A Mortalha de Alzira/II/VII

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O sonho continuou.

Ângelo, ao lado de sua fantástica companheira, deixou-se arrebatar na vertigem de um galope tão lesto, que lhe dava a sensação de um vôo contínuo e rápido.

A floresta fugia em torno deles como duas faixas de treva compacta, que se rasgava de vez em quando ao súbito bruxulear dos relâmpagos.

Depois sentiram-se dentro de uma estreita e profunda galeria toda de pedra, onde o tropel das patas dos cavalos ressoava como um frenético martelar de ferreiros infernais. E afinal acharam-se defronte de um estranho palácio erguido em abóbada, cujo átrio solenemente se abria em arcadas, iluminado por um sinistro luar fosforescente.

Os animais estacaram desalentados, soprando forte pela boca e pelas ventas.

— Apeemo-nos, disse Alzira, dando um salto em terra.

O companheiro imitou-a.

— Onde estamos?. . . quis ele saber.

— Verás. Caminha comigo.

E penetraram numa extensa galeria toda formada de ossos.

Ângelo olhava para os lados, considerando aquelas longas colunas feitas de caveiras e de tíbias, por entre as quais perpassavam fugitivas sombras silenciosas, que o perturbavam.

Às vezes queria parar para ver melhor, mas Alzira arrastava-o pela cintura, segredando-lhe que se não detivesse ali um só instante.

— Vamos! Vamos! dizia ela, impaciente.

É só deteve o passo ao chegar a um enorme salão, singularmente ornado de estátuas em esqueleto e iluminado por milhares de piras bruxuleantes. Uma vasta galeria perdia-se ao fundo, multiplicando as colunas a perder de vista.

Ao centro um grande órgão, em que velho e carcomido esqueleto, todo vergado sobre o teclado, tocava, com os seus movimentos demoradíssimos, uma arrastada harmonia funerária.

Ao lado do órgão outros esqueletos dançavam estranhamente, requebrando-se por entre sombras e fantasmas vaporosos.

Sobre cochins de veludo negro, enfeitados de lágrimas de prata, damas e cavalheiros, que pareciam ter saído naquele instante das sepulturas, bebiam e conversavam meio abraçados, trocando sorrisos e beijos.

Por toda a parte viam-se, passeando aos pares, espectros de homens e de mulheres; uns com os ossos à mostra, outros envolvidos em longas túnicas sombrias. Aqui declamavam versos de amor, ali carpiam saudade eternas, e todos surdamente e lentamente se agitavam, se confundiam e se baralhavam.

— Companheiros! disse um espectro no meio de um grande grupo, empunhando a sua taça, de onde saía um tênue vapor fosforescente. É preciso aproveitarmos bem as horas de que dispomos! A noite vai adiantada!. . . A aurora não tarda aí. . . Bebamos e folguemos!

— Bebamos e folguemos! responderam os outros, erguendo cada um a sua lívida taça.

E ouviu-se um coro entoando surdamente uma canção de prazer.

Alzira aproximou-se do grupo, acompanhada por Ângelo.

— Oh! exclamaram com surpresa, ao vê-la chegar. Sê tu bem-vinda!

— Eis Alzira que volta! Viva a formosa Alzira!

— Sim, respondeu ela; eis-me de novo convosco, meus queridos e eternos camaradas! venho de novo reclamar o meu lugar e a minha taça nos vossos belos e misteriosos festins!

— Supúnhamos que não voltasses, observou um esqueleto.

— Mal havias chegado, fugiste logo. . . acrescentou outro.

— Ausentas-te de nós tão chorosa e tão triste!. . . interveio um terceiro.

— Mas volto alegre como vêem!. . . declarou ela.

— De onde vens?

— Do mundo dos vivos.

— Da terra?... exclamaram todos.

— E verdade, amigos, venho da terra. . .

— E que foste lá fazer?. . .

— Buscar o meu amante. Cada um de vós tem junto de si a pessoa amada; eu precisava também ir buscar aquele por quem minha alma se apaixonou. Ei-lo!

E tomando Ângelo pela mão, apresentou-o à roda.

Ângelo saudou-os com um amável movimento de cabeça. Mas os espectros mediram-no com um revesso Olhar de desconfiança.

— Parece um vivo!... objetou um deles, considerando-o da cabeça aos pés.

— É, infelizmente é um vivo!... confirmou Alzira com ar de tristeza. E por isso mesmo mais me custou a trazê-lo comigo. . .

— E como o conseguiste?. . .

— Indo a suplicar a Deus que mo confiasse durante as horas consagradas ao sono.

— E o Criador cedeu ao teu pedido?. . .

— Não! Cedeu às minhas lágrimas, cedeu à sinceridade do meu desespero, cedeu à eloqüência da minha dor! Quando minha alma, recendendo o aroma do primeiro beijo que recebi de Ângelo, penetrou nos céus e foi arrojar-se aos pés de Deus, todos os seus anjos choraram com a minha mágoa de amor, e uniram as suas vozes celestiais à minha súplica terrestre.

E, recuperando o ar de satisfação com que entrara:

— Ah! mas agora estou resplandecente de alegria.

E passou os braços em volta do pescoço do seu companheiro, e perguntou-lhe com a boca junto aos lábios dele.

— Não é verdade, meu Ângelo, que todas as noites, mal o sol se esconda, serás meu, só meu, para sempre, como aqueles dois velhos amantes de três mil anos que ali vão abraçados?. . .

— Quem são eles?... perguntou Ângelo, observando as duas sombras que ela indicava.

— Esope e Rodope. Mas, responde, amado da minha alma; não é verdade que durante as doze horas do dia pertencerás à outra vida, mas durante a noite serás todo desta, onde estaremos juntos?. . . Fala!

E, como percebesse que Ângelo se intimidava com a presença dos espectros:

— Confundem-te os nossos companheiros?... criança que és tu! pensas que ainda estás na outra vida! Aqui o amor não é um mistério ou um pecado... ninguém aqui dissimula o que sente, porque ninguém sabe fingir!. . . Olha! Não vês além, junto daquelas colunas, como aqueles dois se beijam?... Anda! Beija-me tu também!

— Sim, Alzira! respondeu Ângelo com transporte. Eu te amo, e estou disposto a nunca mais me separar de ti!

— Bravo! exclamou um espectro. Agora sim, Alzira, já não desconfiamos do teu amante. Ele pode ficar conosco!

— Foi a tua última paixão?... perguntou à condessa não únicauma dama sepulcral.

— Ultima não— única!— respondeu aquela. Só a este amei na outra vida! este será o meu amor eterno! Desde a vez primeira em que o vi, minha alma voou logo para ele. Pertenço-lhe!

— Minha alma és tu! exclamou Ângelo. Sou todo teu! Só a ti amarei sempre!

— Bravo! Bravo! gritaram os outros. Ao amor! Ao amor! Ao amor!

E as taças tocaram-se freneticamente.

— Ao amante de Alzira! brindou um. Ao primeiro vivo que se animou a penetrar em nosso mundo ideal! Ao temerário Ângelo!

— A Ângelo!

— A Ângelo

— Agora, amigos, acrescentou o espectro, continuemos os nossos idílios. Deixemos Alzira em liberdade com o formoso amante!

E o grupo dispersou-se, formando-se diversos pares, que se afastaram, segredando palavras de ternura.

Alzira passou o braço nas espáduas de Ângelo, e os dois começaram a percorrer o estranho lugar em que se achavam.

Penetraram na extensa galeria que se desdobrava ao fundo.

— Onde estamos nós agora, minha querida?... perguntou Ângelo, penetrando na galeria de ossos e olhando em torno de si. Que estranhas sombras são estas que se cruzam em volta dos nossos passos?... Quem são aqueles espectros que conversavam conosco? . . .

Alzira chegou a boca ao ouvido dele. para dizer-lhe: — São as minhas iguais e os seus respectivos amantes . . .

— As tuas iguais?. . .

— Sim, confirmou a condessa; são as cortesãs de todos os tempos e de todos os lugares da terra. Nesta, como na outra vida, cada uma de nós procura o lugar que lhe compete. Achamo-nos agora em uma das secções da grande região das amorosas; esta é a secção das infelizes que, como eu, prostituíram o corpo na outra vida!... Todas elas vem ter aqui após o seu passamento, e a cada uma só acompanha o homem que no mundo a amou deveras e foi por ela correspondido.

E apontando para duas sombras que atravessavam nesse momento por defronte dos seus olhos:— Olha! Vês esse par que aí vai, conversando em segredo?... E' Cleópatra e Marco Antônio. Assim conversam há vinte séculos!. . . A outra que os sucede, enternecida e chorosa, é a imperatriz Teodora; a sombra que lhe beija os cabelos, é a sombra de Adriano. Amam-se ainda!. . .

— E aquela outra?. . . indagou Ângelo, mostrando um belo espectro coroado de rosas vermelhas.

— E Valéria, explicou Alzira.

— Valéria?...

— Sim, a infame e formosa Messalina. Supunhas talvez que a infeliz não tivesse ninguém para a acompanhar neste mundo ideal do amor!... Enganas-te; aquele que a segue, de olhos baixos, e cujo coração vês ainda palpitar sangrento através das brancas cavernas do peito, é o seu gentil escravo Ismael, a quem ela deu a virgindade do corpo, justamente na primeira noite do seu casamento com Cláudio.

E voltando-se para outro lado, acrescentou:

— Olha lá Aspásia e Alcibíades, Dido e Enéias, Safo e Faon. Vê como cada qual desliza esquecido no seu amor. . . Ali vem, prosseguiu ela, a linda e desditosa Gabriela; anda à procura da sombra de Henrique IV! Aquela outra é Laís; acompanha-a o esqueleto de Diógenes, trazendo ao pescoço a sua lanterna para sempre apagada. . .

Nesse instante desfilaram diante deles Marion de Lorme ao lado de Didier, e a pálida Margarida de Valois de braço dado com o duque de Guise.

Alzira segredou o nome deles ao ouvido de Ângelo.

— E aquele par que se beija tão apaixonadamente?... perguntou-lhe este.

— Rizzio e Maria Stuart... A outra que diz agora um segredo ao seu cavalheiro, é Bianca Capelo.

— E essa que aí vem tão soberana?

— Impéria. Conheces aqueles dois?... Helena e Páris...

— E o outro par?

— Catarina da Rússia. O soldado que a acompanha, ninguém sabe quem é. . .

— E esta, quem será? olha o seu porte carrancudo e altivo!

— Lucrécia Bórgia, segredou-lhe Alzira.

Mas uma geral agitação começava a apoderar-se de todos aqueles casais de espectros. A música do órgão, até aí arrastada e lenta, principiou também a fazer-se nervosa, acelerando o seu andamento, até transformar-se num infernal galope, que arrebatava o turbilhão das sombras numa vertigem doida.

E, freneticamente, puseram-se todas a dançar, aos beijos e aos abraços passando e perpassando no delírio de uma dança sensual.

— Que é isto agora?. . . perguntou Ângelo, prendendo o braço na cintura de Alzira. Por que é que todos se agitam deste modo?

— Ah! explicou ela com um espreguiçamento voluptuoso. É um frenesi de amor...

E suspirou luxuriosamente.

— Não compreendo. . .

— É que Deus, elucidou a cortesã, nos seus bons momentos de ternura afaga os mundos, e essa carícia lhes produz lascivos estremecimentos. Neste instante um súbito espasmo sensual percorre toda a natureza. Em cada corpo animado há um sobressalto de amor. Neste instante toda a criação se predispõe a procriar; as feras e as borboletas, os homens e as boninas, acoitam-se e beijam-se, para garantia da interminável cadeia da vida! Olha! Vê! Todos se afagam! Todos se abraçam! . . .

— Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu mesmo sinto percorrer-me o corpo um sobressalto estranho!

Alzira atirou-lhe os braços em volta do pescoço, e arrastou-o para o turbilhão das sombras que giravam aos pares.

E ouviu-se um coro de vozes, entrecortado de suspiros, a cantar, dançando:

Tenhamos amores! Ó feras! Ó flores! Condores! Panteras!

Amai-vos! Amai-vos!

E seguia-se um crepitante estribilho de beijo

Cruzai vossas

graças,

Ó entes

De raças

Diferentes!

Ó gentes,

Amai-vos! Amai-vos!

E novos beijos se estalavam.

E o frenesi chegou ao auge do delírio, e as vozes e os suspiros perderam-se todos num só grito, prolongado e agudo, um ai supremo, que resumia todas as vozes da natureza.

Houve um instante de espasmo, em que todos aqueles espectros fremiram convulsivamente, chocalhando os ossos uns com os outros. Depois a música foi de novo enfraquecendo, e os gemidos foram-se apagando, como as derradeiras notas de uma cantante caravana que se afasta.

E um desfalecimento geral empalideceu mais ainda a trêmula chama das piras, e os espectros começaram a dissolver-se à fulgurante luz da aurora, que ralava lentamente, atravessando a imensa abóbada fantástica.

E brancas figuras esbatiam-s e, vaporosas como as cambraias da manhã, que o sol desfia e esgarça com a dourada ponta dos seus raios.

Ângelo mal podia já distinguir a sua amada.

— Alzira? disse ele.

— Adeus. . . respondeu o eco fugitivo de uma voz de mulher. Aí chega o dia'.. . separemo-nos!...

— Quando voltas?

— À noite, sem falta! Às mesmas horas de

ontem . . .

E o murmúrio de um beijo esvoaçou-lhe nos lábios.

— Adeus...

E Ângelo abriu os olhos.

Acordara.

Ergueu-se com um salto. O dia entrava-lhe já pelas vidraças da janela, o sino da igreja repicava chamando para a missa.