A Profissão de Jacques Pedreira/XII
Desastre chama desastre, diz a sabedoria popular; como todas as outras coisas populares, foi a sua origem um austero filósofo, uma individualidade superior. Quando pela primeira vez essa individualidade emitiu a frase lapidar, os que o cercavam deviam ter ficado pasmos com a revelação. Depois repetiram, e repetiram tanto através das épocas que verdade tão poderosa chega a parecer mentira, e que a própria natureza faz o possível para contradizê-la. Assim no tempo da tragédia grega os desastres sucediam-se aos desastres. Era preciso que as famílias fossem até muito infelizes para dar tantos desastres aos poetas. Já no tempo do romantismo, o desastre é o desastre sem conseqüências, e finalmente o desastre, nos últimos tempos literários acabou tendo um epilogo, tendo a obrigação quase de um epílogo alegre. É que não há mais como no passado, grandes desgraçados. Ninguém mais acredita senão na felicidade e a felicidade é pelo menos um pouco de quem nela acredita.
Jacques era fatalista. Toda gente é fatalista à falta de ser outra coisa. O desastre do automóvel pareceu-lhe uma continuação do desastre moral com Godofredo, e uma espécie de aviso da Providência.
— Pára! Vê por onde vais! A morte espera-te de emboscada no prazer desenfreado! - dizia com fatos a Providência traduzindo a linguagem simples de D. Malvina Pedreira, digna progenitora de Jacques.
E o jovem acordara cedo, depois de ter dormido poucas horas, num estado de excessiva excitação nervosa. Quantas sensações e quantos horrores na noite anterior! O corpo de Antônio, o sangue, o trabalho para evitar que a policia tomasse o nome das senhoras, o ataque de nervos de Ada Pereira, a recondução das senhoras de carro, porque não queriam mais automóveis - tudo era como o pesadelo hórrido a lhe dizer: previne-te! Como alguns meses antes, deitado naquela mesma cama, após uma recepção de D. Malvina, Jacques sentia o caminho andado. Caminhara, alheara-se de todo da família, largara as amarras, e por pouco que pensasse, via quanto ocultamente, como a maioria dos mortais, apenas para os seus botões, se enxovalhara. Que diriam os jornais? Pela primeira vez. sentiu a necessidade de opinião da imprensa. Pediu ao criado os jornais. A opinião era péssima. Os reporters, os jornalistas, os trabalhadores anônimos daquelas folhas, obrigados indiretamente a servir a casta, a que ele pertencia e que os desprezava, vingavam-se quando havia ocasião, sempre. Jacques engoliu notícias melodramáticas cheias de perversidades, de ódios, de insinuações, de insolências. Eles eram os "indolentes", "aqueles que acreditam a vida dos outros nada", uns pândegos sem alma", "refinados ignorantes do grand-ton", "criminosos vulgares que graças a uma situação ocasional abusavam". Todos os diários começavam por um verdadeiro artigo sobre a continuidade dos desastres e era nesse assunto geral, um apelo à policia, que se incrustavam tão agradáveis epítetos. A narrativa do desastre cada gazeta contava-a de modo inteiramente diverso, mas em todos era de fazer chorar, porque os jornais vinham transbordantes de uma piedade imensa pelo motorista, o humilde, o do povo, sacrificado. Jacques leu que Antônio seguira em estado desesperador para a Santa Casa, e que lá, ao recobrar os sentidos segundos antes de morrer, só tivera para Jorge de Araújo que o acompanhava esta frase extraordinária:
— Perdão, patrão...
O próprio Jacques ficou comovido. E ficaria mais se não constatasse que todos os diários davam os nomes dele e dos seus amigos por extenso, só errando decerto propositalmente, no de Sfrapini que passava a Stradini. Mas, se eles apareciam, as senhoras salvavam-se. E os jornais asseguravam-nas três cocottes das mais estadas nesse mundo de vício e perdição...
— Safa! - exclamou o jovem pondo-se de pé.
Deixou os jornais, foi tomar um banho frio, voltou ao quarto resolvido a sair sem ver os progenitores. Se ficasse era fatal uma grande cena, e depois da cena as visitas que viriam ver os efeitos dos jornais. Vestia-se nervoso quando o criado lhe trouxe duas cartas: uma do deputado vegetarista felicitando-o por ter escapado, outra de Alice. Esta era louca. A encantadora senhora culpava-se de ser a causa de tudo, tinha expressões tais de dor que um momento Jacques teve a ilusão de que também estava ferido, e terminava exigindo que ele fosse vê-la só, só, pelo menos um instante, no ninho na casa do barão. Estaria às duas horas. Queria vê-lo. Fizesse a vontade.
Jacques precisava desabafar e não queria ouvir o pai ou a mãe ao almoço. Acabou de vestir-se com o mesmo cuidado de sempre e saiu pela porta dos fundos, diante dos criados que sabedores do desastre, sorriam com simpatia e cumplicidade. Já não era cedo. Passava muito de uma hora. Perdera tempo com os gazeteiros. À porta teve tempo de receber da Malperle um cartão: "Que horror e que prazer sabê-lo salvo!". Então despachou o chacareiro com um agradecimento e outro bilhete para Lina Monteiro e seguiu.
Entretanto Maria, a pequena corista portuguesa, que entrava para o ensaio no seu teatro ouviu o comentário feito ao desastre. Os jornais tinham-lhe dado tais proporções que até no teatro o caso se lera. Entre algumas prendas de que não fazia uso Maria colocava a leitura. Como ouvisse o nome de Jacques ficou perturbada.
— Jacques? Estava no desastre?
— Sim! É o amigo do Sr. Jorge.
— Ferido?
— Não se sabe!
Ela perdeu inteiramente a cabeça. Era preciso saber. Correu ao ensaiador, pediu que lhe desse uma licença e sem esperar resposta, saiu, meteu-se num trem de praça, mandou tocar para casa de Jacques. Não sabia o que havia de fazer. Apenas sentia uma grande aflição, um grande desejo de ver são, sem ferimentos, o seu homenzinho. E se estivesse ferido iria ao quarto, seria enfermeira, a mãe de Jacques perdoaria... Depois de tamanho desastre só em casa é que poderia estar o rapaz... E no carro, ao trote dos magros cavalos, Maria chorava. Quando o cocheiro parou, não se moveu. Chegando à porta, vinha-lhe o medo de bater na casa honrada, de pôr o seu desejo ao lado do amor de mãe.
— Como deve estar aflita a senhora mãe dele...
E ficou dentro da carruagem ansiada, à espreita, de ver sair alguém, para pedir informações. Que fazer, Senhor dos Passos? Viu que chegavam de instante a instante criados, que chegavam mesmo senhoras e cavalheiros. A sua aflição aumentou. Afinal descobriu o jardineiro, que também entrava.
— O homem, é daí?
— Sim, menina.
— Como está o Sr. Jacques?
— Ele vai bem; saiu há de haver quase uma hora.
— Saiu?
— Palavrinha. Por esta luz...
Maria ficou meio aliviada. Onde estaria o rapaz no dia seguinte a um desastre? Fez o carro voltar. E não tinha nada! Ah! Pequeno de sorte! Como antes chorara, ela agora ria só dentro do carro, e o carro descia a Beira-Mar precisamente no ponto em que outrora chamavam o Flamengo. Maria viu a garçonnière. E de repente veio-lhe um desejo. Quem sabe? Fez parar o cocheiro, saltou, bateu. A princípio devagar. Depois com força. A vizinhança, que tinha em péssima conta o prédio, começou a aparecer vagamente, por trás das janelas, aqui e ali. Um rapaz no segundo andar de certo prédio que parecia destinado a jovens estudantes, sorria, com o pijama por cima da pele. Maria, a pobre mulherzinha, achou que devia continuar a bater. Noutra ocasião ela bateria o dia inteiro em vão. Naquela, porém, infelizmente, as duas almas que lá estavam, estavam muito sobressaltadas para não responder. Jacques não podia ver de cima, estando as janelas hermeticamente fechadas. Desceu à porta, receando qualquer coisa de horrível. Já não tinha segurança, e contava com tudo como se assistisse a seu drama de Shakespeare. Ia espiar pela fresta, enquanto Alice no alto da escada já imagina Arcanjo, a polícia, o fim; quando Maria, agindo apenas para se dar ares, sem certeza alguma, disse de fora:
— Abre, sou eu!
E só quando falou-se é que distintamente ouviu haver alguém por trás da porta. Disse então mais alto:
— Abre!
Jacques temia o escândalo. Voltou ao alto da escada, branco, a ver se encontrava um meio de salvação. Alice, à voz da mulher, compreendera tudo. Veio-lhe, com a certeza, de que não era Arcanjo, uma grande calma. E ao mesmo tempo um desprezo subitâneo por Jacques.
— Até aqui! Não respeitaste nem este lugar!
Jacques estava irritadíssimo - principalmente porque vindo-lhe a extensão da responsabilidade não sabia como resolver os casos melindrosos. Assim, rouquejou:
— Alice, deixa-te de cenas! É uma criatura que me persegue. Há muito tempo.
— E sabe a nossa casa!
— Depois conto, depois explico. Por enquanto, é preciso escapar.
— Não lhe abras a porta, então.
— Ela grita; é ordinária.
— Oh! Jacques. Jacques! Tu...
Olharam-se, ambos sentindo-se culpados, arrependendo-se de várias e muitas coisas que não deviam ter feito, com que já agora era impossível modificar. A voz de Alice tinha uma tal dose de horror que no seu estado de superexcitação, ele, pela primeira vez julgou que devia defender alguém. E com exagero. Seria como se fosse ele próprio.
— Não, Alice. Não há perigo. Estou com o azar mas por mim não sofres nada... Esconde-te. É preciso. Esconde-te. Quando ela subir, sais...
— Que vergonha!
— Ninguém sabe...
— E a vizinhança?
— Não! Não...
À porta, Maria começava a bater freneticamente. Jacques fez um gesto decidido a tomar uma desforra, desceu, descerrou a porta. Maria, que esquecera completamente a causa primeira da sua intempestiva visita, entrou pela abertura exígua como um foguete de bomba.
— Tens cá uma mulher, cão!
Não teve tempo de continuar. Ele lançava-lhe um murro aos queixos. Era para lhe cortar a palavra e para irritá-la. Trepou pois os degraus berrando:
— Covarde! Rufião! Tens sim! Essa desavergonhada vai ver o que é bom.
Jacques, louco de raiva, seguiu-a agarrando-lhe as saias, largando estas para procurar-lhe os pulsos. Ambos subiam aos trancos, erguendo-se, escorregando, loucos de raiva. Como uma ventania, vieram ao salão.
— Quem te autorizou a vir aqui, animal?
— Fomente-se! Vim porque quis. Onde está a perdida?...
— Mulher, não há ninguém! Não me desesperes...
— Veremos.
Ela debatia-se, ele não a podia conter. Continuavam aos safanões, de roldão, ela à frente, ele no seu rastro. No quarto de dormir, onde o barão fizera uma orgia de bons amores cépticos, quase rolaram. Ele puxava-a. Ela desvencilhava-se. Foram de tal forma até ao quarto de banho. Então Jacques que julgava Alice aí escondida e presa do imenso receio de uma catástrofe, agarrou-a pelo braço. Ela ferrou-lhe uma enorme dentada na mão. Deu-lhe com o braço livre. Ela tombou.
— Parto-lhe a cara à fúfia! - berrou.
E como movida por uma mola pôs-se de pé. Então ele atirou-se, e enquanto a mantinha apertando-lhe o pescoço, com a outra mão livre começou a esmurrá-la. Era uma fúria de extraconsciência. Esmurrava escolhendo os lugares onde não se vissem sinais, esmurrava a cabeça e esmurrando a pequena amorosa que soltava uns surdos gritos estrangulados esmurrava Godofredo e os seus insultos, esmurrava a má vontade do pai, esmurrava os deuses culpados do desastre do automóvel, esmurrava a fatalidade menos boa. Via roxo, via tudo lívido, e dava, e continuava a bater a pobre mulherzinha amorosa, como um desafogo.
Mas de repente parou, distendeu os dedos, e o corpo de Maria caiu no soalho, onde as cadeiras haviam rolado. Diante dele, Alice dos Santos, lívida, com um olhar de pavor sem limite, assistia a cena que jamais poderia imaginar, assistia como uma lição. Quando viu o corpo da pobre rapariga por terra, pendeu para ela com infinita piedade.
— Quase a matas! Pobre! É preciso chamar o médico. Que vergonha, Jacques! Bater uma mulher...
— Foi por tua causa...
— Toma o vidro de sais. Dá-lhe a cheirar. Oh! Jacques! Jacques! Nunca pensei...
Depois envolveu-se no espesso véu e desceu. Estava séria. Tremia. Esquecera despedir-se do jovem amante. Os seus dois grandes olhos pareciam ansiosos por ver para além do quadro horrível. Entreabriu a porta. Estava lá à espera o carro de Maria. Meteu-se nele rápida, e antes de chegar a casa, tão perto, pagou ao cocheiro todas as horas em que a outra lá estivera sofrendo por Jacques. Um pouco revoltada contra o destino, a linda Alice via um reverso da vida inteiramente desagradável, e sentia, o mal de ter ido ao lugar d'amor com tal ânsia que recebeu o bom marido com um abraço e chorando...
Jacques, entretanto, mais apalermado, ficara a fazer cheirar o vidro de sais a pequena corista. Ao cabo de certo tempo viu que era preciso alargar os vestidos da pobre rapariga. Então levou-a para a cama, desapertou-lhe a saia, o corpete, soprou-lhe um bochecho d'água no rosto. Depois, como visse, que ela respirava, ajoelhou-se à borda da cama, animou-a. Ela abria os olhos.
— Desculpa, foi sem querer... Estou meio louco. Desde ontem! Muito assustado, muito... Deu-me uma raiva de repente... Não havia ninguém... Hoje, nem vi a mamã... Foi de nervos que aqui entrei...
A rapariga soluçava baixo ao som da voz querida. Jacques tinha uma larga voz de barítono um pouco velada, e que lhe dava qualquer coisa acariciador.
— Que dores na cabeça meu filho! que dores... Olha que foi só por ti, só para te ver que vim... Meu Senhor dos Passos como vai ser agora!
E a custo, malaxada, contundida, mas desgraçadamente feliz, Maria segurava aquela larga mão que a batera e beijava-a devagar, chorando. Jacques para desculpar-se, beijou-a na boca, e como das outras vezes, mais que nas outras vezes, como nunca, eles caíram em pleno gozo, gozando profundamente...
A Jacques, porém, aquela conclusão das pancadas - tal era o estado seu de nervos - não conseguiu acalmar. Ficou tendido como um arco, e largando a pequena mulher falou-lhe com intimidade, pedindo conselho:
— Que achas, Maria? Devo continuar? Devo voltar a casa? Tu sabes toda minha vida. Acabaste sabendo...
Ela era bem portuguesa. Respeitava os pais. Tinha o sagrado respeito da família. Disse que era muito feio não ouvir os pais. E que ele deveria ir logo beijar a mão à mãe, por ter escapado do desastre. Fosse logo. Ela ficaria ainda um pouco deitada. E quando fosse noite, iria só, batendo a porta... Dizia essas coisas rindo tão docemente que no riso se via a lágrima. Era como um fim, uma despedida. Eles sentiam que estava acabado, e ela ia satisfeita, tendo levado a parte do sacrifício, mulher, mulher como Jacques não tivera outra.
O mancebo concertou o desalinho. Estava ainda mais triste. A excitação de dois dias afrouxava num imenso e vago pavor de tudo, da vida, da alegria, do amor. Disse-lhe beijando-a:
— Até logo.
Ela olhou-o longamente.
— Adeus.
E ficou só, chorando. Ele saiu devagar, tomou uma das ruas transversais que vão dar ao Largo do Machado. A tarde morria meio escura. Quando chegou à esquina, viu que o trânsito era interrompido por um grande enterro. Já ia um pouco longe o coche carregado de grinaldas e mais três carros cheios de flores. Mas o acompanhamento era enorme - um acompanhamento interminável, de automóveis com as capotas arriadas, as lanternas acesas e os motoristas de cabeça descoberta. Poucos automóveis deviam ter ficado na praça. Era - Jacques não teve um instante de dúvida - o enterro do Antônio. O rapaz era querido, os jornais haviam exagerado de tal modo o lado sentimental que aquela sociedade fazia a sua apoteose na apoteose do morto humilde. Jacques nervosíssimo parecia ver o motorista com os seus vinte anos, o seu riso, o corpo forte na farda cor de lontra. Ficou à espera que o cortejo passasse. Quase no fim viu num carro, vestido de preto Jorge de Araújo, e a seu lado, também de preto o grande cronista Godofredo de Alencar. Como o carro parasse um instante, Jacques foi até lá, irresistivelmente.
— O pobre Antônio! Que desgraça!
— É - fez Jorge. - Morreu duas horas depois. O Godofredo arranjou para que se não fizesse a autópsia. Era melhor acabar logo. Depois para que deformar mais o pobre rapaz?
E de repente, esse homem frio, esse homem de aço, enquanto Godofredo olhava para outro lado fingindo não ver Jacques, esse homem acostou-se soluçando.
O carro pusera-se em marcha. O mancebo, humilhado e crispado de desagrados ficou até o fim. Aquilo era tão solene que parecia culpá-lo Sentia sobre si uma imensa e vaga culpa, a que sentem quantos não expiam pequenas faltas talvez. Quando não havia mais um só carro e os tramways retomavam o trânsito meteu-se num, recolheu a casa, e como, ao entrar na casa de jantar, na semi-escuridão da tarde a morrer, visse D. Malvina só, teve um arranco. Caiu-lhe nos braços, sujo de uma porção de misérias, soluçando.
— Mamã! Mamã!
A anafada senhora esperara-o o dia inteiro para dizer ao menino coisas tremendas. Mas ao seu soluçante, abraço logo começou de chorar procurando beijá-lo como se ele fosse um petiz. Porque dá-se o caso que as mulheres também são mães.