A Profissão de Jacques Pedreira/X
Se não estivéssemos numa época de exageros poder-se-ia qualificar de vertiginosa a vida de Jacques Pedreira após a memorável festa dada em beneficio do Dispensário da Irma Adelaide e que tão grande prejuízo começava a causar à digna diretora. Porque de fato era uma vida vertiginosa. Não que o interessante jovem assim a desejasse, mas porque assim o resolvera o acaso. Havia o negócio das fibras. O projeto continuava no Senado sem entrar na ordem do dia. Godofredo de Alencar culpava o Grande Chefe.
— Precisas fazer com que Arcanjo peça ao general.
— Não será muito.
— Olha que temos trinta contos.
— Bom, bom - fazia Jacques nervoso à idéia daquele dinheiro e com sérias dúvidas, dúvidas que se acentuavam sem base sobre a maneira de repartir do Godofredo.
De resto, o negócio em elaboração não poderia ser senão um pequeno exercício sem método na sua vida a toda brida. A fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports: o automóvel e a mulher. Tudo na vida é sport. O maior sportsman de todos os tempos foi positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, predestinado de fato, venceu todas as performances e todos os handicaps e, segundo observações inteligentes foi o inventor do puzzle na organização do caos. Não é de admirar que a humanidade, à proporção que mais intimamente conhece Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é particularmente esportiva. Os jornais falam de matches de velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida ou a cada pontapé; as pessoas andam na rua como quem vem ou quem vai para um desafio ou pelo menos para uma aposta. Jacques, além da corrente pertencia a um grupo que tinha por chefe Jorge de Araújo. Comprou um reloginho para prender ao pulso e foi das velocidades.
Jorge, de resto, protegido das boas fadas, tendo feito uma fortuna enorme em pouco tempo, fino, esperto, com tudo quanto desejava, percorria o período fatal da exacerbação. Tornara-se incontentável, de uma neurastenia a frio. Godofredo assegurava que os automóveis haviam transmitido a sua inquieta alma ao proprietário. O Barão Belfort sorria. O fato é que Jorge sentia a fortuna pequena para os desmandos da existência inteira, e querendo aumentá-la ainda mais rapidamente do que a ganhara, forcejava por tornar atordoadoras as horas de repouso.
Assim aumentava a coleção de automóveis de corrida. Tinha seis. Emprestava aos amigos até. Por essa ocasião o filho do antigo merceeiro Teotônio, o jovem milionário Teotônio Filho, em companhia do pobre Dória, que afinal conseguia ser agente de uma fábrica de França, surgia guiando um automóvel. E no meio, enquanto se acentuava a rivalidade esportiva entre o Jorge e o Teotônio Filho, diariamente, dizendo-se agentes de fábricas automobílicas, aparecia ou um jovem francês perigoso, ou um italiano assustador ou um português palrador.
É incontestável que o automóvel dá muito dinheiro a ganhar. Principalmente a quem neles trabalha pouco, ou não trabalha mesmo nada. O automóvel faz ganhar em maior parte aos intermediários das vendas. Esses jovens vinham para as encomendas do governo, repartiam largamente as comissões e a atmosfera foi em certo momento tal que todos acordaram ser uma vergonha não haver ainda um automóvel-club. Se todos auto-mobilizavam, se todos eram loucos pelo sport, por que não haver um club? E de um momento para outro, o club surgiu mesmo na praia, em frente à Beira-Mar, ocupando um velho prédio familiar. Jacques freqüentava-o, sem aliás lhe encontrar encantos. O club, montado à pressa, tinha como mobiliário mesas repletas de revistas esportivas que ninguém lia, pelas paredes algumas caricaturas inglesas e francesas tratando de cavalos, de pólo, d'automóveis, de cricket e de lawn tennis e umas vagas poltronas, de um modernismo que nem ao Mapple pedia auxílio. À porta era toda noite um carbuncular de faróis de autos e a algazarra da penúltima profissão inventada pela civilização: os chauffeurs que os sportsmen tratavam como antes dos chauffeurs só era possível tratar o seu cavalo ou a sua cocotte. A diretoria, enquanto não se dissolvia o club, falava seriamente nas possibilidades de um circuito.
— Mas por quê?
— Porque é chic.
— E por onde, se não temos estradas?
— É verdade, menino, nem estradas temos...
— A febre tudo transformará! - exclamava Godofredo com ares proféticos, depois de ter apresentado alguns agentes nas secretarias de Estado.
— O que dá forte acaba logo. Antes do circuito o club fecha, e então só resta apelar para a navegação aérea. Só há um sport que ainda não nos cansou: o falar mal da vida alheia...
Entretanto Jacques tomava muito a sério o automobilismo, conhecendo os termos técnicos, exercitando-se a guiar como motorista de Jorge, aquele motorista que ria muito, era boêmio, raptava meninas e nunca chegava à hora. Foi a época das loucuras. Acordava tarde, vestia-se com cuidado, ia um pouco a Lina Monteiro, apreciava a hora de Alice dos Santos, enredava um flirt no chá e entrava a noite de automóvel, com o seu bando, a quem respeitava e a quem nunca dava opinião.
— Vamos jantar no Leme?
— Dando a volta pela Tijuca?
Iam. Quando o barão era do grupo tomava-se champagne desde o começo, um brut Imperiale famoso.
E após o jantar, como era enervante aparecerem no teatro sempre, como as mulheres davam gritos nos carros, divertiam-se sós a dar corridas loucas pela Beira-Mar quase deserta. E era um riso perdido, na ebriedade da rapidez. Os inspetores de veículos pulavam aterrorizados como gafanhotos na nuvem de poeira, raros transeuntes olhavam as máquinas com a cara de quem não compreende. Por fim, o 720-A-E foi assinalado à Inspetoria. Todo dia chegava a intimação para a carteira do motorista. E do grupo era Godofredo com a sua literatura, o encarregado de falar com o senhor inspetor, incapaz de lhe negar qualquer coisa, por causa dessa maldita imprensa que baba pela lei e salta por cima dela sempre. Por esse tempo surgiu enviado de uma fábrica italiana il re dei chauffeurs, o cavalheiro Stanisláo Sfrapini, que conduzia de modo sensacional. A primeira vez que Sfrapini Stanisláo, magro, com a barba em ponta, conduziu o automóvel de corrida com a carrosserie de ville como eles diziam no mais puro português, foi positivamente um assombro. O homem parava quando queria, raspava carruagem propositalmente e por fim, às três da madrugada, sem gasolina fez um percurso de três quilômetros em consecutivos estouros que pareciam uns bombardeios. Godofredo, nessa madrugada quis ser aquele cantor que na Grécia cantava os vencedores das corridas de carro, desde que o progresso não sabe coroar o assombro com a flor da poesia. E Jacques, que pouco se importava com o poeta grego, deu um grande abraço no homem incomparável. Durante uma semana só falou em Sfrapini.
Mas esse entusiasmo automobílico em nada diminuía o fervor pelo amor. O curioso é que o amor, o apetite da pequena portuguesa exerciam nesse lindo rapaz uma influência prodigiosa. Ele fora conduzir a Maria à pensão que ficava numa esquina da Rua dos Inválidos. Vira-a saltar a janela e rir-lhe já de dentro.
Aquela mulher era tão imprevista que Jacques pensava estar a enganar o Florimundo e não a podia largar. Certo, não a procurava. Nem duas vezes foi à caixa. Mas a Maria ensinava-lhe tais coisas ordinárias e enchia-lhe as sextas-feiras com tais sortidas boêmias, que não faltava nunca. Recebeu-a mesmo, além dessa noite semanal em que o Florimundo descansava, uma vez de dia na garçonnière. E foi o dia precisamente em que ela lhe levou de presente uma gravata de seda cor-de-rosa; e foi o dia precisamente, em que tendo ele rido e aos insultos da ofendida Maria por aquele riso Jacques lhe atirou uma tremenda bofetada; e foi o dia precisamente, em que quase estrangulada, rojando no tapete e beijando-lhe os pés, Maria soluçou com a própria alma.
— Meu homem, meu homem...
Era brutal, indispensável e esplêndido. Essa paixão ou que melhor nome tenha não se fazia para Jacques absorvente. Jovens da sua natureza são apenas mais realçados pelas paixões. A Maria dera-lhe como a revelação de ser ele o bruto, o macho. Isso nunca é inconveniente, numa carreira brilhante como a de Jacques. Assim o jovem continuava sempre novo para todas porque aplicava em Alice o que aprendera em Maria, o que lhe tinha mostrado gostar Alice ou o que lhe revelara Liana, para que a portuguesa o chamasse meia louca de porcalhão. E, agindo assim, oferecia um verdadeiro curso às meninas, que não haviam passado do flirt.
Os homens simples ficam admirados e cheios de inveja diante do ser de exceção denominado conquistador. Na maioria das vezes é ele o conquistado, porque a sua arma é dispor de todos os meios, é conversar, é ouvir bem as mulheres e contar-lhes em seguida o que fez com as outras. Quando se conversa ao nível de uma mulher, seja ela honestíssima, tudo é possível e esperar é lucrar. De resto, até com os homens o fato repete-se. Apenas com os homens de que se precisa é muito mais difícil porque eles são infinitamente mais idiotas. Jacques multiplicava o prazer que a sua beleza exercia. A Gina Malperle, filha do cônsul do Cobrado, com o seu ar de girl new-yorkense, declarara um sentimento profundo.
Gina, ninguém se lembrava de perguntar se era de fato casada, solteira, ou viúva. De tanto a verem e de tanto a ouvirem sempre inteligente e moderna os piores maldicentes esqueciam positivamente o seu estado civil. Era de resto o único caso da história de tão fina sociedade, de modo que, sem pensar, acompanhando o tratamento que lhe davam as sessões mundanas dos jornais e o seu respeitável progenitor, todos a chamaram Mlle. Gina. Quereria ela casar? Já teria passado a idade do casamento? O fato é que flertava com alguns rapazes e aborrecera quase todos, considerando-os fúteis.
— Vocês esquecem que eu tenho uma educação americana e que os rapazes da nossa roda lembram muito mais os de Paris! - dizia a rir.
Mas Jacques dominara-a pela segurança, pela tranqüila e fácil certeza com que tomava conta das mulheres, sem lhes ter o menor respeito.
No mesmo dia em que a segurara e com ela dançara empolgando-a, enebriando-a, Gina vira o que ele fizera com a pobre Lina Monteiro, e sabia os direitos de Alice dos Santos sobre o maravilhoso adolescente.
A psicologia do homem que às mulheres agrada ficará sempre por fazer. Eles próprios ignoram a causa da preferência. Mas o coração das mulheres, apesar do excesso de observações e dos romances, ainda é maior enigma. Por mais que Gina refletisse e julgasse Jacques um caso de que devia afastar-se, não lhe era possível ao cabo de prolongadas reflexões, senão desejá-lo mais. Amor? Não.
Um fim oculto? Também não. Jacques, para aquela rapariga prática não podia ser um bom partido. Desejo de entregar-se? Gina Malperle, graças a sua educação americana, não pensava em fazer semelhante tolice. Em todo o seu organismo havia apenas a vontade de ter um pouco do belo adolescente, de subtraí-lo às outras, de fazê-lo sentir a sua influência. Dois dias depois da grande festa, encontraram-se num teatro. Ele vinha de conversar com a Viuvinha Pereira, fazendo-a rir muito, e estivera no camarote da Condessa Rosalina Gomes, que mordia um chocolate como quem morde um lábio. A peça era essencialmente contemporânea: falava-se de coisas afrodisíacas do começo ao fim. No camarote em frente havia Mice dos Santos com a ilustre Sr.ª de Melo e Sousa. A conversação tomou aquele ar de intimidade um pouco maternal que as mulheres não podiam deixar de ter com o lindo mancebo. E o lindo mancebo tinha o costume de contar as suas boas fortunas com um tom ingênuo de criança que narra os seus brincos. Era naturalmente excitante.
— Então, em trabalho? - fez Gina.
— Que trabalho? Não me fale de trabalho porque é cousa aborrecida.
— Mas não é trabalho esse exercício em torno das damas? Ainda há pouco a Pereira ria.
— É porque eu lhe contava como tinha brigado com aquela italiana que ali está na frisa.
— Aquela de cabelo loiro?
— São pintados. Foi há tempos a briga. Atirei-lhe com um prato de sopa.
Gina ria achando aquela confissão de um mau gosto enorme, mas por isso mesmo presa. E como devia ser americana, e como queria reter aquela flor de mocidade, excitava-o.
— Entretanto, há outros camarotes...
— Ah! isso - fez o pequeno - esses camarotes são para o meu flat.
— Seriously? Have you a flat?
— Yes.
Ele chamava de flat, à inglesa, a garconnière do barão. Ela não acreditava. Ele descreveu-a, mais ou menos, olhando a sala. No dia seguinte encontrou-a no baile de Mme. Gouveia, que iluminara os jardins com balões venezianos. Dançaram juntos. Desceram ao jardim, e ele num recanto de árvores, tomou-lhe na boca de súbito um beijo grosso carnudo, tão bom e cheiroso que Gina Malperle não pôde zangar e despegou-se como um pássaro tonto, como se tivesse caído de um paraíso, ainda mastigando o sabor perfumado.
Ao mesmo tempo, como Lina Monteiro morava numa pequena rua próxima da praia, Jacques, ao partir para a cidade, não deixava de dar uma vista d'olhos por lá. E o que o interessava em Una, a menina pobre e desclassificada é que ela era pura, ingênua e imaginava amar para casar. Não era a primeira vez que era enganada, mas também nunca amara assina. Quando via Jacques ela tremia como uma flor ao vento e tudo quanto ele pedisse, ela daria. Não se pode dizer que um homem mente quando ele não calcula e não goza o prazer de mentir. Jacques não mentia a Lina, mas prometia-lhe casamento, convencido de que não casaria depois. Era sempre sincero porque não tinha inteligência para mais.
— O diabo é que agora não posso.
— Peço todo dia a Nossa Senhora por ti. Eu esperaria até o fim da vida! - exclamava essa pobre menina ingênua.
E Jacques ia dali, sinceramente, a casa da Fanga ver a Liana, que cada vez tinha mais influência sobre Arcanjo, ou encontrava um pouco Alice dos Santos. Essas duas criaturas tão diferentes uma da outra, não lhe causavam grandes desejos. Mas Liana era humilde como um cão, chorando sempre e dela muita vez emprestava dinheiro, o que significava que recebia de Arcanjo. E Alice era a boa, a sã, a sempre espontânea Alice, que o queria mesmo, e agora mais, sabendo-o desejado por todas. No quarto de Liana o interessante jovem as mais das vezes dormia, lendo um jornal. Na garconnière do barão, em geral esboçava cenas com Alice que terminavam com tremendas luxúrias, porque ele fazia-a conhecedora do repertório de Maria. Alice tinha surpresas contínuas. Uma vez, em que Jacques lhe apertava o pescoço com vontade de estrangulá-la, ela cerrara os olhos com um tal gozo que ele estacara. E ela murmurou:
— Mais, mais, é bom...
Com grande espanto seu, ele viu que esse seu gesto o excitara também de súbito, e como duas crianças que se descobrem prazeres proibidos passaram uma semana, nesse exercício delicioso. Maria acabou assim sempre presente ás luxúrias do interessante jovem. Era o seu anjo-da-guarda...
Quando acordava, Jacques não deixava de ficar inquieto tanto tinha o que fazer - mesmo porque esses trabalhos tendiam a aumentar. As damas, outras damas, apertavam-lhe a mão com uma significação que só as mulheres, seres por excelência receptivos, sabem dar aos apertos de mão. E havia corridas, havia vários rendez-vous automobílicos depois de ter escorraçado os pretendentes.
Entretanto Jacques imaginava uma solução para essa crise e D. Malvina, recolhida ao quarto, temendo pelo filho a vida de automóveis e mulheres, imaginava conversar seriamente com Argemira. E foi, precisamente essa cena, o prenúncio de vários desastres. Tudo na vida é sport. Na vertigem da corrida nem sempre servem as performances...