razão de ser do cofre. ..
Ângelo abriu a carta e leu o seguinte:
"Respeitável Cura de Monteli.— Desejo e peço a Vossa Reverendíssima que se encarregue de distri-buir pelos infelizes da sua pobre paróquia, ultima-mente tão vitimada pela peste, a quantia que acom-panha esta carta e que se acha dentro de um cofre, por minha mão fechado e sobrescritado a Vossa Reve-rendíssima. Outrossim, peço que nas suas orações de santo interceda algumas vezes junto a Deus por minha triste alma pecadora arrependida e contrita."
Assinava "Alzira".
Com a leitura daquelas palavras, que pareciam vir do outro mundo, que pareciam vir do fundo nebuloso dos seus sonhos, Ângelo estremeceu todo e fez-se mais lívido que a própria Alzira, no momento em que ela pela primeira vez lhe surgiu da sepultura. Aquela carta, que um frio sopro de morte lhe arrojava às mãos, vinha obrigá-lo a pensar nessa mulher já extinta, que tanto aliás o procurava ainda.
Oh! Aceitando aquela missão teria que pensar nela eternamente. . . Teria que envolver seu nome impuro nos sagrados dizeres das suas fervorosas orações!... Teria que falar a Deus a respeito dessa misteriosa cúmplice, de quem ele se não queria recordar nunca, e teria de a fazer conhecida e abençoada por todos os pobres da aldeia, enquanto durasse aquele dinheiro, fruto da prostituição!
E repeliu o cofre, disposto a não aceitar o encargo.
Mas pensou, antes de proferir a recusa; teria ele porventura o direito de assim proceder?.. . Teria ele o direito de privar os miseráveis de Monteli daquele utilíssimo socorro, que uma alma, sedenta de perdão, lhes enviava do seu leito de morte?. . .
E não seria fraqueza de sua parte, temer tanto ao traiçoeiro inimigo, que o vinha surpreender à noite durante o sono, quando justamente a sua consciência não era responsável pelos seus pensamentos?. . . Pois então a sua fé e a sua confiança em si próprio eram tão frágeis e tão mofinas, que assim covardemente fugia da luta, antes mesmo de começar o combate?
— Não! pensou ele, resoluto, pondo-se de pé e estendendo a mão sobre o cofre. O meu dever será cumprido! Se mais sofrimentos me estão reservados por isso, tanto melhor! tanto melhor, porque mais completa será a minha provação! Maria sofreu muito mais, quando lhe arrancaram o filho dos seus amorosos braços de mãe, para atirá-lo aos cruentos braços de uma cruz!
E, voltando-se tranqüilamente para os outros dois, disse-lhes sem hesitar:
— A vossa comissão, cavalheiros, está terminada. este dinheiro será discretamente distribuído pelos necessitados, e eu pedirei a Deus pela alma de quem lhes envia a esmola...
O conde e Artur Bouvier fizeram as suas despedidas. Ângelo foi acompanhá-los até à porta, e depois recolheu-se ao quarto, colocando o cofre sobre a mesa.
Despejou-o. O conteúdo elevava-se à quantia de cinqüenta mil francos em várias espécies. O pároco separou logo algumas placas de ouro e prata, para nesse mesmo dia principiar a distribuição de socorros.
Oh! ele, sabia melhor que ninguém aonde aquele dinheiro deveria encontrar o seu destino!. . . Quantas vezes, pensando em certas desgraçadas famílias de jornaleiros, reduzidas à fome pela poste, não chorou amargamente por nada mais de seu ter para lhes dar?... Quantas vezes não se privou do mais que restritamente necessário, para que não faltasse o leite a um desgraçadinho a quem já faltava mãe?. . . Quantas vezes não levou a sua esfarrapada batina à casa dos ricos do lugar, e não lhes estendeu a mão, esmolando para os que choravam de penúria e de frio?. . . Quantas vezes não se privou dos lençóis da cama, para cobrir com eles o corpo dos que gemiam na enxerga nua?. . .
Sim! Aquele dinheiro ia ser manancial de consolações!... Alzira, se durante a vida cometera muitos crimes, praticara na sua última hora uma ação boa lembrando-se dos desamparados da fortuna.
Mas Ângelo, ao repor as cédulas no fundo do cofre, notou que um longo fio de cabelo louro envolvia-se nos seus dedos.
Tomou-o pelas extremidades e ergueu-o até à altura dos olhos.
Era sem dúvida um cabelo de Alzira!. . . considerou ele, perturbando-se. Era um triste e perdido raio de um sol que para sempre se apagara!. . .
E deteve-se a fitá-lo, embevecido de saudade.
Oh! por que Deus fizera assim longos os cabelos da mulher?. . . Por que lhos dera tão grandes e tão abundantes, se ela já não precisava deles, como outrora a Eva no Paraíso, para esconder a nudez de seu pudor?. . .
E continuava a fitar o tênue fio de ouro, perdido num dédalo de cogitações, que o arrebatavam para o mundo ideal das suas loucuras. Mas um sopro de brisa entrou pela janela do jardim e arrebatou-o dos dedos.
Ângelo acompanhou-o com a vista. O dourado fio de cabelo ondeou no ar, espreguiçando-se, e subiu ainda, para depois voltar de novo lentamente, até ir cair afinal sobre os brancos pés da imagem de Maria.
O pároco não se animou a reavê-lo, nem enxotá-lo daquele sagrado asilo.
Quem saberia, pensou ele, se Alzira, que já não tinha lábios, nem olhos, para suplicar, não houvera, do fundo do seu eterno desterro, mandado um fio dos seus cabelos transmitir à Virgem o voto do seu arrependimento?
E voltou à mesa, assentou-se, e, tomando o cofre entre as mãos, começou a considerá-lo atentamente. Era um lindo objeto de luxo, uma boceta de ébano com incrustações de ouro, e guarnecida de artísticas miniaturas em marfim, que representavam assuntos mitológicos.
Em cima, na tampa, havia o nome da cortesã, cercado de flores e borboletas.
Ângelo continuou a admirar o bonito estojo, voltando-o de todos os lados, abrindo-o e fechando-o repetidas vezes.
Mas de repente, estremeceu e repeliu-o, torcendo o rosto para não vê-lo.
Tinha descoberto, entre um grupo de anjinhos e cupidos cor-de-rosa, um pequeno oval de meia polegada com um delicadíssimo retrato de Alzira, primorosamente trabalhado, e de uma semelhança inexcedível.
Não quis vê-lo; voltou as costas ao cofre. Mas seus olhos instintivamente procuravam a formosa miniatura.
E o mísero compreendeu e pressentiu que aquele retrato, era mais um inimigo que lhe invadia traiçoeiramente o espírito.