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A Profissão de Jacques Pedreira/III

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Precisamente, Jacques não foi muito pontual. A pontualidade é talvez um erro para quem almeja valorizar-se. É crime quando a obrigação não nos parece agradável. Os jovens que se revelam lúcidos ganhadores, chegam sempre antes da hora, no dia marcado. Prova de sofreguidão pueril. Às vezes nada se adianta com a pressa. Jacques apareceu no escritório, quatro ou cinco dias depois, - às três e meia de uma linda tarde. Como o escritório ficava na Rua do Rosário, nenhum dos seus transeuntes desconfiaria da beleza do céu. A estreita rua, atravancada com carroções, o calçamento desigual e engordurado, uma multidão de cocheiros seminus, de caixeiros, em mangas de camisa, e cidadãos apressados, a contar dinheiro, a discutir papéis estampilhados ou de pasta debaixo do braço - não dava tempo para pensar na beleza, mesmo na beleza de uma tarde linda. Era a rua dos armazéns de comestíveis por atacado e dos consultórios de advocacia. Jacques só aparecia lá para pedir dinheiro ao pai, que dava o nome ao consultório e trabalhava com outros colegas. O pai, nada agradado com tais visitas, aconselhara o continuo, um velho macróbio, cor de castanha, chamado André, a dizer a Jacques que não estava. O filho chegava e de cá de baixo:

— O pai?

André esticava o braço magro e fazia um gesto inexorável de negativa:

— Não, senhor; saiu.

— Há muito?

— Ainda há pouco.

Por último, com o hábito, ao ver assomar Jacques, fazia maquinalmente o gesto, quase com raiva, e gritava com a sua voz septuagenária:

— Não! não! já saiu.

Como em geral os cérberos de casas de negócio, embirrava com os que vinham pedir, mesmo sendo parentes. Uma das suas volúpias - uma das derradeiras, coitada! - era dizer não, era negar a quem lhe parecia precisar. Assim, quando viu Jacques a subir, o velho cor de castanha ergueu-se furioso, agitando o braço:

— Não está; não está!

Jacques parou, quase resolvido a voltar, mas para confundir o pobre homem, subiu. No consultório havia cinco advogados, contando com seu pai, que se reservava a sala da frente. Gente subia e descia as escadas. Cavalheiros conversavam junto das secretárias. Havia poucos livros na atmosfera sempre suja. O Dr. Justino, que conversava com dous clientes ao mesmo tempo, um provinciano interessado contra a oligarquia do seu Estado e um empresário teatral disposto a intentar ação contra a Prefeitura, apertou-lhe a mão, deu-lhe a face a beijar e apresentou-o logo aos dous clientes.

— Meu filho, formado há dias.

Jacques reparou na sua secretária, com um nobre feitio antigo, de carvalho. Sentou-se, abriu a pasta virgem e ficou ouvindo o inimigo da oligarquia, que de vez em quando voltava o busto e por deferência dizia:

— Não acha, doutor?

Depois foi ver os outros advogados, que estavam a tratar de negócios, nada interessantes. Que supremo aborrecimento! Nunca mais poria os pés naquele horror!

Mas, voltou. Voltou até todos os dias. É que a sua fraca vontade irritada contra um trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo comum, seria um titulo de elegância no meio por onde andava, um titulo superior. Chamarem-no de doutor, convencidamente, julgarem-no capaz de uma opinião decisiva, era para envaidecê-lo. Mas ter a certeza de que as senhoras e os seus amigos, e os simples conhecidos acreditavam em outro Jacques, era um prazer indizível. Estava duas mil léguas longe da vida prática. Entretanto, contentava-se. A entrada no escritório, deu-lhe uma individualidade definida. Pediu aos amigos que o fossem ver. Deu a mesma direção, com o número do telefone, na pensão da Lola Safo, na pensão da Isabela Corini, no seu alfaiate. Saia invariavelmente depois do almoço, só, com uma pasta cor de granada com fecho d'ouro, saltava do tramway apressado como um businessman, atravessava a Avenida a passo inglês. Ao chegar, indagava:

— Não veio ninguém procurar-me?

Invariavelmente, André cor de castanha respondia:

— Não, senhor.

Esperava um tempo e saía de novo com a pasta, ordenando:

— Se vier alguém, que espere.

Dava uma volta, reaparecia, no íntimo louco para que soassem quatro horas. Era a liberdade até o dia seguinte, em que de novo subia as escadas empoeiradas, contrariado e com a esperança de ter sido procurado. Uns quinze dias depois, quem lhe apareceu foi Jorge de Araújo, baixinho, magro, elegantíssimo.

— O Dr. Jacques? - perguntou a André.

— Não conheço.

Jacques, que ia sair, precipitou-se:

— Grande idiota, então não me conheces? Desculpa. É casmurro. Entra. Estou aí com uns negócios.

— Já? Parabéns. E ainda bem. Preciso muito dos teus serviços. Não se trata de advocacia. Tenho advogado.

— Então?

— Preciso de uma carta amiga para o ministro da Fazenda. Obras, reformas. O engenheiro abriu concorrência. Uma carta amiga era decisiva para o ministro. Se for aceita a minha, tens vinte contos.

— Vinte contos? Mas como arranjar a carta?

— Tens relações. Teu pai, por exemplo. Teu pai arranja.

— Vamos a ver.

— Espero até amanhã. Lembrei-me de ti. Fala ao Dr. Justino. Até logo.

— Só isso?

— Achas pouco? A minha hora de diversão ainda não chegou. Hoje, onde?

— Onde quiseres.

— Damos a volta da Tijuca.

E desapareceu. Jacques ficou num indizível estado de nervos. Compreendera logo que a proposta de Jorge fora uma distinção especial de amigo. Provas de tanta consideração só a pessoas de idade e de respeito. Arranjar um negócio, ganhar na primeira cartada vinte contos! Como? A quem pedir? A seu pai? Mas seu pai talvez recusasse, talvez não tivesse intimidade com o ministro. E Godofredo? Godofredo exigiria metade. Metade ou mais. Depois o favor de Jorge era a ele, a ele pessoalmente, Jacques... Ficou a passear na sala, febril, à espera do pai. Quando o Dr. Justino chegou, não teve coragem, procurou circunlóquios, arriscou uma opinião sobre a marinha americana, folheando revistas. Por fim, foi até dizer:

— Conheces o ministro da Fazenda?

— Muito. É um bicho de concha. Por quê?

Por quê? Com a pergunta compreendeu o seu estado d'alma. Faltava-lhe a coragem, não de falar francamente, mas de repartir. O seu divino egoísmo tinha a intuição cega do perigo. Antes de responder, sentiu que se falasse, o pai pediria para ver Jorge... Seria melhor conversar com a mãe, fazer intervir a influência da esposa.

— Por nada... - murmurou, afetando indiferença.

E saiu logo, deixou de ir ao chá das quatro horas, onde havia de encontrar Alice dos Santos e Mme. de Melo e Sousa, já inseparáveis. Foi diretamente para casa, com um cartucho de bonbons, o primeiro que comprava na vida para oferecer à mãe. D. Malvina não estava. Ficou na varanda, chegou a abrir um jornal, a ler uma notícia de pavoroso incêndio num gabinete da pensão de Lola Safo. Um toque de campainha fazia-o ter sobressaltos. Nunca na sua vida tivera um tão forte desejo de ver D. Malvina. E D. Malvina demorava, não vinha mais. Antes da esposa chegou o Dr. Justino no automóvel do Deputado Santos, que o seu continuava quebrado. Só, ás sete, apareceu a formidável dama. Vinha exausta. Fora ao Dispensário da Irmã Adelaide, assistir como dama de caridade ao aniversário da fundação. Estivera depois em casa da Baronesa de Muripinim, a encardida relíquia da monarquia, muito mal com um acesso de fígado. Lá soubera do divórcio iminente de Mme. Zurich. Era a quinta vez que anunciavam o escândalo, sempre, naturalmente, por causa do marido. E aquelas emoções violentas: a religião, a moléstia, a vida alheia - tinham arrasado a pobre senhora. Jacques foi buscá-la ao jardim, com carinho. Ao ver-se assim tratada, Mme. Pedreira exagerou. Era um hábito antigo.

— Mamã, preciso falar-lhe.

— Agora não, estou que não posso.

— Mas mamã, é a minha vida.

— Tens alguma ousa?

— Não, não é conta.

Na casa de jantar, ofereceu-lhe os bonbons. D. Malvina, apesar de gulosa, deixou-os sobre a mesa. Mas o filho teimava. Foi com ela até o toucador. E lá abriu-se. Precisava arranjar a carta. Um comendador que oferecia cinco contos. A carta devia ser apresentando Jorge de Araújo. A digna senhora não compreendia nada das infantilidades de Jacques. Apenas uma secreta admiração brilhava no seu olhar. O filho fazendo negócios, agindo, trabalhando, falando em ganhar...

— Não sei se teu pai...

— Pede-lhe, pede-lhe com calor.

— Vou ver. Amanhã dou-te a resposta.

— E pede também a Nossa Senhora, mamãe, para que o ministro da Fazenda atenda...

D. Malvina abriu mais os olhos. Jacques, o endemoninhado, voltava às tradições de família, e era católico como o seu ilustre pai e era crente como sua mãe!

— Peço sim, meu filho. Ainda hoje a Irmã Adelaide perguntou por ti, com muito interesse...

Jacques deixou o lar, logo após o jantar, em que foi de uma extraordinária gentileza para com o pai. Descobrira de chofre os efeitos da lisonja. Servindo aos progenitores com um interesse mesquinho, em que ainda por cima pretendia enganá-los, uma série de atenções desusadas, admirava secretamente o seu tato. Também ele sabia mentir com mestria. Era da família. Como no temperamento mais nascido para as transações hábeis há sempre uma grande dose de ingenuidade, se lhe viessem dizer que mostrava inteligência de advogado, acreditaria. Passava a um papel ativo na vida, com desenvoltura e esperteza. No dia seguinte entregaria a carta, e Jorge teria as obras, dando os vinte contos. O mundo era seu.

— Pai, o negócio do empresário?

— Queres aquilo? Ainda lembras? É um aborrecimento. Estamos há quatro meses.

— E quanto ganhas?

— A metade do dinheiro que obrigarei a Prefeitura a dar-nos. Uns dez contos.

Dez contos. O pai levava quatro meses para um negócio de dez contos! Ele, de um dia para outro, obtinha o dobro. Na rua, a vários conhecidos que cumprimentou, sorriu com o ar triunfante e superior. Era definitivo. No dia seguinte teria aquela soma, que aliás de pronto não sabia como utilizar. Depois outros negócios se sucederiam. De que gênero? Talvez de cartas de recomendação, de influências íntimas. Oh! ele agora compreendia aquela febre estranha que agitava a maioria dos seus contemporâneos: as faces machucadas, as neurastenias, a pressa, o ar de corrida por um tremedal em que quase toda a sua sociedade e ele também, pela força das circunstâncias, viviam. Agora já poderia dar uma explicação aos gastos de muitos conhecidos, a flexões de espinha inexplicáveis até o momento. Era o negócio, o jogo das influências, um tremendo jogo certo de consciências, que o vencedor devia ser o maior ganhador. No fundo devia ser muito aborrecido fazer como o Jorge, de assaltante diário, ou como Godofredo, e seu pai, de intermediários entre o assaltado que deixa assaltar, mediante condições e o assaltante que reparte. Ele faria com rapidez, uns duzentos contos...

Passava um tramway, tomou-o. Ao pôr o pé no estribo, tinha mentalmente duzentos contos, e foi como milionário que saudou o jovem Gomensoro e a linda Etelvina, sua esposa, née d'Ataíde. Os dous continuavam o flirt marital, divertindo-se, ou fingindo rir com a trepidação cinematográfica da sociedade. Etelvina fora educada em Paris, educação americana na filigrana parisiense. Fazia de grande dama e tinha o curso completo dos cabarets de Montmartre, que visitara, a princípio com sua mãe, ambas incógnitas, e depois com o próprio marido, sem incógnito.

Montmartre desenvolvera-lhe a ironia. Nas salas, aquele ar de Mme. Bady, os plongeons à Segundo Império, ocultavam uma observação mordaz e uma garotice de assobio. O marido acompanhava-a na troça e ambos pareciam perfeitos. Jacques admirou-se de vê-los.

— Oh! que prazer! Então, nenhuma festa?

— Relâche, hoje, meu caro. Desde que cheguei, não posso mais. Canto todas as noites e todos os dias. As nossas damas de caridade verdadeiramente abusam. E as elegantes também.

— É a grande atração dos salões.

— Mas esgoto o repertório. Que culpa tenho eu de saber cantar?

— E há cousas - interrompeu o Gomensoro. - Ontem, depois da matinée em favor do Orfanato das Irmãs do Monte Branco, em que Etelvina cantou cinco números, tínhamos a recepção do presidente da República. O secretário da presidência foi em carro de palácio lá ao hotel pedir, pelo menos, um número.

— E V. Exa. compareceu?

— Fui. Oh! oh! que cousa! Nem os bailes do Eliseu em que o Félix Faure aparecia de sapatos brancos. A coleção de casacas para uma crônica hilariante! A série de damas gordas, mal nuns vestidos crispantes! E havia programa. Cantava uma das damas gordas, cantava uma das casacas. Os amadores da administração pública! Os amadores governamentais!... Quase não canto.

— Mas havia o corpo diplomático estrangeiro, gente muito fina, e alguns colegas meus. Sabe que na minha posição, Etelvina prejudicar-me-ia se não cantasse. Depois o ministro da Fazenda...

— O ministro da Fazenda? - interrompeu Jacques.

— Conhece? Muito amigo de mamãe.

— O ministro da Fazenda pediu. É um desses republicanos históricos a que nada se pode negar. Pertencia ao partido conservador da monarquia.

— E cantei, meu caro, mais três vezes. Também afirmo que acabo morrendo de cantar.

Esperou uma frase amável, que o Jacques não tinha, passou a língua no lábio, concluiu na íntima necessidade de um louvor.

— Como os rouxinóis...

Jacques, entretanto, pensava. Talvez fosse possível pedir à mãe da Etelvina a carta. Ou outra carta. Cartas nunca são demais no caso de empenho. Mas seria tempo ainda?

— E hoje, que fazem?

— Passeamos de bond, costume nacional, vendo o mau gosto desta arquitetura. Foi o secretário de França que comparou a Avenida a um bazar de fenômenos arquitetônicos.

No Passeio, Jacques saltou para assistir a um ato de opereta italiana. Como os artistas eram detestáveis e as coristas bem redondas e bem dispostas a saírem acompanhadas, a companhia tinha sempre enchentes, mais de homens, representativos de várias classes sociais, principalmente a política. A primeira pessoa conhecida que avistou foi o Deputado Arcanjo. Estava numa frisa com a esposa e a ilustre Sra. de Melo e Sousa. Viesse vê-las. Que prazer! Jacques foi. Alice estava com um escandaloso vestido cor de vinho ardente. Mme. de Melo e Sousa sorria cheia de malícia. Evidentemente a ilustre dama sentia um certo prazer em aproximar corações.

— Não há mais ninguém que o veja.

— Que exagero!

— A Alice já perguntou duas vezes pela sua pessoa.

— Palavra?

— A primeira à sua mãe no Dispensário da Irmã Adelaide.

— Também é de lá?

— Grande protetora. Deu muitos contos.

— Oh! D. Argemira.

— Que tem, minha filha? A Irmã Adelaide vai até inaugurar-lhe o retrato no salão de honra.

— Não quero.

— Será, então, o de seu marido. A Irmã Adelaide é firme de convicções.

E com a autoridade do seu grande nome, ergueu-se:

— Só nestes maus lugares é que se encontra o Jacques, não acha Dr. Arcanjo?

Levado pela ilustre dama num fio de conversa, o Dr. Arcanjo, que aliás não era formado, acompanhou-a até à galeria dos camarotes. E Jacques percebeu que, pela terceira ou quarta vez, D. Argemira dava ocasião. Seria desejo de D. Alice? Estava num estado d'alma pouco disposto ao amor. Mas ao mesmo tempo com a convicção de que nada lhe seria difícil.

— Então, por que não aparece?

— Para não enlouquecer.

— Enlouquecer, o Jacques?

— A senhora bem sabe.

— Eu?

Voltou-se completamente. Olhou-o com os seus dous grandes olhos ardentes.

— Sabe que fui à Cavé hoje? Amanhã lá estou à mesma hora.

— Seu marido vai buscá-la?

— Vai, como sempre. Mas eu vou antes à casa da Argemira.

— Eu também. Preciso ir.

— Ah! bem. Tem gostado da opereta?

— Muito. Às duas horas.

E voltando-se para D. Argemira, que se encostara ao balaústre, disse alto:

— Bastou ver-me chegar para sair! É a guerra?

— Sabe bem que não.

A generosa senhora e o generoso marido aproximaram-se. Ia de resto começar o ato. Jacques assistiu no camarote de Arcanjo. No seu cérebro com a impressão nova da Alice, o negócio de vinte contos passava a uma questão liquidada. Já ganhara os vinte contos. Agora eram as mulheres, as mulheres casadas. Um homem só é realmente chic quando tem uma amante casada. Cresce na consideração alheia, apesar de ser cada vez mais comum uma amante casada. E ele que nunca se atrevera por preguiça, julgando ser preciso ou muito dinheiro ou muita sorte, via que era fácil, tão fácil como convidar uma cocotte para cear. Seria o primeiro de Alice? Observou-a como se observa uma cousa mais ou menos sua. Era bem interessante. Ao demais fazia por que o notassem. Durante o ato inteiro levou a encarar cavalheiros na platéia e a pôr o binóculo para certas damas das frisas, trocando impressões com D. Argemira, que parecia apreciá-la imenso. Jacques pensou que ela estivesse afetando indiferença por sua causa, para fazer de senhora fina, dessas capazes de enfrentar um batalhão de amantes passados sem dar a perceber que lhes deu a mínima confiança. Quando baixou o pano, porém, os seus olhos fixados na boca de Jacques diziam tão claramente o desejo que ele se prometeu um dia seguinte, melhor do que qualquer outro, da sua leve existência. Ao sair, encontrou Godofredo de Alencar, o aplaudido cronista. Godofredo estava doente. Ficava sempre doente para a noite. Vinha, entretanto, de jantar com o senador relator do orçamento da Fazenda.

— Da Fazenda?

— Sim, homem, que tem isso?

— Conheces o ministro?

— Faz-me o favor de ser meu amigo.

— Que tal?

— Que tal, como?...

— Ora...

— É um costume este esquisito que todos vocês têm de insinuar dúvidas sobre a honestidade dos homens colocados. Não sei, não, caro. Para mim todos os ministros são angustiosamente honestos enquanto são ministros. Olha, a questão é de habilidade.

— Vamos cear?

— Mas a que horas queres que eu escreva, se durante o dia tenho negócios?

— Então, não dormes?

— Sim, às vezes, para não perder o hábito.

— Vais escrever agora? E custa muito?

— Escrever custa. Agora, vende-se muito em conta. E, meu caro, um gênero na baixa.

— Acompanho-te.

— Com prazer.

Jacques seguiu-o porque não tinha o que fazer e estava muitíssimo nervoso para dormir. Godofredo aceitou a companhia sem vontade e começou a dar voltas vagarosas pelas avenidas que partem do Largo da Lapa. Nem Jacques tinha a coragem de contar o seu negócio, nem Godofredo desejava comunicar aquele filho de boa sociedade que morava numa pequena sala de uma ruela escura. Tudo é vaidade. Vaidade das vaidades, já dizia o Eclesiastes. Exatamente por isso, Jacques falou de Alice.

— A pequena atira-se - fez o escritor cínico.

— Não?

— Queres dizer que não só a ti como a toda gente. É uma febre caro Jacques, uma verdadeira febre. Estou que é caso de moléstia. E a nossa encantadora D. Argemira...

— Sim, mas discretamente.

— A levá-la a toda parte, a passeá-la. Sabes o valor social de D. Argemira. Pois nunca me convidou para a sua casa. O dinheiro, meu amigo, o dinheiro é a grande arma. Nem talento, nem sangue nesta califórnia. Dinheiro!

— A quem o dizes - fez Jacques como se fosse um ganhador exausto de operações dinheirosas. - E por falar em dinheiro, o Jorge...

— Oh! mil contos, mil contos só em imóveis.

— Imóveis?

— Sim, terrenos e casas, caro advogado. E honesto, generoso, mais generoso, essencialmente moderno, último aeroplano. Adeus, estou perto de casa. Não precisas vir.

— Moras por aqui?

— Ali embaixo - fez vagamente o escritor deambulando.

Jacques foi deitar-se. Foi de tílburi, apesar do tramway ser mais econômico, mais higiênico, mais cômodo e mais rápido. Ao deitar-se, tinha a certeza de que não poderia conciliar o sono. Era bonito passar a noite a passear de um lado para outro, pensando no marido da amante e na certa para o ministro. Entretanto, dormiu quase imediatamente e só acordou às onze da manhã. O sol ia alto. O copeiro que lhe trouxe o café,

Deu-lhe uma notícia desagradável:

— Madame foi à missa.

Atirou-se para o banheiro desesperado, obteve do copeiro que lhe desse uma fricção geral d'água-da-colônia, vestiu-se zangado. Ia perder o negócio, ia perder a Alice, ia perder tudo, por inépcia e indiferença dos seus parentes. Vá a gente fiar-se nos pais! Com a fisionomia de vítima resignada, ia sair, quando sua mãe apareceu da missa. Chamou-o logo ao pequeno salão.

— Então? - fez ele sôfrego. - Até pensei que tivesses esquecido.

— Falei com teu pai.

— Ah!

— Ele riu muito.

— Riu?

— Riu e disse que lhe estavas saindo de truz.

— E a carta?

— Não ma deu.

— Mas, mamãe, e só agora é que a senhora me diz isso!

— É que não há mais remédio. Justino tinha dado uma carta antes para outro construtor e esteve ontem com o Godofredo na casa do relator do orçamento para fazê-lo interceder. Chegaste tarde.

— Oh! mamãe, vinte contos!

— Tu disseste cinco.

— Cinco, sim, cinco. Mas ainda não está tudo perdido. Os parentes! Os parentes!

Saiu sem almoçar. Uma idéia atravessara-lhe a mente: ir falar com a mãe de Etelvina, com a Sra. d'Ataíde, que morava nas Laranjeiras. Era uma vergonha, logo no seu primeiro negócio, ser tratado assim. Que diria Jorge de Araújo? Riria da sua importância, mesmo junto ao pai. Era enorme aquela! No palacete de Mme. Ataíde, o criado disse que a senhora não estava. Lembrou-se que a mãe de Etelvina só estava, quando o sol descambava e podia mostrar, sem muito escândalo, a face de velha amorosa suficientemente esmaltada. Ninguém mais conhecia que conhecesse intimamente o ministro da Fazenda! Ministro pouco conhecido. Nem ele mesmo. Entretanto, já podia ter-lhe falado, graças aos convites dados pelo Godofredo, de que não se utilizara, senão para ir ao cinematógrafo. Qual! nunca teria jeito para os negócios, para ganhar dinheiro!

Consultou o relógio. Eram duas horas. Devia tantas gentilezas a Jorge, que era impossível deixar de dar-lhe uma satisfação. Precisava, além do mais, fingir, para não perder a importância. E tinha a entrevista de Alice em casa de Argemira, àquela hora. Heroicamente tomou o tramway e veio para o escritório.

— Ninguém perguntou por mim?

— Ninguém - respondeu o velho cor de castanha.

Acendeu um cigarro, acendeu-o à moda, não com fósforo, mas com um isqueiro. Para se saber a que sociedade pertence um homem, basta vê-lo fumar. Jacques, fumando era de primeira classe, com o cigarro grosso no meio do lábio carnudo, tragando vagarosamente, nunca, jamais quebrando a cinza com o dedo mínimo. Para as três horas, o telefone vibrou. André arrastou-se até ao aparelho.

— Hein? Jacques? Não conheço. Ah! o filho do Dr. Justino. Donde é que fala? Da casa da Sra. Melo? Bem.

Jacques fez-lhe sinal que não, furioso, o velho cor de castanha irradiou. Ia dizer não. E pegando outra vez no fone:

— Alô! É a senhora? Diz que não está!

Neste momento, radioso como nunca, apareceu Jorge de Araújo.

— Negócios muitos? Bons?

— Maus.

— Ah!

— Chegaste tarde, meu caro. Falei com o pai, falei com d'Ataíde, que se dá com o ministro, desde o tempo em que ele era do partido conservador. Não foi possível. Até o relator do orçamento deu cartas para o teu rival. Foi assinado hoje.

— Foi.

— Sabias?

— Pois claro. Lancei aquela proposta com outro nome, o de meu cunhado. Como houve outra mais em conta, tive que, à última hora, colocar uma em meu nome, mais reduzida. Se perdesse a grande não perdia tudo.

— Era tua, então?

— Era. Eram ambas.

E para Jacques, perfeitamente apatetado:

— Nada mais simples: negócios!... É preciso preparar as cousas. Deixa, porém, dar-te os parabéns. Fizeste muito num exercício preliminar. Não me esquecerei.