A Mortalha de Alzira/II/VI

Wikisource, a biblioteca livre

Salomé, que entrava trazendo na mão a bandeja com a merenda estacou, ao dar com Rabina

— Por onde entrou este mariola?.. .

— Pela janela, disse o rapaz.

— Pela janela?!

— Foi o sr. vigário que me deu licença. . . acrescentou Rabina coçando a nuca e passeando o olhar entre a criada e o padre.

— Pois o sr. vigário fez muito mal!.. . declarou a mulher, depondo a bandeja sobre a mesa. Fez muito mal em deixar este tratante saltar a janela! Assim ele, nunca tomará caminho! Não sei o que quer dizer um biltre que. ..

Ângelo cortou-lhe a frase, segurando-lhe uma das mãos com ambas as suas.

— Minha boa Salomé, interrogou vivamente interessado; diga-me com franqueza uma cousa: está bem certa de que eu ontem à noite não saí de casa?... Vamos! responda-me lealmente!

— Pior vai o negócio! . . . pensou a criada, e acrescentou em voz alta:— Como quer que lhe diga que não, sr. vigário?...

Ângelo voltou-se para o pequeno:

— E tu, perguntou-lhe, estás bem certo de que viste o enterro da. . .

— Da Condessa Alzira?. . . acabou Rabina Ora se estou! Pois se de lá venho!

— Eu cada vez entendo menos... resmungou Salomé.

E disse, de si para si:— Muito custa a mentir, mesmo por conta alheia!. . .

Depois, continuou em voz alta, falando ao cura, que parecia muito preocupado:— O verdadeiro, sr. vigário, é tomar a sua merenda, que está esfriando, e deixar-se de querer saber de cousas que se não explicam! . . . Boa noite! Vou acender o altar da Virgem. . . Agora, veja se se deixa ficar aí, a cismar, em vez de fazer a sua refeição. . .

E, dando uma palmada na cabeça de Rabina

— Anda tu também, daí, ó coisa-ruim!...

— Boa noite, senhor vigário!

Ângelo ao ficar só, cruzou as mãos sobre o ventre e fechou as sobrancelhas fixamente, no mais intenso ar de interrogação e de pasmo.

— Com que. . . pensou ele; sonhei que a vi morta, e ela com efeito morreria, justamente nessa ocasião. . . Logo, Deus não me abandonou de todo, e, ao contrário, protege-me, envolvendo-se neste meu amor pecador e profano!. . . Ah! sim, recordo-me agora que, no estranho sonho dessa noite, a própria Alzira me dizia que o Criador é o grande e nutriente manancial de ternura, que noite e dia se derrama sobre o mundo, para o fecundar, como o sol fecunda a terra!... Sim! sim! agora tudo compreendo! É Deus que vem em meu socorro! é Deus que me acode e me aparece em sonhos, como fazia antigamente com os eleitos do seu amor!. . . Sim! é que o pai misericordioso, reconhecendo a minha inocência e a pureza do meu desespero, enviou-me por um dos seus anjos o beijo de paz! . . .

E, abrindo ambas as mãos sobre o peito, respirou desabafadamente, e, cousa que havia muito não fazia, sorriu.

— Ah! suspirou; que dose tranqüilidade sinto agora invadir-me a alma!. . . Obrigado meu bom pai! meu bom senhor! meu bom amigo!

E deixou-se cair de joelhos no chão, com os braços abertos e os olhos erguidos para o céu, na favorita postura dos seus êxtases.

— Meu protetor e meu abrigo, disse contritamente; às vossas sacrossantas mãos me entrego todo, para que me protejais contra as cousas vis e torpes deste lameiro de lágrimas!... Minha alma já não sente o frio que a torturava; sente-se aquecida e agasalhada no aconchego do vosso peito de amor e perdão, sente-se fortalecida na fé e na confiança da vossa infinita bondade! Meu coração, pai dos desamparados, já me não quer saltar encandecido de dentro do peito em brasa, e meu sangue já me não ameaça sufocar o cérebro com uma terrível e infernal onda de fogo... Obrigado, meu Deus!

E acrescentou, depois de respirar de novo, sorrindo para o espaço:

— A luz da vossa divina graça principia a iluminar-me, como nos primeiros tempos da minha virginal pureza d'alma. Vou adormecer como dantes, como um justo, como um dos vossos servos bem-aventurados. . . Amanhã poderei enfim celebrar o sacrifício da missa, sem o menor escrúpulo de consciência. . . Já não recearei que meus lábios queimem a hóstia consagrada com o fogo que os abrasava. . . Obrigado, meu Deus!

E fez o sinal-da-cruz, ergueu-se, e recolheu-se à cama.

Daí a pouco dormia tranqüilidade, sorrindo

como uma criança.

A casa adormeceu também. Só se ouvia o vento da noite sussurrar nas folhas dos castanheiros lá fora na estrada.

Ângelo principiou a sonhar:

Um coro etéreo descia dos céus e vinha cantar-lhe ao ouvido o epitalâmio dos anjos. O nicho da Virgem iluminava-se de fogos cambiantes, derramando no aposento uma doce claridade de luar multicolor, e a Santa sorria para ele, banhada de ternura, toda de branco e coroada de flores de laranjeira, como uma noiva.

Ângelo volta-se todo para ela e sonha que lhe estende os braços, pedindo-lhe que desça do seu altar e venha colocar-se ao lado dele.

Mas a Virgem começa a tomar as feições de Alzira. A sua branca roupa de noiva transforma-se em longa túnica mortuária, soltam-se-lhe os cabelos e caem-lhe pelas espáduas, como os da morta do castelo de Aurbiny.

Os olhos tingem-se-lhe de uma sinistra sombra cadavérica, e os seus lábios fazem-se roxos e tiritantes de frio.

Ângelo tem medo e volta-se todo contra a parede, cosendo-se aos travesseiros e tremendo aflito.

Mas o espectro de Alzira desce do nicho, e dirige-se para a cama dele.

Ângelo, frio de terror, sente-lhe os passos no chão, e ouve o estranho pisar daqueles pés duros e ossificados pela morte.

Retrai-se, encolhe-se, e arqueja com o rosto escondido.

Mas Alzira vai até à cama, verga-se sobre ele e toca-lhe no ombro com a mão gelada.

O mísero quer gritar e não pode.

Ela senta-se ao lado dele. e beija-lhe os cabelos.

Ângelo estremece, mas um voluptuoso fluido percorre-lhe o corpo inteiro, acorda-lhe o coração do sobressalto em que estava, e o seu medo vai a pouco e pouco desaparecendo.

— Ângelo!... disse-lhe ao ouvido o espectro, com a voz mais doce e amorosa que um suspiro de saudade; Ângelo, amado de minha alma! . . . Ouve! . . . Volta-te para a tua Alzira!... Escuta-me!...

— Alzira? exclamou ele, voltando-se.

— Sim, meu amado, sou eu...

— Que desejas de mim?... De onde vens?...

— Venho de muito longe... venho da outra margem da vida, que tu ainda não conheces. . . venho do mundo dos mortos, mundo de sombras e de sonhos!. . . venho de onde nada se conserva desta vida senão a memória de ser aqui que amamos!...

— E que desejas de mim?. . .

— A tua companhia. Venho buscar-te.

— Buscar-me?...

— Sim. Com a força do meu amor, consegui vencer o abismo que nos separava e chegar até aqui. Minha alma foi arrojar-se aos pés de Deus e pedir-lhe, pelo muito que sofri em vida por amar-te em segredo, que lhe concedesse a graça de aparecer-te todas as noites durante o sonho. Deus, apiedado, porque eu te não possuí na vida dos sentidos, consentiu que me pertencesses nesta existência espiritual, melhor que a outra. Aqui me tens, e todas as noites, mal adormeças, eu virei buscar-te.

Ângelo escutava-a atentamente.

— E para onde tencionas levar-me?. . . perguntou depois do primeiro abalo.

— Para toda a parte, respondeu Alzira, onde possamos esquecer as dores que já sofremos, e fruir as delícias que ainda não gozamos! Para toda a parte, onde cada lágrima derramada pelos nossos olhos, seja resgatada por um beijo de nossos lábios. . .

E deu-lhe um beijo na fronte.

Ângelo soltou um gemido e retraiu-se.

— Que tens?. . . indagou ela com meiguice.

— É que teus beijos são frios como as gotas da noite! . . . Parecem beijos de uma estátua gelada!. . .

— Sim! Enregelei na viagem. . . Ah! São tão frias as paragens que percorri!. . . Mas tu me aquecerás com os teus ardentes lábios de moço! tu me darás um pouco de calor do teu sangue!

Ângelo retraiu-se ainda.

— Não tenhas medo, prosseguiu ela; este frio é todo exterior, meu coração arde-me dentro do peito, como um vulcão sob a neve. Não fujas de mim! Vamos! Ergue-te! Principiemos a nossa existência feliz! Vem, que só poderemos estar juntos até ao raiar do dia! Não há tempo a perder!. . .

E a sua túnica mortuária transformou-se por encanto num rico vestido de castelã da época, e o seu porte readquiriu a primeira graça fascinadora.

Ângelo ergueu-se deslumbrado, e viu com surpresa que a sua pobre sotaina também se transformava nas belas roupas de um cavalheiro nobre, e que seu corpo readquiria destreza e força.

— Que é isto? exclamou ele.

— É uma das vantagens da nova existência que te ofereço. Agora já não és um miserável cura de aldeia, és um homem, és livre, és senhor do teu corpo e de tua alma! Correrás comigo o mundo inteiro! Ao meu lado conhecerás todos os gozos, todas as paixões, tudo enfim que na outra vida representa os prazeres que te são vedados!

Ângelo passou-lhe o braço na cintura.

— Sim! sim! disse. Eu irei contigo! Quero gozar! Quero viver!

E uma larga estrada maravilhosa abriu-se defronte deles, onde dois negros cavalos, esplendidamente ajaezados, impacientes os esperavam relinchando.

— Vamos! Vamos!

Ângelo e Alzira montaram e partiram agalope.