A Profissão de Jacques Pedreira/XI
Mas, afinal, o caso das fibras ia resolver-se. Evidentemente, Jacques tivera uma decisiva influência na sua realização e notava que Godofredo, só o fazia de agente, apenas de agente. Ao concorrente o cronista aparecia como o autor de todo movimento. Jacques acicatado pelo ar de zanga do poé e com uma talvez vaga desconfiança no homem de letras, quis entrar diretamente em relações com as partes. Godofredo era fraco. A demora irritava sobremaneira o representante do sindicato, um velho e sórdido português judeu João Gomide, que emprestava os dinheiros para essa tentativa aos cofres públicos. Assim, quando se viu sem solução entre Jacques e o Sr. Gomide, o cronista para acalmar as dúvidas de ambos apresentou-os.
O Sr. Gomide, com um sorrisinho voraz e pacifico estabeleceu um papel no negócio: era apenas um agente que tinha de dar contas das despesas a maiores. Das fibras levava apenas uma comissão. Era preciso que o negócio desfibrasse assaz o Tesouro, para que assim Gomide desse comissões. O agente, de resto, tinha um escritório ambíguo, em que se emprestava a juro alto, e era homem de papéis, de recibos, de pequenas assinaturas. "Tudo em ordem" diria procurando explicar. O fato é que entrava em tudo preso a esses salva-vidas e que mesmo se a onda fosse forte pelo menos os salva-vidas iriam com ele.
Na operação de Godofredo as coisas tinham ficado combinadas. Os dois cavalheiros receberiam na aprovação do Congresso a metade da comissão. A outra seria entregue, após a assinatura do presidente. Jacques com a simpatia que os rapazes de sua situação não deixam de ter pelos prestamistas, fingiu para o velho Gomide várias gentilezas. Ao deixar o pequeno escritório equívoco da Rua dos Barbonos, estava certo que desta vez veria dinheiro, não pela sua influência mas pela sorte de Gomide, metido no negócio. E desde esse momento - coisa curiosa! - Godofredo começou a aparecer no seu cérebro numa posição secundária. Dentro em pouco estava no último plano. Dois dias depois na cabeça de Jacques, Godofredo apenas abria a porta da casa do Gomide; e, apesar da importância que a gratidão manda dar aos cavalheiros que nos abrem as portas, nem por isso os cavalheiros deixam de continuar, com prazer nosso talvez, lá, à porta, distantes...
Entretanto a nervosidade de Godofredo aumentava. Era dizer que o caso estava por dias. E estava. Uma segunda-feira o projeto entrava na ordem do dia. Não houve número. Nem na terça. Nem na quarta. Era felizmente a terceira discussão sem que os senadores o tivessem visto. Godofredo teve um trabalhão para obrigar Jacques dividido entre os automóveis e as saias, a ir ter com Alice:
— A Alice fazendo o Senado trabalhar! Não exageres!
— Eu é que nada posso fazer. Uma nota jornalística perderia tudo. O número depende da vontade do Grande Chefe.
Jacques conversou com Alice, contou-lhe a cena do Senado, assegurando que olhando para os senadores só achava alguém capaz de os mover. Ela riu, vaidosa. Na quinta, os senadores estavam todos na sala do café conversando, quando o presidente verificou que infelizmente ainda não havia número. Sábado a concorrência ao recinto foi grande, mas para ouvir uma arenga, explicação pessoal do famoso chefe, que além de dizer tolices, silabava de modo a fazer rir mesmo os contínuos. O jovem encantador, teimando no flirt de Lina Monteiro, e relações cortadas com o pai, via-se apenas com os recursos da sua mãe e com a humilhação de falar a Liana do dinheiro. Por isso estava absolutamente no ponto para compreender o valor de dinheiro, e bater-se pelo dinheiro.
Graças aos deuses, segunda-feira, quando ninguém contava, o grande político reapareceu no recinto do Senado, logo acompanhado pelos senadores que o obedeciam por gestos. O projeto das fibras passou despercebido. Na mesma tarde, Jacques viu Godofredo, que o agarrou.
— Ça y est!
— Passou?
— Enfim!
— Agora é você tratar da sua parte.
— Ah! Jacques, custa muito ganhar dinheiro.
— A quem o dizes...
Jacques não tinha a menor surpresa. Desde o encontro com o Gomide, julgava aquele dinheiro seu. Godofredo porém enchia-o de pasmo.
— O Gomide falou-me num recibo a fazer. É preciso um recibo. Coisa sem importância, espécie de garantia dele junto ao sindicato... De resto documento absolutamente privado... Passas amanhã por lá, só dás recibo pelo dinheiro, e depois repartimos...
— Sim, está bem.
— Não durmas.
O jornalista, muito prudente para se comprometer com documentos, só achara aquele meio para retirar das garras de Gomide a metade da comissão. Aquela confiança, porém, ou era uma prova de que os seus negócios iam muito bem ou era a grande demonstração de simpatia por Jacques. O jovem imaginava entretanto o cronista cheio de dinheiro. No dia seguinte, pois, acordou como sempre, almoçou depois da hora para não se encontrar com o pai, e veio para a cidade, com a pasta de marroquim vermelho debaixo do braço. Saltou na Rua Evaristo da Veiga; bateu no escritório de Gomide. O velho estava, mas custou a abrir, recebendo-o com frieza.
— Então, caro Gomide, que lhe dizia eu? Afinal vencemos!
— Ainda não de todo, senhor doutor.
— A minha parte pelo menos, creio... Uf! custou!
— Tudo custa, senhor doutor!
— Não há dúvida, Gomide.
Houve um silêncio. Já havia antes deles falarem, durante o pequeno diálogo talvez. Por isso quando cessou de ouvir o barulho da própria voz, Jacques sentiu esse silêncio maior, imenso, cheio de várias coisas desagradáveis que nunca são ditas. Ele sentia que tinha de arrancar do velho o que era seu, e estava subitamente resolvido a tudo.
— Godofredo já esteve ca?
— Ontem, logo depois da votação...
— Ah!
Olhou Gomide. O velho não se mexia. Jacques, um pouco nervoso, teve de explicar o que Gomide estava farto de saber.
— Godofredo falou-me que viesse cá receber a primeira quota.
O velho abriu a boca, fechou-a, tossiu, assoou-se.
— O doutor não acharia melhor tudo no fim?
Jacques teve um momento de cólera, logo abafado.
— Creio que não, Gomide. O Godofredo anda embaraçado...
— Palavrinha?
— Palavra. Por mim, não. Isso para mim seria indiferente. Mas Godofredo ficaria contrariadíssimo. Eu sei.
O velho continuava calado. Jacques então com galhardia e um ar despreocupado, que lhe ficava bem, teve uma exclamação triste. Diabo! Se o Godofredo não recebesse aquele dinheiro a sua influência era tão grande que decerto fazia o presidente votar a autorização. E lá se perderiam dinheiros de adiantamentos, trabalhos. Enfim...
— É certo o voto. E o negócio...
— Oh! senhor doutor, é sério...
— Para vocês! Ande, Gomide, deixe cá ver a soma. Não saio daqui, sem a sua última palavra.
O Sr. Gomide tomou um ar pensativo. Depois sentou-se à secretária e escreveu algum tempo. Quando acabou, a sua fisionomia retomara o aspecto comum. Acabara de escrever um documento macabro. Se falhasse a conversão, aquele dinheiro pelo menos voltaria, ou muita gente estaria a aparecer num panamá assustador e reles. Jacques passava o recibo de quinze contos por ele e por Godofredo, comprometendo-se a pagar, a restituí-los com a aprovação do projeto pelo Executivo.
Então qualquer não assinaria. Assim fizera Godofredo, Jacques assinou sem hesitar - porque tinha de tirar dinheiro do velho Gomide. O prestamista chegou a sorrir. Aquela folha de papel valeria dinheiro em qualquer tempo! Quando o rapaz assinou, foi quase humilde, que abriu a burra e contou três maços de dez notas de quinhentos cada um. Jacques recebeu com calma. Como era pouco! Como o dinheiro é poeira! Como quinze contos visíveis, mesmo antes de gastos mostravam-se tristes da sua insignificância! O adolescente meteu-os na bolsa de marroquim vermelho, cumprimentou o velho usurário e saiu. Sentia-se apenas mais ligeiro. E com o desejo de conservação própria que não se conhecia. Querendo atravessar a tua, esperou tempo a deixar passar um automóvel, que vinha longe. Depois verificava o erro de andar com tanto dinheiro. Foi até o escritório. André, de cima, logo que o avistou, começou de fazer gritos de negação.
— Não! Não! - soluçava o contínuo cor de castanha.
— Que há André?
— Não vale a pena subir. O senhor seu pai está em conferência.
Noutra ocasião subiria. Naquele momento satisfez a má vontade de André, mesmo porque não sabia por que lá tinha ido. Foi aliás aí que lembrou ter de dar a Godofredo sete contos e quinhentos. Era desagradabilíssimo. Que ato de generosidade quase criminosa para o seu egoísmo, ainda acrescido por um mês de falta de dinheiro! Mas o diabo é que havia ainda outra metade. De fato, Godofredo arranjara o negócio. Aquela parte do trabalho era sua. A outra seria do literato. E Godofredo devia nadar em oiro, devia ganhar muito. Sim! Evidentemente. Depois não deixava de ser grato ao Alencar, mas aquilo fora só boa vontade d'Alencar para pô-lo dans le train. Havia de conversar com ele. E agradecer-lhe muito. Os romancistas de vez em quando põem os seus personagens a dizer várias coisas e mesmo a pensar. Em seguida chamam a isso psicologia. Um romancista não deixaria de colocar o jovem Jacques, depois de receber os dinheiros do Gomide apenas com a observação do Godofredo. Entrego ou não entrego? A célebre dúvida hamlética? E entretanto Jacques tivera três meses antes talvez dúvida, quando hesitava com a Maria. Mas naquele caso era um absoluto desprendimento. O interessante adolescente pensava aos pedacinhos no caso Godofredo, um caso que lhe parecia passado. Quando resolveu agradecer ao homem de letras, estava na Rua Primeiro de Março diante de um banco. Lembrou-se que lá fora uma vez com Jorge d'Araújo depositar dinheiro. Quem diria que ele também depositaria somas? Entrou pensando apenas na fisionomia dos empregados. Os empregados não o reconheceram nem se admiraram da sua soma - evidentemente ridícula. Jacques depositou quatorze contos e guardou um conto que era bem seu. Oh! Era impossível andar com tanto dinheiro pelas ruas. Diria ao Godofredo quando o encontrasse. Desceu então a Rua do Ouvidor. Na Avenida Teotônio Filho convidou-o para uma corrida à Tijuca num automóvel novo de marca nova. Foi. Jantaram lá no White com a espanhola Concha, a frágil Liana e Arcanjo dos Santos encontrados por acaso. A noite era da portuguesa Maria. Não faltou, tanto mais quanto era uma noite excepcional. No dia seguinte foi vez de Lina Monteiro. Depois do almoço convidou Lina e a Sr.ª Monteiro para um pequeno jantar no Leuse. A velha achava pouco próprio, mas tanta era a sua vontade de ver casada a filha que consentiu.
Jacques veio à cidade, telefonou ao restaurant, estava no chá. Desejava encontrar Godofredo, e ao mesmo tempo não desejava. Isto é: cada vez desejava mais a menos. A tarde tomou um automóvel e foi buscar a pobre menina que o acreditava desde a festa de caridade. O idílio seguia. A Sra. Monteiro estava crente na seriedade do caso. Lina estava certíssima. E ele também estava certo de que tinha uma forte gratidão pela menina. Se lhe dissessem que enganava alguém, logo após a sopa, Jacques ficaria contrariado. O jantar foi pois delicioso. Até a Sra. Monteiro parecia alegre.
Apenas para o fim, entraram o banqueiro Buonavita e Godofredo de Alencar. O literato, que tinha ido cumprimentar as senhoras exclamou:
— Há dois dias que te procuro.
— Oh! Tu... Estive com o homem.
Ia dizer inteiramente a verdade. O seu olhar era leal e puro. A sua fronte lisa. Mas Godofredo fez um gesto e esse gesto quebrou a lealdade de tal forma, que com o mesmo olhar sereno e a mesma fronte - tão idênticas que o cronista psicólogo não teve sombra de suspeita! - Jacques continuou:
— Mas não imaginas o que tem custado. Quer tudo no fim. Já lhe fiz três recibos, que não serviram. É um caso. Enfim prometeu para segunda sem falta. Vamos lá juntos.
— Não, vai lá. Olha que é sério.
— Seríssimo.
E continuou a jantar com a apetecível Lina. Ora o Godofredo! A insistir em qualquer coisa que não era seu! Ele que não fizera nada! Enquanto conversava, olhava o Godofredo e via que o cronista prestava demasiada atenção a sua mesa. Desconfiaria? Deu-lhe uma grande vontade de oferecer-lhe champagne e charutos caros. Apenas Godofredo começara a jantar.. Então ergueu-se e foi pagar a conta à copa, para que não lhe vissem bilhete grande, e levou a família Monteiro ao teatro português - por exotismo. Domingo esteve no prado do Jockey Club com Jorge. Segunda veio cedo para a cidade, desejoso de fazer umas encomendas, quando em plena Avenida se sentiu preso pela mão do cronista.
— Vens de lá! - fazia Godofredo mais pálido.
— Hem! - fez Jacques apanhado de surpresa. - Ah! sim...
Era a cena que no fundo, bem no fundo do seu ser, esperava e temia e desejava ao mesmo tempo desde que vira o Gomide no escritório e o Godofredo cada vez mais secundário. Ficou pálido e frio com medo ao escândalo, ao nome nos jornais, ao ridículo do motivo. Era um esforço para não mostrar que tremia. Aquele medo não podia ser só seu: era uma espécie de medo hereditário; e com ele tremiam o pai, o avô, outros Pedreiras talvez. Mas a cena foi rápida e crispante porque Godofredo estava também, pálido, frio, e tremia.
— Não mintas, menino. Já recebeste.
— Quem to disse?
— O Gomide em pessoa.
— Pois sim, recebi.
— Então, venha a minha parte.
— Ah, sim...
— Gastaste, hein?
— Sim, isto é... aquilo era um pouco meu. Eu precisava muito; estava cheio de contas. Se precisas porém de algum - porque ainda não recebemos a outra parte...
— Preciso sim. Quanto tens?
— Espera, não te exasperes... talvez um conto...
O cronista tinha um esgar de fúria querendo sorrir com calma. Dinheiro é sangue. E batendo com a bengala no asfalto.
— Olha que enganar-me é meio difícil. Só com muito topete, ou sendo um inconsciente como tu. Sabes talvez que nome tem o que acabas de fazer? Há uma palavra exata, uma palavra bonita...
— Godofredo...
— Você fez apenas uma ladroeira, ouviu? uma ladroeira! Está aqui como podia estar na cadeia. Mas não está tudo perdido. Vou trabalhar. E cuidado porque nem sempre os prejudicados são amigos como eu!
E seguiu. Por que Jacques não esbordoou Godorredo? Porque cheio de culpa temia o escândalo. E por que Godofredo não se atirou ao gasganete de Jacques? Porque temia prejudicar o edifício da sua vida com um escândalo. Enganado, ludibriado pelo pequeno que desejara explorar, ao menor grito seria um homem por terra. A civilização e o interesse obrigava-os a recalcar o ódio. Godofredo seguiu quase fora de si. Jacques ficou furioso com um certo gozo no íntimo e continuou a andar. Só havia a ferir-lhe a mente a possibilidade de que toda gente podia saber da sua liberdade para com o Godofredo. Que fazer? Jacques não sabia mais o que fazer. Era sempre assim. Felizmente ergueu os olhos e viu Mmes. Alice dos Santos e Argemira de Melo e Sousa que de dentro de uma vitória com interesse o chamavam.
As corridas de automóveis em que Jacques andava metido, tinham impressionado aquelas damas. Alice e Mme. de Melo e Sousa desejavam uma noite sentir também a sensação de rapidez numa das grandes máquinas de Jorge d' Araújo. Jacques sorria. Argemira explicava.
— Sua mãe levou a semana inteira a falar mal de você. E tanto se referiu aos automóveis, que antes dos conselhos quero fazer a experiência. Mas todas as meninas estão loucas. Alice, vou ver, e se decidirmos é certo que levaremos Ada Pereira...
Jacques sorriu. Os acontecimentos de minutos antes desapareceram de súbito da sua pouco carregada memória. Satisfeito e alegre, não duvidava que seria chegada a vez à viuvinha. E, sem hesitar prometeu para o dia seguinte.
— Nós vamos ao Lírico.
— Dito. Com o Arcanjo?
— Não. Sós.
— Então amanhã.
— Não falte.
— Oh! Por quem me toma, D. Argemira?
Assim, no dia seguinte, lépido e gentil, logo pela manhã telefonou a Jorge de Araújo ameaçando-o com uma noite divina. A comunicação interrompeu antes de terminar. Foi a outro telefone que não ligou. Enervado, tomou um tílburi cuja lentidão quase o faz matar o cocheiro. Naquele cérebro feliz o incidente Godofredo desaparecera, deixando apenas, o interesse pelas corridas com senhoras. Que noite! Acabou por deixar o tílburi, tomando um tramway que o levou até ao escritório do jovem industrial. Não o encontrou. Deixou-lhe um bilhete delirante com três erros de ortografia. E durante o dia telefonou várias vezes, até que à tarde, Jorge apareceu com o seu nervosismo e a sua complacência.
— Sabes que é um aborrecimento enfiar a casaca para ouvir mais uma vez a Aída.
— Chegamos no terceiro ato para não chamar a atenção.
— E não há receios?
— Nenhum!
O milionário concordou. Jantaram em casa de Jorge que parecia preocupado, mordendo o bigodinho à americana, os olhos sem dizer nada, um ar de quem aspira o imprevisto. Depois, como nada tinham a se dizer, avançaram a hora da entrada e chegaram no fim do segundo ato. Era o momento dos cumprimentos. A mesma gente, inexoravelmente aquele todo Rio que já tinham visto tanta vez, lá estava. Nem um desconhecido. A história de cada um podia ser contada pelos outros, e esse cada um podia fazer um volume de histórias. Jorge, enervado com o mal do automóvel confessou-se incapaz de ficar até ao fim. Ia espairecer e depois voltaria. Mas antes era preciso fazer a comédia do convite às grandes damas. Subiram à frisa. Em torno de Mme. de Melo e Sousa a corte juvenil olhando Alice e Ada desdobrava-se. Argemira acolheu-os encantadora.
— Estamos sós, sabem? O nosso deputado doente.
— Grave?
— Oh! uma magraine...
— Quero sair antes do fim - fez Alice dos Santos.
— Ah! minha querida, com esta complicação dos carros. Sabe que viemos de carro hoje?
— Mas é simples - fez Jorge. - Dá-se ao guarda o cartão para mandar o carro embora quando ele chegar, e eu tenho a honra de levá-las em cinco minutos no nosso automóvel, se me permitem...
A encartada ficou sem resposta. Eles também ficaram. E logo que se ergueu o pano Mme. de Melo e Sousa ergueu-se; a senhora do deputado e Ada Pereira também, e saíram com solenidade os cinco.
Estava a noite deliciosa, dessas noites de inverno, sem lua, em que o veludo do céu tem um esplendor imprevisto e a brisa é leve e sensual. O automóvel esperava-as do outro lado da rua. Jacques sentou-se com as três senhoras. Jorge ficou ao lado do motorista, o mesmo de sempre, aquele rapagão lusitano que ria com tanto gosto. As senhoras tinham o ar de que iam pregar uma partida, e logo que o automóvel se moveu começaram a rir. Que pensavam elas do automobilismo de Jorge? O automóvel porém. o famoso 720-A-E já tomara a sua velocidade urbanamente inconcebível. Jorge queria mostrar e o pequeno motorista desejava também pôr em evidência a sua perícia. Na Beira-Mar, onde chegaram um minuto depois talvez, o carro voava numa nuvem de poeira. Era impossível trocar uma palavra. O ar deslocado pela máquina cortava. As mulheres riam excitadas. Jacques dava a Ada Pereira um joelho protetor, sem que Ada pedisse, e para disfarçar resolveu soltar uns gritos, pouco familiares. O chauffeur português voltava-se contentíssimo. Jorge sorria. Mme. de Melo e Sousa achava a sensação inteiramente inédita. Não era uma corrida. Era uma vertigem. Naquele estendal de luz o animal de ferro voava numa densa nuvem de poeira.
Davam assim a segunda volta à praia, quando por eles passou outro grande e poderoso maquinismo. Era Teotônio Filho com o cavalheiro Sfrapini, il re dei chauffeurs.
— O Teotônio! -. gritou Jacques.
— É sim, mas não nos ganha! - berrou o Jorge para trás.
Tornava-se uma questão de honra não ser vencido pelo Teotônio, à vista de senhoras. O automóvel acelerou ainda a marcha e assim correram uns três minutos. As damas despenteadas e com um apetitoso medo, já davam gritinhos. E todo o 720-A-E ficou de repente pasmo vendo que o automóvel de Teotônio parava de repente. Alguma trapalhada. Panne? Antônio diminuiu a marcha. Jorge parou mesmo de todo. E estavam assim, os homens de pé numa posição interrogativa, quando a máquina de Teotônio recomeçou a andar com Sfrapini no guidão.
— Buona sera!
— Que brincadeira é essa?
— Oh! Pensávamos que vocês estivessem sós... - explicou o Teotônio, que só fizera a corrida porque vira mulheres no carro do amigo. E ergueu-se, saltou, veio sondar as distintas damas.
— Demônio! - exclamava Jorge. - Estamos sim, estamos com senhoras. Foi no Lírico. Como não encontravam o carro...
— Oferecemos-lhe o automóvel - interrompeu Jacques - e como elas ouviam falar mal de nós viemos mostrar.
— Que tudo não passa de mentira, pois não é? - fez Teotônio a beijar a mão de Mme. de Melo e Sousa.
Jorge porém não largava o assunto.
— Sim, sim, és de força. Mas olha que não é sério correres com o partido do peso.
Imediatamente, em frente das damas que se interessavam, discutiram tecnicamente peso, carrosserie, carburador, cilindros, raios de rodas, motores, marcas. Apesar da calma aparente, Jorge estava exasperado, e o seu motorista ainda o excitava mais.
— Com este carro, desafio o seu, senhor Teotônio! exclamava o rapaz.
— Deixa-te de prosa, rapaz.
— È un po'difficile... - sorria Sfrapini.
— Era o que se podia ver já! - disse de repente Jorge.
— Com as senhoras aqui?
Jacques porém não tinha muita dificuldade em convencer as senhoras que deviam descer e ficar a ver a aposta alguns minutos. Alice dos Santos, excitadíssima já saltara.
— Eu que não contava com um circuito!
— Vocês são loucos! - fez Mme. de Melo e Sousa, descendo também.
Ada Pereira, muito nervosa, amparou-se a Jacques. A discussão ia acalorada entre os sportsmen. Antônio, o chauffeur de Jorge assegurava que, se o patrão quisesse, mesmo com aquela carrosserie conduziria a máquina, dando distância ao adversário.
— Aposto um conto contra quinhentos mil-réis!
— Seja! - fez branco de cera o Jorge. - Mas sou eu quem dá um conto por duzentos mil-réis.
Era a cena habitual. As senhoras que nunca as tinham visto, estavam cheias de curiosidade. Ada Pereira, Alice e D. Argemira fixaram um momento o jovem motorista de Jorge, que era de fato bonito. A corrida era em cinco voltas e já ele colocara o 720-A-E em linha, airoso e a sorrir. Estavam a dois passos de Pavilhão Mourisco e todos esquecidos dos seus deveres, só tinham nervos para a aposta, porque salvo Teotônio, todos jogavam no automóvel de Jorge e no chauffeur tão confiante e tão forte.
Quando viu os carros prontos, Jorge, com a voz mudada, deu o sinal. As máquinas partiram num súbito arranco. Aquelas seis pessoas em traje de baile perdidas no deserto iluminado da Beira-Mar acompanhavam com o coração aos trancos, febris, nervosos, os rasgões veloces dos automóveis. O mundo não existia bem para eles. Na primeira passagem, o carro de Teotônio vinha à frente. Dois minutos depois, de novo passaram os dois carros, como raios. O de Jorge ia à frente.
— Ganhamos!
— Ganho! É certo.
— É agora!
— É agora!
Ficaram assim trepidando segundos que pareciam séculos. A poeira era como uma enorme nuvem que se tornava brilhante tal a iluminação da Avenida, onde ardiam num brilho de sol todos os candelabros elétricos.
— É agora! - repetiu num grito Alice.
Tinha ao longe a última volta. Era a reta final. Era o desespero. Era só quando os automóveis podiam dar toda força. Num ímpeto colossal esses elegantes viram as duas máquinas a toda. Ao mesmo tempo, partindo do Mourisco, em sentido contrário às duas máquinas, passou um automóvel. Os corações apertaram-se. Antes que qualquer dos presentes pudesse dar uma palavra, ouviu-se um tremendo fragor, todas as lâmpadas elétricas apagaram de súbito, enquanto na semi-sombra passava como uma tromba uma só máquina.
As mulheres gritaram loucas; os homens precipitaram-se. Era a quinhentos metros a máquina de Jorge estraçalhada. Para evitar o encontro com o outro automóvel dera de encontro a um dos candelabros, derrubando-o e quebrando-se. E sob a ruína, os ferros torcidos, as madeiras estaladas, as folhas recurvas, gemendo, com as pernas esmigalhadas e o rosto em sangue, Antônio, o jovem motorista, parecia morto.