A Mortalha de Alzira/II/XI

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Ângelo, ao adormecer, viu-se logo à margem de uma formosa baía, cercada de misteriosos arvoredos, por entre os quais se destacavam ao luar os mármores de velhos palácios talhados em estilo veneziano.

Alzira veio buscá-lo numa gôndola cor de prata, guarnecida de brilhantes lanternas verdes. Ele embarcou e sentou-se ao lado dela.

A gôndola começou a deslizar indolentemente sobre as águas, onde o céu se espelhava todo azul, borrifado de estrelas, e onde as luzes dos barcos e das janelas ogivais vinham perder-se em trêmulos reflexos de mil cores.

A noite era serena e transparente. Alzira pousou a cabeça no ombro do seu amante, tomou um bandolim e começou a cantar:

As águas tem mil lampejos, Se a brisa cantando vai... Ó mar! bebei nossos beijos! Ó brisas! murmurejai!... Ai! ai! O mar tem alma, É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!

Um coro longínquo respondeu noutro tom da margem aposta: Vivam os amantes Cantando aos pares! Voem distantes Negros pesares!

Alzira continuou a cantar, e Ângelo cantou depois de beijar-lhe a boca:

As águas dormem, querida; A lua brilha nos céus.. . Eu quero beber a vida Num beijo dos lábios teus!... Ai! ai!

E ambos repetiram:

O mar tem alma É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!

O coro respondeu agora mais perto, porque a gôndola se aproximara dele:

Vivam os amantes

Apaixonados,

Morram as dores

E vãos

cuidados!...

E Ângelo achou-se defronte de um lindo alpendre, construído à beira-mar e coroado de verdura e de flores.

— Saltemos! disse a cortesã, indicando a longa e branca escadaria de pedra batida pelas águas.

E os dois saltaram, galgaram os degraus de mármore, e penetraram num doce e vasto recinto, frouxamente iluminado por balões venezianos.

Ao centro havia um esplêndido tapete desdobrado no chão, com uma ceia servida em baixelas de prata e ouro.

Aí três cavalheiros e três damas, ricamente vestidos e negligentemente reclinados em coxins orientais, bebiam e comiam, em boa camaradagem, a rir e conversar, e meio abraçados uns com os outros.

Mais adiante três damas e um cavalheiro, assentados sabre macias e felpudas peles, jogavam as cartas, entre beijos e gargalhadas.

De outro lado, três moços trajados à napolitana e estendidos por terra, fumavam em volta de um grande cachimbo arábico, e bebiam vinho cor de topázio, que uma bela rapariga de colo nu lhes derramava nos copos de ouro.

Sobre o cais que dominava a baía, um casal deitado, de peito para o ar, contemplava a lua, ambos quase adormecidos, com a cabeça pousada nos braços um do outro.

Cantavam a meia voz em tom de barcarola:

Tem a vida mil

encantos,

Quando a gente sabe

amar...

Os gozos são tantos,

quantos

Murmúrios há no mar...

Deixa-me a boca

Tua beijar!

A vida é pouca

Para te amar!.. .

Ângelo parara à entrada com Alzira.

— Que bela cousa é o prazer!... disse um dos cavalheiros que ceavam.

E acrescentou, abraçando preguiçosamente as duas damas que tinha ao seu lado:

— E pensar que há por esse mundo gente que fala em tristezas!.. . As mulheres, as flores, a música, o jogo, o vinho e os bons manjares, eis o nosso elemento da vida!. . .

E tomando as mãos da sua vizinha da direita:

— Não é verdade, minha bela, que o prazer é a melhor cousa da vi da?. . .

A dama respondeu-lhe com um beijo, quebrando os olhos voluptuosamente.

— Ganhei! disse outro cavalheiro no grupo dos jogadores. Paga!

— Aqui tens! volveu a dama, oferecendo-lhe os lábios, que ele beijou com delícia.

E ela exclamou logo em seguida:

— Agora ganhei eu!

Ele tirou da cinta um punhado de moedas que lhe atirou ao colo.

E continuaram a jogar.

— Entremos! segredou Alzira, penetrando no recinto do alpendre.

— Que lugar encantador!. . . considerou Ângelo, que até aí estivera a olhar para todos os lados, deveras surpreendido.

E fazendo a todos um rasgado cumprimento:

— Boa noite, cavalheiros!

— Vivam, rapazes! exclamou Alzira ao mesmo tempo.

Foram correspondidos indolentemente pelos circunstantes.

Só um dos cavalheiros da ceia voltou-se para eles, e disse-lhes em ar amável:

— Boa noite, gentis namorados. Andais gozando a vida, não é verdade?. . .

— Sim, respondeu Alzira. Temos mocidade e dinheiro: queremos gozar!...

— Sede bem-vindos! volveu aquele;ideal é não podereis escolher sítio melhor! Aí tendes o que comer e o que beber. .. Tomai assento conosco e sereis dos nossos! Bebei e embriagai-vos, caríssimos:

Ângelo e Alzira assentaram-se juntos num coxim, e o cavalheiro prosseguiu, mal podendo abrir os olhos:

— Aqui as horas correm ligeiras e felizes! Escorregam como um bom vinho!. . .

— Mas quem sois vós?... perguntou Ângelo, levando aos lábios a taça que acabara de encher.

O interrogado explicou logo:

— Somos sectários da religião do prazer: nossa única ambição, nosso único ideal— é gozar! A Sensualidade é o nosso Deus!

— O gozo pelo gozo! Eis aí a nossa divisa! interveio um dos outros cavalheiros que ceavam.

E o terceiro acrescentou, emborcando o copo:

— Não conhecemos outra moral, nem outra filosofia!. . . O amor antes de tudo!. . .

— Perdão, objurou Ângelo, tomando interesse na conversa; isso não e amor, e lascívia. . .

— Oh! replicou o que recebera a objeção. Nada de sentimentalismo!. . . Queremos as idéias etéreas vivamos pura e exclusivamente para os sentidos. Nada de amores platônicos ou exclusivistas! Nada de ciúmes e nada de egoísmos! Entre nós, as mulheres, seja qual for, é um instrumento de prazer, de que cada um se serve como melhor gosta e lhe apraz. Aqui, neste feliz recinto, as mulheres não têm dono; são como as flores do caminho: pertencem ao primeiro que se debruça sobre elas para lhes sorver o aroma. . .

E derreando-se entre as duas mulheres que estavam ao lado dele, passou-lhes o braço na cintura e perguntou-lhes, beijando-as, uma e depois outra:

— Não é verdade, encantadoras amigas, saborosas flores, cujo perfume nos embriaga de prazer? Não é verdade que não guardais egoisticamente, só para um homem, o vinho dos vossos lábios e os tesouros dos vossos corpos adoráveis?. . .

Uma das mulheres respondeu sorrindo:

— Somos altruístas... Com os encantos que possuímos, poderíamos, por interesse, dar a felicidade a um homem... preferimos dá-la a muitos. É mais generoso. . .

— Decerto! confirmou o cavalheiro que falara por último. A castidade não passa de uma torpe especulação! . . .

— A mulher, reforçou o outro, só é verdadeiramente sublime, quando se dá a todos, sem preferência de nenhum. . .

— Não concordo convosco! declarou Alzira.

Ângelo sentiu-se irritado com aquelas idéias, e disse, erguendo-se:

— Degradante filosofia é a vossa, escravos da luxúria! Desvirtuastes o amor, prostituístes a mulher! Amaldiçoais assim a melhor obra de Deus!

— Ou do demônio... corrigiu com uma gargalhada um dos comensais.

— Não! teimou Ângelo. O demônio inventou o ódio e não o amor, descobriu a inveja e não a ambição, descobriu o desespero e não a felicidade, descobriu a luxúria, que é o desespero da carne, e não o amor, que é o orvalho da alma!

— Ou estás muito ébrio já, disse aquele; ou és um poeta!

— Não! sou um homem que ama, e nada mais, repontou o amante de Alzira.

— Eis um sonhador!. . . interveio outro com uma nova gargalhada. Um amante das estrelas!... Mau lugar escolheste tu para os teus idílios sentimentais!. . .

— Segue o teu caminho, visionário! aconselhou outro. A tua loucura faz-nos pensar, e nós não queremos dar-nos a esse trabalho. . . Vai-te embora!

— Enxotam-me?! exclamou Ângelo.

E puxou um punhado de moedas de ouro, que atirou sobre a mesa, acrescentando:— Tenho o direito de cá estar! Pago os meus prazeres! E, se alguém há entre vós, que a isso se queira opor, fale, que imediatamente lhe taparei a boca.

Um dos convivas ergueu-se, encaminhou-se tranqüilo para ele e disse-lhe, com os olhos meio fechados pela embriaguez:

— Tens o direito de estar aqui, não há dúvida alguma. . . mas o que não tens, desgraçado, é o direito de incomodar-nos. ..

— Desgraçados sois vós, míseros sensualistas! replicou Ângelo.

— Deixa-me! tornou o outro desdenhosamente. A tua moral enjoa-me! Se quiseres seguir o nosso exemplo, aí tens o teu copo, é beber até caíres ébrio nos braços da mulher que te ficar mais perto; qualquer destas. . . Não temos ciúmes!. . . E se isso não te convém, toma então de novo a tua gôndola e segue adiante, que trazes ao teu lado uma mulher formosa e não prometemos respeitá-la mais que às outras.

— Ai daquele que lhe tocar com um dedo! exclamou Ângelo no auge de cólera.

Alzira interveio.

— Acalma-te disse ela, dando-lhe um beijo. A noite é curta, meu amor; não vale a pena perdê-la com outra cousa que não seja o prazer!

E, voltando-se para os que estavam à ceia:

— Encham-me a taça, amigos, que a noite ainda é melhor assim regada com o capitoso e dourado moscato italiano!

— Tens muito mais espírito que o teu sentimental amante!... observou rindo um dos convivas. E és formosa demais para pertencer a um só homem!

Ângelo deu um salto sobre o libertino que acabava de falar e, desembainhando a sua espada, exclamou, pondo-lhe a mão esquerda fechada em frente do rosto:

— Mais uma palavra e arranco-te a alma, miserável!

— Acalmem-se! suplicou Alzira, colocando-se entre eles. Acalmem-se por quem são! Bebamos e folguemos, antes que o sol venha de novo tirar-me a carne de cima dos ossos!. . .

— A beleza, disse o contendor de Ângelo, esvaziando ainda uma vez a sua taça espumante; a beleza é uma divindade! E uma divindade deve ser adorada por todos!

— Bravo! bravo! gritaram os que se tinham deixado ficar no chão. Adoremos a divindade da beleza!

— À Beleza! À Beleza!

E entre risos, as taças chocaram-se, tilintando.

— É demais! gritou Ângelo desprendendo-se dos braços de Alzira, e saltando em meio do banquete. E demais! Este miserável deve morrer!

A cortesã procurou detê-lo.

— Ângelo! Ângelo!

— Deixa-me! bradou este. Quero punir aquele; infame! quero esmagar aquele; estúpido libertino!

Houve um geral sobressalto. Ergueram-se todos. Puxaram pelas espadas, e as damas empalideceram, soltando gritos de pavor.

Ângelo parecia possesso. A lamina do seu aço florentino reluzia no ar, ameaçadoramente. E ele sem deter-se um instante no mesmo lugar, varria aos pontapés os estorvos que encontrava nos seus saltos de esgrimista.

— Venham todos! bradava, sacudindo os cabelos. Venham todos, cáfila de brutos sensuais! Venham, que os rejeitarei na ponta deste ferro!

— Ângelo! Ângelo !

— Com a vida o pagarás! exclamou um hércules veneziano, que acabava de erguer-se sacando o punhal.

— Morrerás como um javali! gritou outro, acudindo de arma em punho.

E ouviu-se um coro de imprecações e frases de terror.

— Um conflito?! . . .

— Calma! calma!

— Diabos levem os intrusos!

— Morra quem perturba o nosso gozo!

— Matem-no e lancem o cadáver ao mar!

— Fiquemos com a mulher, que é bonita!

Entretanto, um cavalheiro colocara-se defronte de Ângelo, com a espada em desafio.

Mediram-se as laminas, os ferros cruzaram-se no ar: os dois fizeram uma rápida oração entre os dentes cerrados pela cólera, e o combate começou feroz.

Abriu-se um instante de silencio, em que o retintim metálico das duas espadas era o único que se ouvia.

Os contendores arfavam, desesperado cada qual pela destreza e galhardia do seu adversário.

— Agora! bramiu Ângelo, caindo a fundo contra o inimigo.

E atravessou-o de lado a lado.

— Oh! gritaram todos, correndo para o lagar do duelo.

E cercaram Ângelo numa trincheira de espadas nuas.

— O meu punhal! berrou o perseguido, desembainhando a terrível arma, que lhe dera o Demônio do Ouro. Assim o querem?... Assim seja!

E abriu aos pulos para todos os lados, cravando unia punhalada a cada salto.

Um a um, iam caindo todos em volta dele, expirando cada qual entre gritos de agonia e uivos de cólera sequiosos de vingança.

Do meio para o fim desta singular hecatombe, os que não tinham recebido o golpe fatal, fugiram, lançando-se do cais às águas da baía. As mulheres rolavam pelo chão, estrebuchando espavoridas, ou jaziam sem sentidos, pálidas e estateladas como cadáveres.

Ângelo viu-se afinal senhor do campo e, ofegando de cansaço, limpou o punhal tinto de sangue nas roupas de uma das suas vítimas.

— Fujamos! disse Alzira, a enxugar-lhe com o lenço de rendas a fronte ressumbrante de suor. Fujamos antes que amanheça!

— Não! opôs Ângelo. Vamos beber ainda, e esperamos a aurora abraçados os dois sobre estes coxins feitos para a volúpia!. . .

Mas, no momento em que levava aos lábios a ânfora de vinho, arremessou-a para o lado, soltando um terrível grito de pavor.

Defronte dele, com os braços cruzados, os olhos faiscantes e o rosto fulo e sinistro como uma caveira, erguia-se o espectro do macilento cura de Monteli.

Ângelo recuou fulminado.

E o pároco, sem descruzar os braços, caminhou para ele atravessando-o com o seu claro olhar de sacerdote intransigente.

— Crápula! exclamou, chegando-lhe a boca ao rosto. Assassino! Bêbedo! Ladrão!

O amante de Alzira pôs-se a tremer.

O outro prosseguiu:

— Em que imundo esgoto perdeste tu a tua vergonha e a tua consciência, miserável?. . . para andares sem pudor a vagabundear ao lado de uma infecta prostituta? . . .

— E que tens tu com isto, hipócrita?. . . interrogou o Ângelo boêmio, recuperando o sangue frio. Acaso vou eu tomar-te contas das ridículas pantomimices que levas a praticar durante o dia em Monteli?. . . Interrompo porventura a farsa das tuas missas, quando charlataneias o teu irrisório latim e ergues ao ar, espetaculosamente dois dedos de vinho e três de obreia, proclamando que é sangue e corpo de Cristo. . . o que vais ingerir?. . . Já fui eu lá dizer-te ao ouvido que isso é uma truanice, tão digna de desprezo quanto de lástima?. . . Já fui eu lá insinuar aos teus devotos que os teus milagres são mentiras, como é mentira a tua fé, como é mentira a tua ciência, como é mentira a tua religião?. . . Não me venhas pois aborrecer, onde não és chamado, e volta para a tua pestilenta aldeia, que tens lá quem precise dos teus desvelos e dos teus conselhos. Dá-los ao filho da viúva Thevenet!

O presbítero, ouvindo este nome, estremeceu por sua vez.

Sacudiu a cabeça e disse revoltado:

— Até tu, alma perdida! até tu finges não compreender a verdade a respeito dessa infeliz criança.

— Não sou eu quem te acusa; são todos! Nada mais faço do que repetir a voz do povo, que é a voz de Deus! Some-te da minha presença!

— Sim! mas deixa essa mulher!

— Por que? Ah! compreendo! são os ciúmes que te agitam, hein? Magnífico!

— Deixa essa mulher, já disse!

— Queres que a deixe contigo, talvez!. . .

— Obedece-me ou eu tomar-ta-ei à força!

— Não tentes experimentá-lo, porque ficarias aqui mesmo estendido por terra com esses outros imprudentes que aí estão! Vai-te embora, desgraçado!

O pároco foi ter com Alzira e tomou-lhe as mãos.

— Acompanha-me, disse, com ar de súplica.

A cortesã olhou para ele, olhou para o outro, e abaixou os olhos, hesitando perplexa.

— Não vens comigo?... interrogou o padre, arfando de cólera e ciúme.

— E ele? balbuciou a cortesã. Como deixá-lo?. . . Bem vês que não posso!. . .

— Aqui! A meus braços! ordenou o outro Ângelo, batendo o pé. Já! Não dês ouvidos a esse embusteiro!

Alzira chegou-se para o amante folgazão, obedecendo submissa.

Então o pároco, sem dominar a cólera, atirou-se contra o rival, tentando estrangulá-lo.

Alzira, percebendo que aquele arrancava o punhal da cinta, apoderou-se do ferro traiçoeiramente e lançou-o ao mar.

O desarmado soltou um formidável grito de desespero e engalfinhou-se com o outro Ângelo, rolando ambos ao chão, por entre os cadáveres ensangüentados, enquanto um sino ao longe principiava a badalar, chamando para a missa, e a aurora acordava a natureza, cantando um hino de gorjeios e murmúrios de floresta.

O infeliz vigário acordou afinal, na vida real, banhado de suor, sufocado e aflito, a debater-se no seu leito com a própria sombra, que o estrangulava.