A Normalista/IV

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O futuro bacharel em leis ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada em cerca de cem contos de réis. O coronel franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim mesmo, com todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com os seus jeitos elegantes, arrotando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da província de quem se dizia amigo.

— “Cada qual com seu igual” doutrinava o coronel. O que não admitia é que o filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua dignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão a indivíduos que não tivessem uma posição social definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza Nunes, homem de costumes severos, que sabia dar aos filhos uma educação esmerada, quase principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais do que uma vergôntea digna desse belo tronco genealógico dos legítimos Souza Nunes, tão nobres quanto respeitados no Ceará.

Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo, com o presidente, alvo do olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante, em trajes de montaria, roupa de flanela, botas, chapéu mole desa- bado.

O Zuza dava-se muito com o presidente que também pertencia a uma alta linhagem de fidalgos de São Paulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo de mulheres.

As revelações da Matraca sobre o namoro do Trilho de Ferro deram que falar à cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato propalou-se imediatamente à guisa de escândalo. A princípio ninguém sabia ao certo qual era a tal “normalista ex-irmã de caridade”. Que havia de ser a Lídia Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho nunca fora religiosa quanto mais freira. Afinal sempre se veio a saber a verdade e espalhou-se logo que a afilhada do João da Mata estava com um namoro pulha mais o estudante. Não era Lídia mas dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma escola, eram dignas uma da outra.

E toda a gente dizia sua pilhéria, atirava seu conceito à boca pequena, com risadinhas sublinhadas — pilhérias e conceitos que chegavam até aos ouvidos do coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos. “— Não era possível, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um rapaz de certa categoria não se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem ramo de figueira, uma rapariga sem juízo, filha de pais incógnitos, educada em casa dum amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois não viram logo a monstruosidade do absurdo? Era uma calúnia levantada a seu filho. Que esta! Não faltava mais nada senão ver o nome do rapaz em letra redonda estampado na Matraca, um jornaleco imundo como uma cloaca!”

Morava na rua Formosa, numa casa asso­bradada e vistosa com frontaria de azulejos, varandas, e dois ananases de louça no alto da cimalha, à velha moda portuguesa.

O coronel gostava de passar bem, de “fazer figura”, e, até certo ponto, revelava uma natureza delicada que não era indiferente ao aspecto exterior das coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-à-bracs. No que respeita a asseio ninguém o excedia. Era o que se pode chamar “um homem de bons costumes”, um pouco orgulhoso e duma susceptibilidade a toda prova em matéria de dignidade pessoal: irrepreensível e caprichoso na intimidade doméstica como na vida pública.

Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-veludo claro com ramagens cinzentas, mobiliada com inexcedível graça, sem ostentação, sem luxo, mas onde se notava logo certa correção no arranjo dos móveis, na colocação dos quadros, na limpidez dos cristais.

Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual assentavam estatuetas de biscuit. À direita, descansando sobre grandes pregos dourados, o retrato a óleo do coronel com a sua barba em ponta, olhava para o piano, muito sério, em simetria com o da esposa.

O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza que ficava à esquerda. — “Não faltava mais nada!” repetia mentalmente o coronel, estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, defronte da varanda, aparando as unhas.

Em casa usava calças brancas, paletó de seda amarelo e sapatos de entrada baixa com flores no rosto de lã.

Era hora do almoço, o Zuza não devia tardar. Ia falar-lhe decididamente; aquela história do namoro não lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a estroinice pueril de desfrutar a rapariga.

Daí a pouco entrou o estudante. Vinha muito jovial, cantarolando o Bocácio:

Se acaso algum de nós
tiver por sina atroz
mulher que se não cale
que a toda hora fale...

E repetia muito alegre:

Trá lá lá lá... trá lá lá lá...

— Vens muito alegre, hein, meu filho? interrompeu o coronel da sala.

Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a despir-se.

— Ah! meu pai estava aí?

E logo:

— Trago uma novidade.

— Vejamos...

— Vou a Baturité com o presidente.

— Ainda bem, ainda bem... fez o coronel num tom desusado, sem erguer a cabeça.

— Como ainda bem? inquiriu o estudante aproximando-se.

Apenas trocara o fraque por um paletó de brim branco.

— Porque... porque... Eu precisava mesmo falar-te. Ora, dize, uma coisa: leste o último número da Matraca?

Zuza franziu os sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. — “Não tinha lido a Matraca, não. Um jornaleco imoral que andava por aí? Não, não tinha lido. Por quê?”

— Que história é uma de namoro no Trilho de Ferro? Fala-se em ti, no teu nome, numa nor­ma­lista...

Cresceu o assombro do rapaz.

— Eu?!... Meu pai está gracejando...

— Juro-te que não. Mas olha, quem diz é a Matraca e alguém afirmou-me particularmente que a rua está cheia...

— E esta! fez o Zuza cruzando os braços admirado. Pois meu pai não vê logo que isto é um gracejo de mau gosto, um canalhismo de província?

— O que é certo é que não te fica bem a brincadeira.

— Absolutamente não, e eu preciso saber quem é o autor do pasquim...

A criada avisou que o almoço estava na mesa.

— ...Sim, continuou Zuza, vou informar-me, preciso saber...

— Eis aí está por que fazes bem indo passar uns dias a Baturité.

E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um apóstolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas cóleras contra a sociedade cearense.

— “Uma sociedade que lê a Matraca e gosta!”



No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturité em companhia do Dr. Castro, presidente do Ceará.

Lia-se na Província:

“Segue amanhã, pela manhã, com destino a Baturité, a fim de visitar a importante fábrica Proen­ça, o Exmo. Sr. Presidente da Província. Acompanham o ilustre amigo do Ceará os nossos distintos amigos e correligionários Srs. Dr. José de Souza Nunes e José Pereira, nosso colega de redação. S. Exa. pretende demorar-se alguns dias naquela cidade.”

Maria do Carmo leu com surpresa a notícia da Província e não pôde conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixara um bilhetinho, um cartão com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num pedaço de papel — Vou e volto?

Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.

Estava tudo acabado, não falaria mais no Zuza, não lhe escreveria: que fosse bugiar! Moças havia muitas no Ceará: que procurasse uma lá a seu jeito e ela por sua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para casar, noivo sério, noivo de bem!

Entretanto, Maria não tinha feito reparo na despedida do Zuza, um soneto em decassílabos, com sílabas demais nuns versos e de menos noutros. Adeus — era o título e vinha na terceira página da Província. Depois é que viu por que a Lídia mostrou-lhe.

— Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein? disse a Campelinho.

— Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrança de me avisar!

— Como querias tu que ele avisasse se ainda não lhe respondeste a carta?

Maria esteve pensando com o jornal na mão, lendo e relendo os versos, e, meio arrufada meio risonha:

— Embora! O dever dele era me participar. O homem é que faz tudo...

E na manhã seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pés, embrulhada no lençol, ver passar o trem através da vidraça.

A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas que pare­ciam uma irrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalar contínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela hora ainda nos lençóis.

Maria viu passar a enfiada de vagões estra­le­jando sobre os trilhos e esteve muito tempo em pé ouvindo o silvo longínquo da locomotiva que ia, como uma coisa doida, sertão adentro! Começou então a sentir-se só; teve vontade de abrir num choro histérico como se lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a tepidez do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol, com um peso no coração, encolhida na rede, sem ânimo para levantar-se, desejando um querer que era vago, extraordinário, que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mesma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor... Àquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...; não, já devia ter chegado a Mondubi... Imaginava-o metido num comprido guarda-pó de brim pardo, tomando leite fresco na estação, ao lado do presidente, tirando do bolso da calça um maço de notas de banco, muito amável, rindo... Depois o trem apitava. Havia um movimento rápido de gente que embarcava às pressas, e... lá ia outra vez por aqueles descampados afora, caminho da serra que se via ao longe, rente com as nuvens, como aquelas cadeias colossais de montanhas onde há gelos eternos e que na geografia têm o nome de Alpes...

De repente lembrou-se:

“— E se o trem desencarrilhasse...?” Ia adormecendo quando lhe veio à mente esta idéia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos, como se tivesse acordado de um pesadelo. “— Se o trem desen­carrilhasse o presidente morreria também...”

...Teve um consolo. Não, o trem havia de chegar em paz com todos os passageiros. Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou escapar um — ai! ai! — muito lânguido e prolongado.

Lá fora recomeçava a labuta quotidiana. A criada puxava água da cacimba; o cargueiro de água potável enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lengalenga maçante, pedindo esmola numa voz chorada; vendedores ambulantes ofereciam cajus... Havia um ruído matinal de cidade grande que desperta.



Nesse dia Maria do Carmo não foi à Escola Normal: que estava incomodada, com uma enxaqueca muito forte.

João da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a língua, muito solícito, com cuidados de pai: — “Não era nada, uma defluxei­ra.” E largou-se para a Repartição, palitando os ­dentes.

A Lídia, essa tinha liberdade plena em casa da mãe, ia à Escola quando queria e, se lhe convinha, lá não punha os pés. Deixou-se ficar também com a Maria. — Tinham muito que conversar.

— Que saudades, hein? começou a Campelinho.

Estavam sós, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido à casa da viúva mostrar um corte de fazenda que o Janjão lhe comprara.

Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera lendo, e, com um bocejo: — “É verdade, o diabo do rapaz não lhe saía da lembrança. Nem um castigo... Mas estava muito desgostosa da vida, já andavam inventando histórias, calúnias...”

— Não te importes minha tola. Ora! ora! ora!... Isso a gente faz ouvidos de mercador, e vai para adiante. A vida é esta, e tola é quem se ilude.

— Não, Lídia, as coisas não são como tu pensas.­ No Ceará basta um rapaz ir duas vezes à casa de uma moça para que se diga logo que o namoro está feio, que é um escândalo, e nós é que somos prejudicadas. “Ah! porque já não é mais moça, porque é uma sem-vergonha” é o quem dizem...

— Pois olha, esta aqui há-de namorar até não poder mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casamento é uma cantilena...

E, num assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que tinham amantes e que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com o José Pereira, da Província, em pleno Passeio Público! Quem era que não sabia? Ninguém. Entretanto freqüentava as melhores famílias da capital — era a Sra. D. Amélia! Queria outro exemplo?

E abaixando a voz:

— Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Ninguém ignora neste mundo que D. Terezinha é amigada com teu padrinho. E tudo mais é assim, querida Maria. A canalha fala de inveja, invejosos é o que não faltam nesta terra.

Maria prestava atenção, silenciosa.

— Então, disse ela por fim, achas que devo continuar o namoro?

— Que dúvida, mulher! Eu é porque já tenho o meu. Assim mesmo...

Maria sentiu uma pontinha de ciúme roçar-lhe o coração. Disfarçou com um risinho seco.

— Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pregue uma taboca...

— Nada mais simples: prega-lhe outra casando-te com o primeiro bilontra que aparecer. Amor com amor se paga...

— Não, falemos sério...

— Que queres tu que se diga? Eu cá não costumo enganar ninguém. Sou muito franca. — Pão, pão, queijo, queijo...

— Dão licença? disse uma voz fora, na rua.

Era D. Amélia, mulher do Dr. Mendes.

Maria foi abrir a rótula.

— Oh! por ali?...

— É verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solão, que solão!

Lídia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o véu e a tirar as luvas.

Como estava a Teté? perguntou D. Amélia muito afogueada, tirando o chapéu defronte do espelho. D. Amanda ia bem? E sentando-se:

— Já sei que não foram hoje à Escola... Boa vida! Não há como ser moça. Pois, meninas, venho duma séca. Fui ali à casa da costureira experimentar o meu vestido de cetim...

— Isso que é boa vida, disse a Campelinho: passeios, vestidos...

Maria tinha ido chamar a madrinha: que era um pulo.

— Qual passeios! Quem tem filhos pode lá pas­sear?

D. Terezinha não se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se toda.

— Ora viva! disse atirando-se nos braços de D. Amélia. Como vai, como tem passado? Que mi­lagre!

Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando-se.

— Sabem quem esteve ontem conosco?... O Zuza. Diz que volta sábado de Baturité. Gabou muito a Maria: que é uma cearense distinta, muito prendada, chique a valer, um horror! Ao que parece temos casório...

— Qual casório! fez Maria com um rubor nas faces. Invenções...

— Não havia de ser contra a minha vontade, disse D. Terezinha. Seria até uma felicidade. Deus o permita...

Falaram de modas.

D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viúva Campelo achara de muito bom gosto.

D. Amélia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta, muito desleixado, com venetas de doido. Ela até já se aborrecia, porque o Mendes tinha o mau costume de beber aguardente; às vezes chegava tropeçando, com a língua pegada, sem poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferente, o Mendes. Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses inteiros...

— Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque eu não sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses é pra ali um vestido. Diabo é quem os poupa! Também, minha filha, dou-lhe toda liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente não tenho queixa dele.

Lídia pediu a D. Amélia que tocasse alguma coisa, a Juanita, que era a valsa da moda.

A propósito D. Amélia perguntou se já tinham ido ao teatro. Que fossem, que fossem. O grupo lírico da Naguel estava fazendo sucesso. A Belle-Grandi era um mulherão capaz de arrebatar uma platéia inteira. Que modos, que requebros! Domingo ia a Juanita pela última vez em benefício da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta interessantíssima, por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A beneficiada ia fazer o papel de Juanita.

— Eu é para que tenho jeito, atalhou a Cam­pelinho, é para o teatro. Deve ser uma vida tão cheia de sensações a das atrizes... Vestem-se de todas as formas, recebem presentes ricos, jóias, anéis de brihante... são aplaudidas e ainda por cima ganham dinheiro à ufa. Eu já disse à mamãe, mas ela não quer por coisa alguma, diz que é uma vida imoral... Tolice! Há tanta gente boa nos teatros... A última vez que fui ao circo chileno fiquei encantada pela Estrela do Mar!

— É o que você pensa, menina, disse D. Amélia. Essas pobres mulheres fazem um ror de sacrifí­cios... Sabe Deus quanto lhes custa uma noite de espetáculo! Acabam quase sempre miseráveis, coitadas, nalgum quarto de hotel, a esmolas. Enquanto são moças ainda, ainda encontram quem lhe estenda a mão, porém, depois, morrem por aí em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha. Tibis, menina, nem se lembre de tal coisa!

Maria, a um canto do sofá, pensava no estudante, perdida num labirinto de reflexões, com uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um sonho d’ouro. Começava a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de ter um marido a quem pudesse entregar-se de corpo e alma, certa sentimentalidade sem causa positiva, uma como abstração do resto da humanidade. E quando D. Amélia, sentando-se ao piano, começou a tocar a Juanita, veio-lhe um vago e esquisito desejo de ir-se pelo mundo afora nos braços do “seu” Zuza, rodopiando numa valsa enton­tecedora até cansar... Via-se nos braços dele, arquejando ao compasso da música, quase sem tocar o chão, voando quase leve como um floco de algodão, como uma pena, como uma coisa ideal e aérea... E lembrava-se do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza... Doravante ia agradar muito a João, tratá-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafunés, fazer-lhe todas as vontades, adulá-lo, a fim de que ele não ralhasse por causa do estudante. Que tola não ter escrito logo ao Zuza, àquele Zuza que era agora a quantidade constante de seus cálculos, a preocupação única de seu espírito, o seu alter ego!

Sim, porque de resto, ela não havia de ser nenhuma freira que ficasse por aí solteirona, sempre casta como uma vestal.

A Lídia tinha razão — a mulher fez-se para o homem e o homem para a mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se aí a qualquer caixeiro de armarinho, a qualquer lojista usurário e safado. Ao menos o Zuza tinha dinheiro e posição, era um rapaz conceituado. Comparava-se com a Lídia e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moço elegante, estimada, querida por todos. Ninguém se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo o mundo a respeitaria como esposa do Sr. Dr. José de Souza Nunes! Começava mesmo a sentir uma grande afeição pelo Zuza.

As últimas notas do piano produziram-lhe uma comoçãozinha, uma ponta de saudade sincera, um arrepio na epiderme. E, levantando-se muito desconfiada, foi juntar-se às outras que palravam por quantas juntas tinham.

A voz de Campelinho timbrava muito fina e metálica, traduzindo todo um temperamento nervoso e irrequieto.

Acharam deliciosa a valsa da Juanita. Maria também deu o seu parecer: que era linda, que ia ensaiá-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente.

Fazia sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil que punha uma camada muito tênue e pardacenta no verniz gasto dos móveis. Vinha lá de dentro, de envolta com o fumaceiro da cozinha, um cheiro gorduroso e excitante de guisados.

Deram três horas.

— Jesus! fez D. Amélia erguendo-se admirada. Três horas! Vou-me chegando, meninas.

— Agora fique para jantar, solicitou D. Terezinha. Nada de cerimônia, o Janjão não tarda, é comida de pobre, mas sempre se passa...

— Ora fique, Jesus!

— Não Tetezinha, de minha alma, não posso, o Mendes me espera, aquilo é um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho, mas é se­gredo...

— Oh! filha...

Entraram as duas para a sala de jantar. A Mendes pediu água, e, dando estalinhos com a língua, acariciando a mão de D. Terezinha, disse muito baixo, quase ao ouvido, engrossando a voz, que precisava de dez mil-réis para pagar a costureira e vinha pedir-lhos até o fim do mês. A Teté não imaginava: tinha em casa o essencial para a feira do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que houvesse ou não dinheiro... Tivesse paciência, sim? Pagava, sem falta, no fim do mês.

Disse que os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito grandes, alegou o preço da carne... Um horror! Não se podia num tempo daquele comer com pouco dinheiro. Não sobrava nem para um vestido!

Também estava muito “quebrada”, disse D. Terezinha compungida. O Janjão tinha feito um ror de despesas naquele mês; dava graças a Deus quando lhe vinha um dinheirinho do Pará, de rendas... Só ao velho Teixeira, um que emprestava dinheiro a juros, deviam duzentos mil-réis. Em todo caso sempre ia ver se arranjava pra cinco mil-réis. Era um instantinho.

Foi depressa à alcova, abriu com estrondo a gaveta da cômoda e daí a pouco voltou com uma nota de 5$000, muito velha e ruça, quase em frangalhos, que entregou à outra. Era só o que tinha para servi-la.

— Muito obrigada, minha santa, não sabe quanto lhe agradeço... No fim do mês, sem falta.

E guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Rússia:

— Agora deixe-me ir.

— Por que não fica para jantar, insistiu D. Terezinha. O Janjão está chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes.

— Qual, filha, não posso. O Mendes é muito enjoado; fica para outra vez, sim?

Beijaram-se depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com seu passo miudinho, arrepanhando o vestido.

— Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor se paga...

E desapareceu, como um foguete, na esquina.



Às quatro horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço, muito suado, assobiando a Mascotte.

A Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar.

Maria do Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a Juanita.

D. Terezinha, essa andava para dentro, às voltas com a cozinheira, provando as panelas, ra­lhando.

João apenas sacudiu os papéis sobre o sofá, foi direito à afilhada.

— A santa está tocando a Juanita? Que mimo, Jesus! Como se pode ser bonita assim!

E sem dar tempo a Maria de defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face. A normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do amanuense, e um bafo insuportável de álcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira vez, depois que saíra da Imaculada Conceição, que o padrinho lhe beijava em cheio na face. O ama­nuense tinha-se aproximado devagarinho, de mãos para trás, e, de repente, tomando-lhe a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto da orelha, continuando cinicamente a assobiar.

Ela apenas pôde dizer — padrinho! agarrando-se à cadeira de mola. Ficou muito séria, a limpar o rosto com a manga do casaco. Ah! mas dentro, nas profundezas da sua alma teve um ódio imenso àquele homem nojento que abusava de sua autoridade sobre ela para beijá-la! Fosse outro, ela teria correspondido com uma bofetada na cara... Mas que fazer? Era seu padrinho, quase seu pai, devia aturá-lo, tinha obrigação de submeter-se, porque estava em sua casa, comia de seus pirões, e o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A princípio até o estimava, não o achava mau completamente; agora, porém, que uma espécie de instinto irresistível a impelia para o Zuza, agora que o estudante ocupava um lugar no seu coração, enchendo-o quase, o padrinho ia-se-lhe tornando repugnante e desprezível. Não podia chegar-se a ele, vê-lo de perto, encará-lo frente a frente, sem um profundo e oculto frenesi. Um homem que não cuidava dos dentes, que não se banhava, um bêbado!

Esteve folheando o livro de músicas automaticamente, sem se mexer, sem dar palavra, esperando que João se retirasse da sala. João, porém, bateu o postigo com força, cambaleando, dando encontrões nos móveis, aproximou-se outra vez da afilhada e, num movimento abrutalhado, abraçando-a por trás, curvando-se para a frente, sobre ela, chimpou-lhe outro beijo, agora na boca, um beijo úmido, selvagem, babando-a como um alucinado...

Maria quis gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou:

— Nada de gritos, hein! nada de gritos... Eu sou seu padrinho, posso lhe beijar onde e quando quiser, está ouvindo? Nada de gritos!

E Maria, com os lábios muito vermelhos, como a polpa de uma fruta, debruçada sobre o piano, desandou a chorar nervosamente.



João da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato onde costumava aquecer os pulmões ao voltar da Repartição. Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia, porque já lá estava o Perneta, um dos correios, que usava a muleta, que também gostava da pinga e escrevia versos para o Judeu Errante.

Num momento deram cabo duma garrafa em cujo rótulo lia-se Reclame atraente como visgo: Cumbe legítima!

E que loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia e política.

O Perneta, sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando sempre com certo ar dogmático, ventilou uma questão de literatura cearense — Que não tínhamos poetas, disse; o que havia era uma troça de malandros e de pedantes muito bestas, que escrevinhavam para a Província coisas tão ruins que até faziam vergonha aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia de imitadores que se limitavam a copiar os jornais da Corte.

Na sua opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente inspirado — era Barbosa de Freitas. Esse sim, cantava o que sentia em versos magistrais, dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boêmio! Fazia gosto ouvi-lo. Que eloqüência, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma se comparava ao Êxtase, “esse poema de amor” que valia por todas as poesias de Juvenal Galeno. O João queria que recitasse?

— Recita lá! fez o amanuense emborcando o cálice.

E o Perneta, com voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada de amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase:

 
Quando, às horas silentes da noite,
Doce flauta descanta no ar,
Quando as vagas soluçam baixinho
Sobre a praia que alveja o luar.

......................................................................................

Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspinhando para o lado.

— Sim, senhor! fez João da Mata com um murro na mesa. Isto é que é ser poeta!

— “Queriam alguma coisa?” veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro, doente, com ­olheiras.

— Não, menino, disse o amanuense; está acesa a lanterna, por ora. Foi entusiasmo.

Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás, com as paredes en­car­didas, úmidas, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam bebidas: “Somente os fregueses de certa ordem”, prevenia o Zé Gato.

— Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou como o grande Luís de Camões, na enxerga dum hospital, e nisto, penso eu, está a sua maior glória.

— Apoiado!

— E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os poetas de hoje usam fraque, gravatas de seda e polainas, escrevem crônicas elegantes, fazem política.

Os Álvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são gênios que aparecem de século em século, como certos cometas, no céu da literatura!

— Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense.

— Não me fales em semelhante gente. Aquilo é pior do que um cano de esgoto, homem. Quem chama o Zuza de poeta não sabe o que é ser poeta, nunca leu nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha o papel — nada mais. Aquilo só presta mesmo para capacho do presidente.

A conversa encaminhou-se para a política e João da Mata tomou a palavra. — Que a política era a desgraça do Ceará; que estava cansado de trabalhar gratuitamente para a política. O que queria agora era dinheiro para acabar de levantar uma casinha no Outeiro.

— E que tal o presidente? perguntou o Perneta. Achas que fará alguma coisa em benefício do ­Ceará?

— Homem, como sabes, eu sou governista, porque infelizmente sou funcionário público, mas entendo que o Sr. Dr. Castro é um grandíssimo pândego.

E noutro tom, limpando os óculos:

— Nós precisamos é de homens sérios, seu Perneta, nós queremos gente séria!

Contou então que na seca tinha ganho muito dinheiro à custa dos cofres públicos; que fora comissário de socorros, e que os presidentes do Ceará eram uns urubus que vinham beber o sangue do emigrante cearense.

Tinha assistido a muita ladroeira na seca de 77.

— Aqui pra nós, acrescentou cauteloso, abaixando a voz, o atual presidente não é — justiça lhe seja — um homem sem juízo, um idiota, um leigo, mas, a continuar como vai, forçando a emigração para o sul, dentro de pouco transforma esta terra numa espécie de feitoria de São Paulo. É embarcar muita gente para o sul, seu compadre! Já lá foram quatorze mil e tantos! Isto é despovoar o Ceará, isto é fazer pouco caso do Ceará, c’os ­diabos!

— É bem feito! disse o Perneta, é muito bem feito para não sermos bestas. Isto é uma terra em que os estranhos fazem o que querem e ninguém protesta, ninguém reage. Nós só sabemos ser maus para nossos patrícios.

— Mas olha que o Cearense tem comido o couro ao homem...

— Qual comido o couro! O povo é que devia dar uma lição de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem critério! E com esta me vou, que isso de política fede... Queres mais alguma coisa?

— Olha que demos cabo duma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens?

O outro puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro duma capa de camurça, e erguendo-se:

— Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! Ó Zé, bota na conta isto: uma garrafa de branca.

— Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo, com um dedo amarrado num pano preto, o lápis detrás da orelha, arrastando os chinelos.

— ...Na conta do Perneta, explicou João da Mata.

E saíram pisando em falso, por entre fardos de carne-seca e caixas de cebola.

— Ó João, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com o tipo?

— Quem, a Maria?

— Sim.

— Casa, mas há-de ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem não me entram em casa...

— Mas olha que é um casamentão!

— Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamantes. Ela só há-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho.

Separaram-se.

Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de preto, conduziam o caixão cujos galões de fogo reluziam ao sol. Pouca gente acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapéu na mão, marchavam a passo e passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os lados, indiferente, mais um menino de coro de batina encarnada carregando a cruz.

O sino da Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às janelas para ver passar o préstito.

— De quem é? Quem morreu? perguntava-se com mistério.

— A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato abanando a cabeça com um ar triste.

João da Mata parou à beira da calçada afagando a pêra com os dedos magros e compridos, nervoso. — Quem morreria? pensava. — E, assim que o préstito passou, foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se.

No outro lado da rua o Romão, o negro Romão, que fazia a limpeza da cidade, passava muito bêbado, fazendo curvas, de calças arregaçadas até os joelhos, peito à mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos, gritando numa voz forte e aguardentada:

Arre corno!... Um garoto atirou-lhe uma pedra.

Mas o negro, pendido pra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se às paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia, repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceará estava acostumado a ouvir-lhe — Arre corno! E que repercutia como uma verdade na tristeza calma da rua.