A Profissão de Jacques Pedreira/IX

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Dois dias depois da grande festa, Jacques Pedreira encontrou, alegres e d'automóvel, Jorge de Araújo e Godofredo de Alencar. O interessante jovem passara agradavelmente. Ao sair de casa, fora ver a simples e ingênua Lina Monteiro. Em seguida tivera uma terrível cena de ciúmes e reconciliação com Alice dos Santos. Depois fizera uma alta na casa da Fanga, a ser olhado pela Liana, e acabara no chá a trabalhar o seu flirt com Gina Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado. Trabalhar era o termo justo que Jacques ouvira dar ás conquistas amorosas, e esse trabalho, o único que o seduzia, dava-lhe até cansaço.

— Belo dia? - indagou o literato.

— Razoável... - sorriu Jacques com ares fatigados.

— Negócios?

— ... De mulheres.

Godofredo ergueu as mãos num protesto: Jorge riu francamente. Jacques sentia-se feliz. Certo, tão lindo jovem não tinha tenção de ficar com qualquer das damas que o distinguiam: duas já conhecidas e duas virgens. Apenas no momento conservava-as, balançando a vontade entre a paixão das mulheres e o flirt das meninas - posto que talvez fosse exagero chamar a Malperle de menina.

E assim, satisfeito, quantas mulheres viessem, quantas poderiam amá-lo que a todas procuraria ser gentil. Ele sabia trabalhar...

— As mulheres, Jacques, são apenas um veículo... - começava Godofredo.

— Deixa-o falar - interrompeu Jorge. - Nós vamos a elas. Queres vir?

— Onde?

Jorge e o cronista iam assistir da caixa ao espetáculo de uma companhia portuguesa. Como acontece todos os anos durante o inverno, tinham aparecido a substituir o teatro nacional várias companhias lusitanas de todos os gêneros.

A que fazia mais dinheiro era a de opereta, devido talvez às coristas e às atrizes, quase todas novas e complacentes. A timidez do brasileiro no capítulo mulher é avaliada pela procura e o interesse mantidos pelas companhias de opereta portuguesa. Estão mais à vontade? Será só por isso? Tudo é mistério, e neste caso um feliz mistério para ambas as partes.

Seria um crime entretanto dizer a companhia freqüentada apenas por tais atrações carnais.

A companhia tinha um velho repertório de velhas operetas francesas, inacabáveis operetas lisboetas e antiguíssimas revistas de uma estupidez verdadeiramente incomparável. E tinha também a estrela masculina, o grande ator cômico Salústio Pedro que, nessa noite representava uma das suas coroas de glória: os Sinos de Corneville. Era na estação o seu segundo beneficio, porque Salústio Pedro, além de sócio do empresário nos lucros, além de um ordenado mensal de tenor do Metropolitan, recebia ainda a importância integral de duas récitas, uma oferecida pela empresa em homenagem ao seu talento, outra arranjada pelos amigos em honra ao seu gênio dramático. Essas visitas ao Brasil, além de concertarem assaz as finanças de Salústio, davam-lhe uma dupla autoridade reflexa. Assim, em Portugal, Salústio exclamava:

— O Brasil, fez-me uma apoteose!

E no Brasil:

— Portugal encheu-me de louros!

Daí as amiudadas visitas e as aclamações e os aplausos mesmo... Podia não ser uma estrela. Mas era bem um cometa familiar e prático.

O teatro estava aliás repleto. Uma banda militar tocava no jardim, que de jardim, sendo um modesto pátio sem árvores, só tinha o nome. Alguns admiradores haviam ornamentado a platéia de galhardetes e festões. Nos fins dos atos soltavam da galeria pombos brancos. Quando Jacques entrou com os seus amigos, terminava o primeiro ato. A multidão suarenta trocava opiniões críticas sobre o magnífico ator tantas vezes aclamado. E Jacques sentia-se como na Câmara inteiramente ignorado e desconhecido, porque esse público era de todo diverso do público que freqüentava os teatros onde ia. Na bilheteria e no escritório da empresa, Godofredo e Jorge tinham sido festejados. Ele, ninguém via.

— Que gente! Ainda não encontrei uma pessoa conhecida.

— É outro meio - explicou Jorge.

— Pois claro - concluiu Godofredo. - Onde viu você uma família elegante freqüentar um teatro onde se fala português? Quando vem é com vergonha, como se estivesse a praticar uma ação feia.

— Pelo menos desagradável.

— Desagradável por que, se ainda não viste nada? - inquiriu azedo o cronista, que tinha uma predileção inexplicável pelos portugueses. - Vamos à caixa. Anda daí, deixa a elegância no jardim.

Foi assim levando o jovem. Saberia para onde o levava? Decerto, não. Levemente cometemos ações que são gravíssimas. E muito ser-nos-á perdoado de levar os outros sem saber onde, quando ignoramos mesmo onde nos levam, as mais das vezes, os próprios passos. Jacques nunca tinha entrado numa caixa de teatro, a não ser no Lírico, em dia de festa de celebridade estrangeira. Mas portou-se bem. O movimento era por exceção enorme. Entravam centenas de admiradores de Salústio Pedro, gente do comércio, homens com brilhantes nos dedos e nas gravatas, caixeirinhos trêfegos, comendadores respeitáveis. Os carpinteiros passavam com os cenários, gritando. Da bambolina desciam panos velhos, e já, sobre um chapéu alto caíra por acaso um maço de cordas. Os habitantes de Comeville, representados por uma dúzia de homens feios, de calção, e por umas quinze raparigas de saiote curto, misturavam-se nos corredores estreitos à massa suarenta dos admiradores. Godofredo e Jorge abriam passagem para o camarim de Salústio, atopetado de idólatras. O camarim estava também ornamentado e cheio de presentes, de dádivas, de recordações: cartões postais com fotografias e assinaturas de colegas, menos brilhantes com certeza; aparelhos para diversas necessidades humanas em prata, em tartaruga, em marfim, caixas de charutos, bengalas, gravatas, anéis, piteiras, uma caixa de vinho, dois presuntos de Lamego, um prato de bacalhau frito.

Date liliam... Salústio, comprido e magro, estava radiante. Já começava a abraçar sem saber o nome das pessoas que dele recebiam tal prova de intimidade. Foi quando Godoftedo bradou:

— Há lugar para mais alguns abraços?

A essa voz Salústio, para mostrar aos demais a sua familiaridade com o grande cronista e o jovem milionário fez logo um claro na onda admirativa.

— Vocês? Entrem! Entrem!

— Quero apresentar-te também um admirador: o meu amigo Jacques Pedreira.

— Oh! senhor doutor!... - exclamou trêmulo de gozo a glória cênica, posto que Jacques não lhe tivesse dito uma palavra.

E obrigou os três a sentar. Fazia no pequeno quarto um calor de fornalha. Todos suavam. Salústio tomava para aqueles amigos o seu grande ar de Mounet, do trololó, inteiramente enfarado das admirações públicas.

— Que querem vocês? Fatigo-me! Realmente! Afinal, boa gente no fundo... - E voltando-se para Jacques, que sem dar por ele olhava o próprio perfil no espelho ao fundo: - Não o temos visto por cá, senhor doutor...

— Com efeito... - murmurou Jacques louco por se ver fora dali. E voltou-se porque sentia que, à porta, alguém o olhava. O camarim de Salústio era dividido ao meio. Na primeira metade Salústio recebia. Na outra vestia-se. Acabava ele de desaparecer na outra, quando Jacques deu pelo olhar. E de fato, olhavam-no. Era uma pequena gordinha, com dois grandes olhos negros, uma boca polpuda posto que um tanto cínica. Nada tinha de excepcional, e agradava. Jorge chamou-a.

— Não posso entrar no camarim - fez ela.

— Deixe ver a mão, então...

— Tome lá...

E, rindo muito, com uma curiosidade meio envergonhada:

— Quem é este senhor que cá nunca veio?

— Este é um príncipe.

— Então cá a República também tem príncipes?

Era de uma pequena estupidez deliciosa. A estupidez das mulheres é sempre deliciosa, tanto mais quanto essa falta de percepção não lhes prejudica em nada a ciência do amor que é sempre de revelações. Tinha dezoito anos; talvez seis de carreira no que vulgarmente chamam a perdição. Era meia louca, uma impulsiva, com súbitas paixões. E ria. Os homens também riam. Com as mulheres quase sempre os homens riem sem motivo. Jacques meio corado, respondeu:

— Eles brincam. Não sou príncipe.

— Pois é que o comia por tal.

— Hein?

— Os príncipes devem ser assim bem postos e bonitos.

Desapareceu rindo. Godofredo pôs-se a rir. Jacques julgou aquela sociedade lamentavelmente reles. Reles e curiosa. Um tanto agradavelmente curiosa. Mas aparecia o contra-regra a chamar o gênio teatral, e os três cavalheiros tiveram que deixar o camarim.

Na caixa pesava um silêncio de catedral. Andavam todos em bicos de pé; vagos seios preventivos como amarravam os menores gestos no temor de romper a peso geral. Os coristas sentados no chão, por trás do pano do fundo, conversavam quase ao ouvido um do outro. Os carpinteiros tinham desaparecido. Tudo parecia em êxtase; e ouvia-se distintamente a voz de Salústio dominando a platéia com a sua tremenda tragédia do segundo ato da opereta. O costureiro do notável cômico e mais o contra-regra traziam para o bastidor, um lençol e um manto negro.

Para que isso? - indagou Jacques.

— Ora! - respondeu Godofredo. - Isso é para levantar o Salústio quando ele cair esgotado no fim do ato. Não te rias. O segundo ato dos Sinos é a obra-prima desse gênio. Se não fingir que não pode dar um passo, Salústio julga não ter representado bem. Um chiqué como qualquer outro. Todas as noites é assim. Vais ver a entrada dele amparado pelos coristas. É melhor do que todo o ato visto de fora.

Mas Jorge metera-se no camarim da atriz que fazia Rosalinda, e Godofredo desapareceu também. Nas caixas esses movimentos de dispersão não deixam de ser comuns.

Jacques por exemplo, ia acompanhar Godofredo, quando viu inteiramente deitada no poeirento tapete da antecâmara de Corneville, a rapariga que o achara bonito. Aí, ficou perplexo. Que fazer? Falar-lhe, dizer duas frases vagas e superiores ou passar fingindo não ver? Ele nunca tinha má vontade para com as mulheres. Essa porém não lhe agradava. Não! Não! Nada de coristas portuguesas... Que diriam os seus amigos! E as senhoras então! Deu a volta em torno da cena também em bico de pé para não perturbar o velho Tio Gaspar, que escondia o seu oiro. A cena era fechada. Não podia assim ver o velho tio, mas ouvia-o. Salústio rouquejava; devia estar terrível. Que aborrecimento! E homens como Godofredo e Jorge iam a tais lugares e divertiam-se!

Resolveu sair assim, na ponta dos pés, quando esbarrou com a pequena que ria.

— O meu príncipe não se escamou?

— Eu - disse ele meio sério - por quê?

Ao mesmo tempo habituado ao salão da casa da Fanga pensava enojado na desbocada linguagem da portuguesa. E, certo por isso e porque não sabia o que fazer, estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a com sofreguidão. Jacques tinha as mãos grandes, macias e velutíneas e largas e bem tratadas. As dela eram pequenas, sem perfeição e sem excesso de limpeza. O contraste agradou. Ficou com a mão do mancebo entre as suas. E alisava-a.

— Gosto muito de mãos grandes e finas. Não é do comércio, pois não?

— Não - fez com um sorriso ironicamente superior o jovem indolente.

— Logo se vê...

Ergueu aquela mão, passou-a pelo pescoço. Jacques estava atônito. Aos vinte anos, com o seu temperamento, seria difícil dizer que não desejaria continuar. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se ridículo. Um carpinteiro de resto passara só com o desejo de interromper a cena, e as coristas olhavam.

— Como te chamas? - perguntou ela. E sem esperar a resposta: - Sabes que me agradas. Agradas-me muito, muito. Eu é que não, hem? Também com esta cara, gajas não te hão de faltar e até do fado liró...

Ele conservava-se com um sorriso vago. Então ela puxou-o com fúria e sugou-lhe no pescoço, de surpresa, um grande beijo de carne. Jacques agarrou-a pelas axilas, para se desvencilhar, e os seus dedos tocaram os seios que a pequena tinha excitantes.

— Tenha modos, rapariga.

— Tenho vontade de ti, meu bom.

— Eu é que não posso; não vim cá para isso...

Ela mirou-o subitamente digna:

— Se pensas que é comédia, estás a ler. Isto é cá do peito e não interesse. Tu mesmo não tens cara de dar senão pancadas. És dos meus. - E rindo: - O velho não vem hoje; se quiseres espera-me à saída.

Mas nesse momento ouviu-se na cena um estrondo, que ecoava em gargalhadas na platéia.

A pequena correu. Toda gente corria de resto alucinada e as perguntas e as respostas cruzavam-se entre exclamações, sem que ninguém conseguisse se fazer compreender.

Um vento de pavor enchia o ambiente. A catástrofe em cena, como nas tragédias gregas, prenunciava o fim da noite inteiramente catastrofal. Era apenas isto: a falta de cuidado de um contra-regra estragara a grande cena de Salústio!

Como ninguém ignora, há nos Sinos de Corneville um pedaço em que o Tio Gaspar rola para as janelas as velhas armaduras sem desconfiar que elas estão recheadas de vivos. No meio dessa cena a que Salústio emprestava um sopro shakspeareano, quando o grande ator cômico fazia a platéia tremer de pavor arrastando uma das armaduras, quebrou-se o eixo, e a armadura desabou no soalho vomitando o personagem escondido.

Um grande riso rompeu, Salústio perdera todos os seus efeitos! Ninguém mais se entendeu. Quando foi a entrada do coro, entraram apenas três homens e três damas cornevilleanas. O costureiro e o contra-regra disputavam-se, com palavrões, alto. Mulheres corriam, os homens tinham perdido a cabeça: pedidos de silêncio partiam de todos os lados aumentando o ruído. De repente, porém, a platéia rompe em aplausos frenéticos.

— Desçam o pano! Desçam o pano! - gritavam.

O pano desceu afinal. O costureiro e o contra-regra, mais morto que vivo correram com o lençol e o manto para apanhar Salústio, exausto no soalho, como era costume. As palmas continuavam febris na platéia, e da cena vinham sujeitos em todas as direções. O personagem medroso que tão inopinadamente deixara a armadura, apareceu com o braço luxado e a perna em sangue, sem que ninguém dele se apercebesse. Rosalina entrou sem atenções. O senhor de Corneville passou indignado. O barulho era pandemônico. Só de repente parou, quando apareceu, terrível e desmaiado, o corpo de Salústio Pedro. O grande artista vinha assim mostrando como o possuía a arte. Quando, porém, sentiu estar fora do palco, deu um pulo de acrobata, pôs a mão na aura magra, ganiu furioso:

— Cambada de cães! Quem foi que preparou a armadura? Cambada! Cães! Cães! Esmurro todos! Estragar a minha cena, na noite do meu beneficio!

Estava em pleno delírio. Passou por Jacques, sem o ver, vociferando. Ia pela caixa, de novo invadida pelos admiradores, um temporal de impropérios. Jacques viu Godofredo que saía.

— Mas o que houve, homem?

— O que houve? Houve que o grande Salústio perdeu a sua cena!

E desceu às gargalhadas - gargalhadas que no pátio de entrada, porteiros, bombeiros e músicos da orquestra já tinham.

Jacques porém no jardim, sentia-se hesitante. Partiria ou esperaria? Afinal era um rapaz, aquele beijo não lhe parecera desagradável e não havia nada de mal em ir passar uma hora, com uma criatura inferior. Mas ao mesmo tempo lembrava-se dos seus amigos.

E aquilo parecia-lhe quase vergonhoso. Indagou entretanto de Godofredo.

— Aquela corista?...

— A Maria?

— Essa...

— Dizem que é um temperamento. Tem um velho.

— Cara, então?

— Para o velho, decerto. De resto não conheces tu outra pessoa. E o Florimundo, o Florimundo do Carlos Chagas...

Quando se deseja satisfazer uma secreta vontade, todas as coisas podem acabar por ser argumentos favoráveis à satisfação... Para Jacques, a pequena portuguesa, desde que era mantida por um velho que assentava à mesa da Fanga e ia ás recepções de sua mãe, já não lhe parecia tão ordinária. Godofredo continuava.

— Contam que já esfaqueou um homem.

— Então, assim ardente?

— Ai! filho, como as portuguesas! - suspirou o original cronista.

— Se fôssemos cear com ela?

— Deus me livre. É absolutamente estúpida. Mas para que ceia? Queres também essa?

— Eu não...

— Elas é que querem? Ai! felizardo!... Mas, por isso mesmo, a ceia é inútil. A ceia foi feita para os que vão se possuir sem se amar. É uma espécie de retardamento. Depois é impossível ceares. O Jorge leva a primeira atriz, e uma primeira atriz jamais se sentará à mesa com uma corista.

— De fato...

— Só o lembrar que há oito anos passados também era corista dá-lhe verdadeiras nevralgias de estômago. Mas o Salústio... Olha que foi boa, hem?

E partiu a conversar no escritório. Jacques ficou vendo o movimento, afinal meio divertido. Que mundo aquele tão diferente! Decididamente havia muita coisa sobre a terra de que não cuidava na sua vã filosofia. Quando alguém tem uma preocupação, esse alguém é fatalmente hamlético. Jacques, por mais que reagisse, estava também hamlético. Quando o espetáculo acabou, ia saindo com a turba, quando viu Jorge nervoso.

— Vens conosco? Eu espero a Ada. O diabo é que ela demora muito a vestir-se mal. Estas portuguesas! Vestem mal, não se limpam, não se perfumam, não têm chic! oh! que mulheres horríveis!

Jacques teve vontade de perguntar por que, julgando-as tão más, Jorge vinha procurá-las. Mas como tinha a mesma opinião e estava na iminência da mesma culpa, sorriu com ar superior. Jorge, porém, continuava:

— E as partes, os chiqués que elas fazem! Qual, Jacques... Tirem-me das francesas e das italianas e eu sou um homem sem ação.

— Estás contrariado?

— Eu não. E o Godofredo?

— Foi-se.

— É isso. Arranja-me destas coisas e depois raspa-se... Tu, decerto, também não vens?

Há perguntas que indicam a resposta, que a impõem. Jacques, por pouco inteligente, compreendeu e disse:

— Não, vou ao club.

E pensava que filtro teriam aquelas mulheres de teatro, aquelas portuguesas sem perfume, para que Jorge, rico e cheio de mulheres caras, viesse, a contragosto do seu esnobismo, esperar uma delas à entrada da caixa... De resto, aquela espera era lúgubre. Passavam os carpinteiros, os alfaiates, as costureiras, os coristas com uns ares ainda mais lamentáveis cá fora, as coristas que tinham homens à espera, as atrizes envoltas em mantos, retardatários e teimosos admiradores, os atores meio sujos na sombra... Que gente! De repente, Jorge deu um pulo, do banco. Era a atriz que chegava, pequena mulher de voz garota.

— Então, esperou muito?

— Quase nada.

— Estou que não posso. Venha dar-me um caldo.

Jorge fez as apresentações; foram andando os três, saíram. O automóvel esperava.

A atriz subiu; Jorge também e de dentro:

— Não vens?

— Não, até amanhã.

— Bem, não te quero forçar...

Jacques sorriu, cumprimentou. O automóvel rodou. Pela primeira vez vira Jorge, que o levava sempre para as ceias alegres, desejar estar só, cear só com uma mulher.

Era um poder misterioso dessas portuguesas nos brasileiros? E eram brasileiros como Godofredo e Jorge! Sentiu que teria uma infinita vontade de troçá-los, mas infelizmente eram dois homens a quem não poderia fazer pilhérias com impunidade e sem imediato prejuízo. Sorriu, acendeu um cigarro, vendo o movimento dos botequins, pensou gravemente que nunca na sua vida se achara só, à noite, saindo de um teatro de língua portuguesa, na Rua do Senado. E desceu a rua, decidido a ir dormir, quando um passo apressado fê-lo voltar-se. Era ela, a pequena, com um chapelinho sem gosto, uma pelerine, e, para aumentar o horror, com os dedos cheios de anéis de chuveiro, com várias pedras... Misericórdia! Ele, Jacques Pedreira, seria capaz de fazer dois passos com aquela mulher em plena rua? Ela, porém, sorria satisfeita, e a sua boca e os seus olhos eram gulosos.

— Bem se vê que entendes do riscado.

Jacques estacou seco:

— Como?

— Já não é a primeira vez que tens amantes no teatro.

— Quem to disse?

— Vê-se logo... Esperando cá fora, ninguém desconfia e não vão contar ao traste do meu velho.

— Mas estás enganada... - interrompeu Jacques vagamente revoltado com tantas qualidades.

— Ora... Chama a tipóia, anda, chama que estão a olhar para nós. Chama depressa. Tenho sede de ti, meu cravo.

A rapariga devia ser ordinaríssima. O acerto parecia querer ser-lhe desagradável. Jacques estava meio assustado e sem vontade. Como escapar? O carro era a salvação.

Era a única salvação momentânea. Atravessou a rua, meteu-a numa berlinda fechada.

— Para onde?

— Para onde quiseres, menos para a pensão que contam ao velho...

— Diabo.

— Manda bater para a Beira-Mar. Depois vê-se...

Jacques obedeceu, consultando as algibeiras tão bem-feitas e tão escassas. Que criatura!

Ia deixá-la na primeira esquina. Mas quando o carro rodou, Maria já arrancara o chapéu e a pelerine. Estava com uma simples blusa de nanzuque. Atirou-se aos seus lábios, sedenta, murmurando:

— Aperta-me o pescoço, com as tuas mãos... com força meu bom.

Felizmente ainda não houve quem dissesse que todas as mulheres se parecem. Desde Eva, com efeito, ainda não houve duas iguais. Por isso é explicável o amor da poligamia. Desde que os homens são sempre iguais e as mulheres sempre diversas é justiceiro que a curiosidade do homem não se contente só com uma. Ao demais mesmo as mulheres comuns reservam a sua surpresa de modo que de todos os símbolos dos humanos um apenas ignorará a saciedade: Dom João. O sport do amor é o único que não aborrece. Jacques tinha, na sua curta vida, conhecido várias espécies de amor. Aquele caía de chofre e causava-lhe uma impressão inédita. Seria por ser uma mulher de teatro, que apesar de português não deixava de ser teatro? O fato é que ele não tinha ainda tido aquilo. Ela no carro, em simples esboços de posse, entregava-se e tomava, possuía e passava a ser uma coisa dele; uma coisa que aliás seria mentir se não a denominássemos de bem boa. Jacques, nascido para as mulheres e que, ó louco, pretendia conhecê-las já com os seus poucos anos, via-se na obrigação de confessar que as novidades são imprevistas. A mulher ainda é de todos os animais da criação o mais interessante, e se o filósofo disse que a mulher é um meeting de linhas curvas, não há como essas linhas para chegarmos ao ápice das sensações agradáveis. A pequena portuguesa era nature, era comum. Mas ele não sentira nunca assim uma tal sinceridade.

Quando o carro chegava à Beira-Mar, Jacques sentiu que não podia tanger aquele instrumento numa incômoda berlinda de praça, e metendo a mão no bolso das chaves, sentiu que pegava na chave da garçonnière do barão. Como os deuses queriam aquilo! Que providência andava em tudo! Tirou-se então dela e disse-lhe:

— Queres vir comigo?

— Onde?

— A minha casa.

Ele empregava o possessivo para que depois ela tivesse um espanto e o admirasse mais. Ela respondeu:

— Até ás quatro da manhã. Depois tenho de retomar a pensão, saltando pela janela...

E dizia a verdade sem tenção de o espantar. Os homens quase sempre mentem mais que as mulheres. Jacques ria entretanto. Nunca tivera uma mulher que saltasse janelas e o confessasse tão simplesmente.

— Mas por quê?

— Porque se entro tarde, a dona da pensão conta ao velho...

E Jacques sentia que aquela mulher dava-se e tomava mesmo falando. O carro parou quando de novo Maria saltava-lhe aos beijos sobre os olhos. Jacques desceu, abriu a porta. Ela de um pulo estava do trem dentro da casa. Ao fechar a porta Jacques teve a sensação de que cometia um ato de conseqüências desagradáveis. Maria encostou-se um pouco:

— Ai que dor no coração!

Foi a única manifestação do sentimento de previsão que aqueles organismos tiveram.

Ele por espalhafato ligou a eletricidade, fez luz, enquanto fora o cocheiro praguejava por ter recebido pouco. Ela abriu uma gargalhada.

— Ai! que o petiz arma em faéton! Querem ver que é mesmo príncipe?

E subiu, entrou no salão ressabiada, entrou no quarto de cama, quarto cheio de amores, passou para o quarto de banho com um vinco na testa, perguntou para que serviam vários objetos, esteve na casa de jantar, foi até a cozinha. Jacques olhou-a aí e sentia-a no justo meio quando a pequena fez alto a seguinte reflexão:

— Tu és muito gajo.

— É boa. Por quê?

— Por quê? Queres saber? Porque nada disso é teu.

— Hein? - fez Jacques que decididamente não conhecia a percepção, a intuição divinatória do sexo feminino. - Mas por quê?

— És muito dos meus para teres estas coisas. Isso deve ser de algum teu amigo a que exploras. E com milho. Ah! meu cravo, que finório saíste! És bem dos nonos...

— É a terceira vez que dizes que eu sou dos teus! - constatou Jacques com uma ponta de zanga. - Não repita.

Estava vexado que a mulher o tratasse como um igual. Ela porém ria.

— Olha o tolo! Se tivesses coisas destas não gostaria de ti. És do fado liró mas sem cheta. Adivinhei ou não?

Como ele sentisse um palavrão na boca - ele que justiça seja feita, não tinha esses hábitos - ela puxou-o com fúria, sorveu-lhe a boca, rolou com ele por cima da mesa no tapete da casa de jantar, que a eletricidade iluminava intensamente. E o interessante jovem sentia que era outra coisa, que era mais alguma coisa, que eram várias coisas mais...