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A Normalista/V

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Um tédio invencível, um desânimo infindo foi se apoderando de Maria do Carmo a ponto de lhe alterar os hábitos e as feições. Começou a emagrecer, a definhar, enfadando-se por dá cá aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora, tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e desabafar consigo mesma, sem que ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se tornando insociável como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à Escola para não contrariar os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu desejo, o seu único desejo era viver só, completamente só, numa espécie de deserto, longe de todo ruído, longe daquela gente e daquela casa, num lugar onde ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo o que quisesse, tudo o que lhe viesse à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome incomodava-a horrivelmente, como o zumbir de uma vespa enorme que a perseguisse constantemente. — Que inferno! Todo o mundo metia-se com a sua vida, como se fosse um grande erro ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas e não estivessem encafifando-a. Havia de casar com o Zuza, porque queria, não era da conta de ninguém, seu coração era livre como as andorinhas. Oh!...

— Mas, menina, quem diz o contrário? perguntava a Campelinho. Eu sempre te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante.

Não era a Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer sabiam conjugar um verbo. Estava cansada de ouvir pilhérias e risinhos tolos, mas à primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), à primeira que abusasse da sua paciência, ela, Maria, saberia responder na ponta da língua. Umas namoradeiras que se punham a dar escândalos com os estudantes do Liceu, umas sem-vergonhas! Havia de ­mostrar!

Ela é que era uma tola, dizia a Lídia; as nor­malistas falavam de invejosas; mandasse-as plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, não era nenhuma admiração a Maria casar com o Zuza. Por que ele era rico e ela pobre?

Muito obrigada! Napoleão I tinha-se casado com uma simples camponesa, e, mais, era um imperador!

E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel, retratando-o na imaginação, amando-o de longe. Havia já seis dias que ele seguira com o presidente, num domingo.

Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era tempo de terem vol­tado...

Todos os dias, à noitinha, ia esperar a Província, na janela, a ver se encontrava alguma notícia dos excursionistas.

Mas, nada!

No domingo seguinte, porém, a folha oficial noticiou que “os ilustres touristes” deviam regressar à capital no dia imediato.

— Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banho de cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se — que excelente vida! — Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que daí a vinte e quatro horas o Zuza estaria de volta, mais amável talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito, contando-lhe as minudências da viagem. Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar no Ceará...

Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o “padrinhozinho”, acariciou-lhe os bigodes, alisou-lhe o cabelo, sem dar a entender o seu grande contentamento, a sua grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele, acompanhando-lhe o jogo, lembrando quando ele esquecia de marcar um número, dando-lhe cafunés no alto da cabeça, com uma solicitude ingênua.

Quando os habitués do víspora se retiraram, João da Mata chamou a afilhada à alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados, pediu-lhe um beijo na “boquinha”. Maria ofereceu-lhe os lábios com uma passividade de escrava, sem a menor resistência, pondo-se nos bicos dos pés, porque João era muito alto, e deixou que ele os sugasse em dois tempos, às pressas, antes que viesse D. Terezinha.

Grande foi a admiração e a luxúria do ama­nuense. Maria entregara-se-lhe sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura, num ímpeto de carnalidade indomável, apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas, o coração aos pulos; mas soltou-a logo, D. Terezinha ali vinha pelo corredor, arrastando os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar, de mãos para trás.

— Estavam jogando a sério? perguntou a mulher.

— Não. Por quê?

— Tão calados!...

— Querias tu que estivéssemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer palavra, disfarçava na janela olhando o céu.

D. Terezinha começara a desconfiar das intenções de João da Mata. Via-o agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-a mesmo e notava que a rapariga ultimamente já não era a mesma para ele, evitava-o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho.

Um dia, vendo-a triste a um canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele estado à ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, João esbravejara muito contra a rapariga, ameaçando-a espancar se ela ousasse “pensar” no estudante. Desde então começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas tendências instintivas de João. — De certo alguma coisa se passava entre eles. Esses sobressaltos, essas arrelias... — Entretanto, deixava as coisas no mesmo pé, sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança...

E o mais curioso é que João agora tinha rusgas consecutivas com a mulher, sem motivo, por ninharias, ao voltar da Repartição ou pela manhã, antes de se ir.

Um belo dia rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à cabeça, e, numa excitação violentíssima, num daqueles ímpetos de raiva que lhe eram tão comuns devido à sua natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra D. Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera. — Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos de mulher alguma quanto mais dela que não tinha nada com a sua vida!

— E fique você sabendo, acrescentou com a sua vozinha estridente, dando murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher amigada é como se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar ponho-lhe no olho da rua!

Palavras não eram ditas, D. Terezinha saltou como uma fera congestionada, os olhos acesos de um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em arco e as mãos nas ilhargas:

— Você o que quer sei eu, seu cachorro! Você quer é abusar da menina e plantar-lhe um filho no bucho, seu grandis...

Não acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor-próprio, na sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvairado, encheu-lhe a boca com uma formidável bofetada que fê-la rodar.

Maria ficou perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber o que fizesse, muda, como petrificada. Nos seus magníficos olhos cor de azeitona perpassou a sombra duma desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a toda.

Mal acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com a mão no queixo, D. Terezinha foi estender-se lá dentro da alcova, soluçando tão alto que se ouvia fora, na rua.

Defronte, em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do costume — o Loureiro, a viúva e a afilhada.

Eram quase nove horas da noite.

A Lídia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido choro... Se precisassem alguma coisa...

Mas o amanuense tranqüilizou-a: que não era nada; coisas de mulher, coisas de mulher...

A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou nos calcanhares. — Não era nada, era o doido do amanuense que andava aos pontapés.

— Gente canalha! fez o guarda-livros inalterável. Que educação, que fina educação, recebia-se naquela casa!



Logo no dia seguinte à chegada do Zuza — uma segunda-feira luminosa de outubro, muito azul no alto, com irradiações no granito das calçadas e uma aragem insensível quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocínio — Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de — parabéns — que as normalistas lhe davam à guisa de presentes de ano. — Parabéns! Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás, abrindo alas, como se cortejassem uma princesa. — Tinham combinado saudá-la pela chegada do Zuza com esse espírito irrequie­to de colegial despeitado que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a mordiscá-las por dentro.

A praça permanecia numa quietação abençoada, com os seus renques de mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar, frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceístas castigavam a pedradas.

Meninos apregoavam numa voz clara e vi­brante:

— Loteria do Pará, 30 contos!

O edifício da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho de fresco, cinzento, com as janelas abertas à claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre duma casa de noivos acabada de caiar-se.

Maria estava radiante! Que extraordinária alegria infiltrava-se-lhe na alma, que excelente disposição moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se toda numa delícia incomensurável, feliz como uma ave que solta o primeiro vôo. Mas ao entrar na Escola desapontou deveras! Seriam onze horas. O diretor ainda não havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa, conversavam animadas de livro na mão, formando grupos, rindo, no vestíbulo que separava a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento superior.

Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando — bom-dia! — às colegas, uma bonita orquídea no peito, toda de branco, apertada por uma cinta. Mas, a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insólita manifestação que se lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados, — um ligeiro rubor — coloriram-lhe o moreno-claro das faces. — “Aceitava os parabéns, como não? Muito obrigada, muitíssimo obrigada! Queriam debicá-la? Corujas! Fossem debicar a avó!”

Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.

— Meninas! Fez a Lídia. Isso não são modos!

— Olha a baronesa!

— Como está grande!

— Sua incelência...

Maria a custo pôde abafar a raiva que lhe sacudiu os nervos. Sentou-se à varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mor­discando a pele dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de absoluta indiferença.

Continuava o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes acompanhados de risadinhas sublinhadas — Uma queria um botão de flor de laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de aluá, essa outra contentava-se com um beijo na “noiva”, aquela queria ser madrinha do “primeiro filho”...

Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel.

Maria marcava compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos olhos.

— Já basta! disse a Lídia abrindo os braços como para afastar as outras. Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo...

— Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar a gente ao ridículo por uma coisa à toa. Ainda hei de mostrar!...

— O diretor! o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d’olho vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto a lição de geografia.

Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: — Aí vem o tutu!

Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras pela de ciências, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé, lendo a meia voz muito sérias. Fez-se um silêncio respeitoso, e daí a pouco surgiu no alto da escada a figura antipática do diretor, um sujeito baixo, espa­daúdo, cara larga e cheia com uma pronunciada cavidade na calota do queixo, venta excessivamente grande e chata dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente...

Maria respirou com alívio.

Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou o zunzum de vozes finas, a princípio baixinho, depois num crescendo.

Maria estava no mesmo lugar, à varanda, quieta e cabisbaixa, olhando o compêndio aberto sobre o regaço.

O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda, extremamente bela com o seu vestidinho de casa, apertado na cinta del­gada.

Ao meio-dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um homenzarrão, alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso, limpando o suor da testa. E consultando o relógio:

— Meio-dia! São horas de dar o meu recado. Com licença...

Contavam-se na sala de aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, à espera do professor. Maria ocupava um dos bancos da primeira fila.

Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se, e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando o olhar na sala, vagarosamente, com bonomia paternal — tal um pastor de ovelhas a velar o casto rebanho.

A sala era bastante larga para comportar outras tantas discípulas, com janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que funcionavam as aulas de ciências físicas e naturais, em horas diferentes das de geografia. Não se via um só mapa, uma só carta geográfica nas paredes, onde punham sombras escuras, peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam, intactos, aparelhos de química e física, redomas de vidro bojudas e reluzentes, velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas elétricas de Bunsen, incompletas, sem amálgamas de zinco, os condutores pendentes num abandono glacial; coleções de minerais, numerados, em caixinhas, no fundo da sala, em prateleiras volantes... Nenhum indício, porém, de esfera terrestre.

O professor pediu um compêndio que folheou de relance. — Qual era a lição? A Oceania? Pois bem...

— Diga-me, senhora D. Maria do Carmo: A Oceania é ilha ou continente?

Maria fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada, e, fitando o mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:

— Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um continente.

— Perfeitissimamente bem!

E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser considerada continente; explicou demorada e categoricamente a natureza das ilhas australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelândia, a sua vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua fauna, com entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo.

Maria, muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção, o olhar fixo nos olhos do Berredo, be­ben­do-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase, como se visse nele um doutor em ciências, um sábio consumado, um grande espírito. Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar, achava-o eloqüente, claro, explícito, capaz de prender um auditório ilustrado. Era a sua aula predileta, a de geografia, e o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros, o professor de francês e o de ciências, nem por isso, davam sua lição, como papagaios, e — adeus, até amanhã. O Berredo, não senhores, tinha um excelente método de ensino, sabia atrair a atenção das alunas com descrições pitorescas e pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.

Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, são habitadas por selvagens antropófagos, como os da América antes de sua descoberta...

— Imaginem as senhoras que horror! Homens devorando-se uns aos outros, comendo-se com a mesma satisfação, com a mesma voracidade, com o mesmo canibalismo que nós outros, civilizados, trincamos um beef-steak ao almoço...

Houve uma casquinada de risos à surdina.

— Agora, se o Zuza te come, disse baixinho, por trás de Maria do Carmo, uma moçoila de pince-nez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de antropófago...

— E note-se, continuou o Berredo, as pró­prias mulheres não escapam à fúria das tribos inimigas: devoram-se também...

— Virgem! fez Maria com espanto...

— As senhoras com certeza preferem viver no Ceará a habitar a Papuasia...

— Credo! fizeram muitas a uma voz.

— E no Brasil há desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura que se escondia na última fila, estirando o pescoço.

O pedagogo sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado, num tom benévolo:

— Atualmente existem poucos... Restos de tribos extintas...

E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar moral, explicando a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio Verne, cujas obras recomendava às nor­malistas como um “precioso tesouro de conhecimentos úteis e agradáveis”. — Lessem J. Verne nas horas de ócio; era sempre melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes impróprias de uma moça de família...

— Vá esperando... murmurou a Lídia.

— Eu estou certo, dizia o Berredo, convicto, de que as senhoras não lêem livros obscenos, mas refiro-me a estes romances sentimentais que as moças geralmente gostam de ler, umas his­to­riazinhas fúteis de amores galantes, que não significam absolutamente coisa alguma e só servem de transtornar o espírito às incautas... Aposto em como quase todas as senhoras conhecem a Dama das camélias, a Lucíola...

Quase todas conheciam.

— ... Entretanto, rigorosamente, são péssimos exemplos...

Tomou um gole de água, e continuando:

— Nada! As moças devem ler somente o grande Júlio Verne, o propagandista das ciências. Comprem a Viagem ao centro da terra, Os filhos do capitão Grant e tantos outros romances úteis, e encontrarão neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos práticos...

O contínuo veio anunciar que estava terminada a hora.



Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer, derreado na larga cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura, anunciou “S. Exa. o Sr. Presidente da Província”, e imediatamente assomou à porta da sala o ilustre personagem, mostrando a esplêndida dentadura num sorriso fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e tesos, gravata de seda cor de creme onde reluzia uma ferradura de ouro polido, bigodes torcidos imperiosamente: um belíssimo tipo de sulista aristocrata. Estava um pouco queimado da viagem a Baturité.

O Berredo desceu logo do estrado a cum­pri­mentá-lo com o seu característico aprumo de homem­ que viajara à Europa. Todas as alunas er­gue­ram-se.

— Como passa V. Exa., bem? Estava agora mesmo...

O presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no, como sempre, o José Pereira e o Zuza.

Maria, ao dar com os olhos no estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a espinha, baixou a cabeça, fria, fria, como se estivesse diante dum juiz inflexível.

S. Exa. tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira e o Zuza sentaram-se nas extremidades da mesa.

As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase, de livro aberto, com medo à chamada. Houve um silêncio.

— Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalterável:

— V. Exa. não deseja argumentar?...

— Não, não. Obrigado...

— Neste caso...

E para as discípulas:

— Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos são os pólos da terra? Veja como responde, é uma pequena recordação. Não se acanhe. Quantos são os pólos da Terra?

O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para dar idéia do adiantamento de suas alunas.

Sofia de oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro tipo de cearense: queixo fino, em ângulo agudo, fronte estreita, olhos negros e inteligentes.

— Quantos são os pólos da Terra? fez ela olhando para o teto como procurando a resposta, em­batucada. — Os pólos?... Os pólos são quatro.

Risos.

— Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomeá-los.

— Norte, sul, leste e oeste.

Nova hilaridade.

— Está acanhada, desculpou o Berredo vol­tando-se para o presidente. Até é uma das minhas melhores alunas. — Não confunda, tornou para a normalista. Olhe que são pólos e não pontos ­cardeais...

Outro disparate:

— Há uma infinidade de pólos...

— Ora!... Adiante, D. Maria do Carmo.

Maria estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada. A presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressão do olhar magnético do estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se.

— Então, D. Maria?... Também está aca­nhada?

— Passe adiante, pediu o Zuza compadecido.

Duas lágrimas rorejaram nas faces da nor­ma­lista caindo com um sonzinho seco sobre a carteira. Estava numa de suas crises nervosas. Outras duas lágrimas acompanharam as primeiras, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com o seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.

— Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe... Tenha a bondade de levantar a cabeça...

— Está nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de cético elegante.

— Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isto acontece...

O Berredo passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar faiscante de Lídia:

— A senhora... Quantos são os pólos da ­Terra?

— Dois: o pólo norte e o pólo sul.

— Perfeitissimamente! confirmou o professor batendo com o pé no estrado e esfregando as mãos satisfeito. — Dois, minhas senhoras, disse mostrando dois dedos abertos, em ângulos; dois! O pólo norte, que é o extremo norte da linha imaginária que passa pelo centro da Terra, e o pólo sul, isto é, a outra extremidade diametralmente oposta; eis aqui está! Está ouvindo, D. Sofia? Está ouvindo D. Maria do Carmo? São dois os pólos da Terra!

— Estou satisfeito, disse o presidente erguendo-se.

Arrastar de cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Exa. grave, correto e calmo, retirou-se com o seu estado-maior.

O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que chegava a meter pena. Os seus óculos de ouro, muito límpidos e translúcidos, tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza gostava de roupas claras) uma flor microscópica.

Alguém murmurou ao vê-lo passar:

— Sempre correto!

Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do lenço, com uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada, revoltada contra si mesma que não soubera responder uma coisa tão simples... Que vergonha, que humilhação! pensava.

Não saber quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lídia, logo a Lídia! O Zuza agora ficaria fazendo um juízo muito triste a seu respeito e não a procuraria mais... Ah! era muito tola, decididamente! E jurava consigo “não ter mais vergonha de homem algum”.

Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar-se a aula para evitar os gracejos das colegas, voltando à casa sem a Lídia, sozinha, acaçapada, inconsolável.

Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despiu-se às carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões, impaciente, até ficar em camisa, e atirou-se à rede soltando um grande suspiro. Esteve muito tempo a pensar no acadêmico, na “figura triste” que fizera na aula, em mil outras coisas por associação de idéias, com o olhar, sem ver, numa velha oleo­grafia do “Cristo abrindo e mostrando o coração à humanidade”, que estava na parede.

Era uma desgraçada, suspirava tomada de desânimo. Todas tinham seus namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando, gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela?

Era como uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar os desaforos de um padrinho muito grosseiro que até a proibia de casar. Nem amigas tinha. A Lídia, essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipócrita; não viram como ela tinha dado o quinau na aula? Uma ingrata... Sim, está visto que havia de ter um fim muito triste...

O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para fora do Ceará, ir-se de uma vez... Estava cansada de viver naquela casa...

E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra tudo, num desespero febril, ansiando por uma vida feliz, independente, livre de cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas as vontades.

Por seu gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima alguma. Estava muito bem educada, não precisava de aprender em colégio, já não era criança.

Acudiram-lhe reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos de colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se e revirando-se, ora fitando com olhar piedoso a imagem do Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro, espécie de clarabóia, que havia no telhado, e através da qual brilhava um pedaço de céu sem nuvens.

Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas, respirando levemente, como uma crian­ça. A camisa fina, quase transparente, arregaçada por descuido até à parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça, morena, cheia, sem depressões, arqueando-se no joelho...