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A Mortalha de Alzira/II/X

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Ângelo nunca fora amado por grande parte dos seus colegas, e a razão disso estava na inconsciente fortuna com que se iniciou Ele,trás não na vida pública, e no prestígio de santo que logo lhe deram os seus paroquianos.

É assim sempre em todas as classes sociais. Os nossos confrades estão sempre bem dispostos a nosso favor, enquanto não lhes tomamos a dianteira. Todas as flores são poucas para nos atirarem; desde o momento, porém, que os deixamos para trás— não há pedras no chão que cheguem para satisfazer a sua avidez de quebrar-nos a cabeça e as pernas.

Os padres a Ângelo invejavam, menos no que este realmente era, naquilo que, por moto próprio ou por sugestão de Ozéas, ele desdenhava ser.

Mas o coração de um homem paro é como o sândalo, que perfuma o machado que o decepa. O coração de Ângelo embalsamava a boca dos caluniadores que o mordiam.

Prova-o a tal famosa história, que o padre na capela prometeu contar ao outro, envenenando-a sem dúvida, e a qual tinha afinal a sua base na mais legítima bondade cristã, como se pode ver pela seguinte exposição do próprio fato:

A viúva do morgado de Thevenet era mulherzinha de má nota. Em Monteli falava-se, à boca pequena, a respeito dos seus desregramentos amorosos. Constava mesmo que certa rapariga morrera de desgosto, porque o seu noivo cairá um dia nos braços da maldita, e nunca mais conseguira despregar-se deles, senão para ser enterrado.

Entretanto, Ângelo, logo nos seus primeiros tempos de Monteli, uma vez, depois de uma das prédicas da quaresma, fora surpreendido em casa com a visita da

viúva.

Recebeu-a amavelmente, como a todos recebia.

A mal reputada senhora não procurou rodeios para confessar a profunda impressão que sentira, ouvindo as simples e sinceras palavras do eloqüente pregador, e, tal fora a súbita vergonha que lhe veio pelas impurezas do seu passado, que àquele pediu encarecidamente para ajudá-la na obra da sua regeneração.

Chorou. E o presbítero compreendeu que aquelas lágrimas não eram fingidas, e que ali estava a seus pés uma alma capaz de convicto arrependimento.

Não hesitou um instante, pôs-se logo à disposição dela, pronto a servir-lhe de guia espiritual. O primeiro conselho que lhe deu, foi que alijasse de si, e de uma só vez, todos os seus antigos pensamentos, e procurasse criar novos, inspirados na moral cristã e no exemplo dos justos, porque, desde que os pensamentos fossem bons, as ações seriam boas conseqüentemente.

Ela prometeu obedecer.

Depois aconselhou-a a que procurasse, antes de entrar na prática da piedade, exercer sinceramente a caridade, como um salutar curso preparatório e caminho mais curto e mais seguro para aquela.

— A piedade, dizia ele, é flor mimosa e exigente; só pode ser exercida com bom proveito, quando o coração de quem a pratica se acha em absoluto estado de paz, e quando se sente feliz e satisfeito consigo mesmo. Sem a inteira harmonia de todos os atos e de todas as intenções, ninguém pode, minha irmã, ser piedoso e justo. A piedade é o perfume da moral religiosa, é o lírio branco e místico do amor pelos seus semelhantes. Sede virtuosa convosco mesma e sede boa para todos sem distinção de ninguém, que a piedade derivará dos vossos atos, como a paz deriva da consciência reta e cônscia do cumprimento dos seus deveres. Ah! se não fora esse inquebrantável apoio, como seria eu o mais desgraçado dos homens! E, no entanto. . . não sou dos mais criminosos. . .

Ela perguntou por onde devia principiar a exercer a caridade.

— Não poderia ninguém desejar melhor ocasião, nem melhor lugar do que este, respondeu Ângelo. Monteli presentemente é um vale de lágrimas, que clamam socorro. Ide ter com os miseráveis que não têm quem lhes leve aos lábios o crucifixo na hora da morte, ide ter com os órfãos sem regaço que os acolha, e com as donzelas sem defesa e sem forças para guardar a sua virgindade. Socorrei-os a todos, socorrei os desgraçados, indeterminadamente, que, entre os vossos favorecidos, será a vossa própria alma a primeira e mais socorrida pela vossa caridade!

E o presbítero foi em pessoa ensinar-lhe os frios caminhos do desalento e da fome, e conduziu pela mão aquela arrependida ao lugar do sacrifício, da humildade e do verdadeiro amor, isto é, à cabeceira dos que gemiam na miséria e no abandono.

A viúva aprendeu o caminho que lhe ensinara o presbítero. Apaixonou-se pelo bem, dedicou-se de corpo e alma à mais praticante e religiosa caridade e, dentro de muito pouco tempo, oferecia com as suas ações belíssima exemplo de moral e virtude.

E todos começaram a respeitá-la.

Ângelo, encantado com tão completa transformação, dedicava-lhe já uma estima sem limites, e muitas vezes a acompanhava em suas piedosas romarias à casa dos pobres mais remotos.

Mas um dia, dois meses depois que a viúva começara a sua reabilitação, um fato, que precedia de época anterior, veio enchê-la de infinita tristeza e colocá-la no mais vivo embaraço.

Sentia-se grávida.

O último cúmplice de seus passados desvarios sensuais, e a quem ela devia agora aquela dolorosa situação, era um pobre diabo de um boêmio, rico e libertino, que um belo dia lhe fugiu dos braços e nunca mais lhe deu notícias suas.

Ângelo, ao ouvir-lhe a confissão, não teve um gesto de censura, nem de repugnância; era antes a compaixão o que se revelava na sua fisionomia.

— Resigne-se... disse-lhe ele tranqüilamente; e seja boa mãe de seu filho. Não o desampare! Oh! por cousa nenhuma desta vida o desampare! sofra com energia as conseqüências do seu erro, aceite as represálias sociais que daí procedam, como elementos novos de sacrifício, e continue na obra da sua reabilitação.

E não alterou em nada a estima e o respeito que lhe votava; ao contrário, depois que a infeliz sentia crescer o fruto da sua culpa, Ângelo parecia mais compassivo e mais atencioso para com ela. Ia vê-la, dava-lhe notícias dos seus pobres, encarregava-se de a estes levar socorros em seu nome e, quando orava, pedia a Deus que poupasse à mísera os dissabores que ainda lhe reservava.

Foi naquela célebre noite da tempestade, em que Salomé o esperava com impaciência, que a viúva deu à luz o filho.

Ângelo veio então da casa dela, supondo-a livre de perigo; mas agora, justamente nos últimos dias em que o pároco era vítima dos sonhos com Alzira, a parturiente fora acometida de febre e achava-se em risco de vida.

O fato, logo que transpirou, tornou-se escandaloso. Não se falou noutra cousa em Monteli durante esses dias.

A viúva, depois de uma noite de delírio, em que repetia sem cessar o nome do presbítero, faleceu nos braços deste.

Outros padres estavam presentes e cochichavam à socapa, felizes por terem afinal descoberto bom pasto para a sua campanha de difamação. Ângelo, de todo desprevenido contra o mal que pudessem julgar dele, dava ampla expansão às lágrimas que a morta lhe merecia e rezava de joelhos ao lado do cadáver.

Depois do enterro, o presbítero pensou no pequenito, que assim tão tristemente se orfanava logo ao entrar

no mundo, e resolveu, visto que a falecida não deixava parentes, carregar com ele para a casa de uma família pobre, que se quisesse encarregar da sua criação.

Imagine-se o que não fizeram os seus adversários com todo este, combustível para a intriga.

Por tal modo tramaram e conspiraram contra Ângelo, que o público começou a prevenir-se contra ele,

e afinal, quando depois viam atravessar lentamente pela estrada o seu triste vulto contemplativo e enfermo, segredavam já em voz brejeira:

— Anda apaixonado!... Não se consola da morte da viúva!. . .

Ângelo seguia em silencio, indiferentemente, sem distinguir o murmúrio da calúnia que lhe esvoaçava em torno dos pés.

Mas os seus contrários rosnavam, ameaçando-o:

— Ah! Finges pouco caso?. . . Pois deixa estar que te mostraremos quem pode mais: tu ou nós!

Era bem singular esta luta de alguns padres, apercebidos com todas que Milagresas armas da intriga, contra aquele pobre cura indiferente à maldade humana, caminhando abstrato pelo seu destino, com a alma inconscientemente caída por terra, e os olhos da razão postos no céu.

E, não obstante, os padres lá iam para a frente, ganhando terreno contra Ângelo e agitando de Monteli até Paris os seus estandartes de difamação. Quanto aos romeiros, quanto aos que vinham à casa do presbítero arrastados pela fé no milagre, a esses o sincero pároco falava francamente e dizia-lhes que— Milagres, só Deus os podia realizar, porque a tanto chegava o seu infinito poder; mas que ninguém devia levar tão longe a vaidade, que se julgasse digno de provocá-los ou merecê-los, sem incorrer em desagrado aos olhos do Senhor, que só amava aos simples e despretensiosos.

Que voltassem para os seus lares! exortava-lhes Ângelo, que voltassem para os seus lares!... Os homens para o trabalho que dá o pão de cada dia, e as mulheres para junto dos seus filhos e dos seus deveres de esposa.

— Ah! dizia abertamente, sem armar ao menor efeito. Ah! meus irmãos! quando o lar é abençoado e honesto, não precisa que venham buscar Deus aqui tão longe; Deus irá lá ter espontaneamente e far-se-á lembrado a cada instante. Sejam bons e leais, e Deus será convosco! Não o ofendam, pretendendo que eu faça o que só ele tem o direito de fazer!

Este modo de proceder era a pior arma que Ângelo podia vibrar contra os seus adversários, porque neutralizava o pábulo da maledicência; mas os molinistas, assim que deram com isso, mudaram de tática e começaram a persegui-lo por outra face.

Um dia o presbítero ficou muito surpreendido, quando na rua gritaram atrás dele:

— Ó louco! Ó louco!

E, desde então, convenceu-se de que não era amado, nem respeitado, por uma parte da população de Monteli.

De outra vez, depois de ouvir aquelas mesmas palavras, recebeu nas costas uma pedrada.

Voltou-se, abaixou-se e apanhou a pedra.

A certa distancia havia um grupo de rapazes e raparigas, foi até lá e perguntou se era algum deles, que tinha arremessado a pedra.

Ninguém respondeu.

— Meus filhos, disse Ângelo então; aos loucos não devemos apedrejar, que são eles capazes de cair em raiva. Alguns tenho eu visto aí pela aldeia, a quem até dão pão e dão leite. . .

E passando a mão na cabeça de um dos pequenos, perguntou-lhe, sem cólera:

— Por que me atiraste tu a pedra?

— Era para aquele cachorro! . . . disse o rapazito, apontando um cão.

— Mentes, meu filho; mas ainda que dissesses a verdade, serias pecador, porque é pecado apedrejar aos cães. . . Perdôo-te por esta vez e aconselho-te a que não cometas igual delito.

Afastou-se, e quando tinha feito algum caminho, ouviu de novo atrás de si:

— Ó louco!

Talvez tenham razão!... disse Ele, consigo, sacudindo os ombros.

E, com efeito, para quem só julgasse pelas aparências, Ângelo figurava um louco. Na terrível palidez do seu rosto, brilhavam-lhe os olhos sinistramente com desvairada expressão; seus lábios, que nunca sorriam, denunciavam fria e profunda angústia, que se não traduzia por palavras; um mistério de sofrimentos havia nas rugas precoces da sua fronte mais branca que o mármore das sepulturas, e os seus gestos eram lentos e como que mal governados, e o seu andar vacilante e frouxo, como o de quem caminha lentamente para a morte. Todo ele era apenas uma estranha sombra que atravessava pela terra, sem se comunicar com ela.

Estava cada vez mais fraco e mais abatido.

E não podia ser senão assim, porque Ângelo sofria muito e não tinha um momento de repouso. Durante o dia era dos seus misteres religiosos e dos seus deveres de piedade, e à noite, quando se recolhia à cama, em vez de descanso, tinha para o martirizar o tormento do sonho.

À noite, ele pertencia a Alzira. A cortesã vinha buscá-lo ao leito, e carregava-lhe o espírito com ela até a manhã seguinte.

E o mais curioso era que, naquelas duas existências, tão opostas e até tão inimigas, o cavalheiro amante da condessa Alzira conhecia o cura de Monteli e ria-se intimamente das ingenuidades dele ao passo que Ângelo, em mente, detestava o outro e não lhe perdoava as libertinagens e os crimes.

Com o correr dos sonhos, formou-se uma secreta rivalidade entre o padre casto e o licencioso boêmio. Odiavam-se. Cada qual desejava a extinção do rival.

O presbítero, entretanto, a ninguém confiara até aí o segredo das escapulas do seu espírito, e principiava a habituar-se àquele duplo viver de sacerdote virtuoso e de folião profano.

Alzira vinha invariavelmente buscá-lo, mal fechava ele os olhos, e levava-o de cada vez a um novo lugar de prazeres.

O último passeio maravilhoso daquelas noites deixara-o profundamente impressionado, porque fora de todos o mais comovedor e transcendente, como vai ver o leitor.

Foi assim esse terrível sonho: