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A Profissão de Jacques Pedreira/XIII

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— Não! Já disse. Não saio! Não estou em casa!

O desastre do automóvel com a repercussão que no primeiro momento lhe haviam dado os jornais, fizera a partida quase imediata de Jorge de Araújo e de Teotônio Filho para a Europa. Jacques, que ficara em casa como um convalescente recebera de Jorge um curto bilhete de despedida e nem fora ao embarque. Soube que no mesmo vapor seguia a Liana, a quem Arcanjo presenteara como um deputado vegetariano e rico pode presentear quando está farto de uma dama. Não respondeu a um só bilhete de Liana. Passava os dias a dormir, aborrecido, com medo de sair e chegara ao extremo de conversar longamente com D. Argemira.

Aquele desagradável acidente chocara-o muito. Para temperamentos como o seu, fetiches, de uma incultura completa e universal, o desastre primeiro de catástrofes é que assombra. Todo homem amado pelas mulheres tem um pouco de mulher na alma. Jacques sofrera mais com aquela desorganização da sua vida do que sofreria talvez com a morte de uma pessoa da família. É que de fato ela saltara a grande vala, no sport, no negócio, no amor. Recomeçar a mesma existência seria perigosíssimo e para tal faltava-lhe a coragem. Enquanto as coisas corriam bem era capaz de todas as audácias e conseqüentemente de todas as inconveniências. Desde que os horizontes se fechavam, voltava a criança, precisava de proteção, tinha um medo vago.

Precisamente dez dias depois da catástrofe é que no seu quarto, de pijama, Jacques dava aquela resposta ao criado que trouxera um bilhete de Lina Monteiro. Oh! Era preciso acabar todas as antigas. Essa rapariga era mesmo a caipora. Depois de a ela mostrar afeto é que seu pai brigara, que fizera aquilo com o dinheiro, que tivera o desastre... No fundo via que só reaveria a boa vontade do Gomes Pedreira se largasse de todo Lina. E começava por julgá-la o azar. De resto não mantinha com as outras senão a mesma recusa insolente. Deixava de responder. Talvez porque não se sentisse bem com a pena na mão. Mas as outras criaturas que lhe tinham prestado atenção vinham a sua casa; e só Lina não vinha...

Quinze dias depois dos acontecimentos, saiu à noite. Vira nos jornais que a companhia portuguesa despedia-se. Maria deixara a garçonnière em ordem e nunca mais dera sinal de vida. Foi por isso vê-la, foi mesmo à caixa. Era um espetáculo entre palmas. Ninguém o conhecia. Como a peça era revista, as coristas mudavam a cada passo de fato. Entretanto a Maria logo que o avistou veio a ele, puxou-o, deu-lhe um longo beijo.

— Foi por mim que vieste?

— Foi.

— Meu bom... Partimos amanhã cedo. Hoje dorme na pensão o velho. Sabes que ainda me dói a cabeça. Mau...

— Então... - fez ele humilhado porque nunca pedira.

— Chegaste tarde. Quando voltar...

Tristemente Jacques voltou a casa. No dia seguinte não saiu. Como não tinha o que fazer pegou num volume de literatura que rolava na copa. Era a história das aventuras de um polícia chamado Nick Carter. O estilo e a imaginação do autor encantaram o cérebro difícil do jovem elegante. Conseguiu com o copeiro os outros inumeráveis volumes. E então regalou-se. Como contasse a Arcanjo amigo da casa as suas impressões, Arcanjo prometeu-lhe outros agentes e ladrões célebres cujas falcatruas também a ele divertiam. Trouxe. D. Malvina estava assombrada. Via seu filho ler e disso "deu parte a Justino, esposo e pai".

De resto, ao passo que com a leitura policial Jacques começava a ficar inquieto com as prováveis conseqüências do seu recibo ao Gomide, era evidente que D. Malvina recorrera a Mme. de Melo e Sousa e a Alice e que as três, mãe, amiga e já não amante conspiravam a seu favor.

Como? Que arranjariam essas três senhoras? Nunca o papel com o qual o Gomide podia na melhor ocasião desfazer todas as suas esperanças. Desde que cometera uma incorreção temia e respeitava a opinião pública. Assim, uma noite na sua casa, chamou Arcanjo.

— Então, depois de Liana, nenhuma outra? - indagou baixo do parlamentar.

— Não. Nem sei como foi aquilo. Ela não era tão boa.

— Oh! Arcanjo.

— Também não quero dizer que me arrependa. Afinal sempre tive um lucro.

— Qual?

— Verificar que a carne e o champagne não me fazem mal. De resto o Godofredo diz que tive outro: saber que o esperanto já era falado na casa de Fanga.

E ria. Jacques não se conteve.

— E o Godofredo, como vai?

— Parece que maravilhosamente. O ministro da Agricultura presenteou-o com uma pérola rosa que pertenceu ao Grão-Duque Miguel, no dia do seu aniversário. E comprou uma casa, ao que consta, nas Laranjeiras. Você também não sai? Que história é essa? Creio que não vai passar a vida inteira em casa.

— Não. Espero as fibras...

— Que fibras? Ah! sim... Ainda não resolveste isso? Sempre me parecia.

— É com o presidente agora...

— Então tens que esperar...

Ele ficou frio. O presidente frio não assinaria. E o recibo do Gomide? Na mesma noite, D. Malvina disse-lhe:

— Sabes que esteve cá a Argemira? Falamos de ti. Precisas ir amanhã almoçar com ela.

Jacques sorriu e foi dormir. Estava mais gordo. Dormia muito.

Com efeito Jacques ao acordar recebeu de Argemira um daqueles irresistíveis bilhetes, que para esse adolescente guloso da vida e de fraco refletir produziam sempre efeito decisivo. Jacques que acabava da ducha e de se fazer friccionar pelo copeiro, para fazer a reação da noite espessa, sentiu-se logo desejado ao receber o bilhete, em papel malva, caracteres finos e sutis. Decerto, a sua Egéria, a sua querida Egéria ia aconselhar-lhe um novo bem. Vestiu-se com apuro. Perfumou-se. Um instante hesitou: devia levar a gravata da cor da camisa ou em destaque como alguns dandies? Essas preocupações assaltavam-lhe a mente, sempre que ia ver a deliciosa Argemira, curiosa como, segundo o barão, uma pequena marquesa do século XVIII. Atribuiu o caso apenas à possibilidade de lá encontrar corações apaixonados. Mas, com o tempo via que aquela senhora, mãe de um rapaz mais velho do que ele, positivamente não lhe desagradava. Era como uma tapeçaria antiga que atrai. Era como não podia dizer- qualquer coisa de instintivo, que a travessura da sua luxúria criança desejava experimentar, sem conseqüências. Por que não? Jacques contava com a visita, imaginando a surpresa. Partiu sem um fim seguro. Partia sempre assim. A premeditação nunca seria uma causa a mais para a condenação dos seus crimes. Mas verificou que conservava aquela boca de morango úmido no lábio glabro, o peito forte, o cabelo repartido em risca, um perfume de água-da-colônia e de sabonete d'alface, à inglesa.

Mme. de Melo e Sousa estava no seu pequeno salão de atmosfera leitosa, vestida de branco, ensaiando a meia voz uma romanza inglesa, gosto que trouxera de Londres - versos ocos e música de Tosti.

— Oh! o desaparecido!

Estendeu-lhe as duas mãos com as suas duas pérolas uma cor de oiro, outra cor-de-rosa, e ficou assim, um tempo sentada, tendo-o de pé.

— Então agora é preciso um bilhete? Não há meio de o ver. Sabe que recebi carta de Gladys. Manda-lhe da Suíça uma edelweiss.

Jacques teve vontade de perguntar o que vinha a ser uma edelweiss, mas conteve a pergunta noutra pergunta:

— E a senhora?

— Eu, meu filho, por aqui...

As mãos despegaram-se, ficaram a olhar-se. Nos olhos de Argemira havia aquele favilar d'oiro dos momentos em que a sua malícia surgia.

— Que belo rapaz, hem? Forte, belo! E sedutor.

— Por quem é, minha conselheira...

— Não diga isso alto. Não diga nada alto.

— Por quê?

— Porque só as mentiras se dizem alto.

E imediatamente começou a falar alto do automobilismo de Jorge que acabara mal, do Arcanjo, que já não era vegetarista - por quê? - dos rapazes da roda que enveredavam no sport.

— O Suzel tem uma amante bonita.

— E insuportável. Está apaixonada por ele.

— E Bruno Sá?

— Outra também insuportável pelo mesmo motivo.

— É então do exercício? Só você...

— Eu agora ninguém...

— Sério?

— Sem a senhora não me atiro a essas coisas.

Evidentemente era um bom rapaz. Com os seus cinqüenta anos em flor, conservados em perfumes, aquela mulher de espírito, sentia uma complacência agradável em estar ali com ele, em satisfazê-lo, bem desejo vago de dar-lhe biscoutos e dar-lhe com beijo a deixar-se beijar e ralhar depois. Que garoto e que querubim!

— Criança!

— A senhora nem sabe como manda em mim. É mais forte do que eu.

— E se eu pedisse que você subisse para Petrópolis?

— Já?

— Parto amanhã. Tenho uma coisa muito agradável.

— Quem é?

— Não digo senão lá.

— É a... Ada Pereira.

— Ora a Ada.

— Diga quem é.

— O menino sabe que tem vinte e três anos, que precisa ser homem, perder essas curiosidades malsãs.

— É discurso?

Ela riu.

— Vai?

— Pois vou. Há muito tempo que não me aborreço.

— Obrigada...

— Não, não é pela senhora, a senhora, D. Argemira, tão boa, tão agradável...

Tomou-lhe a mão, beijou-lhe a pele fina. A mão conservou-se no seu lábio quase apagado a roçar, o que o fez molhar os lábios, ao apertá-los naquele beijo sentiu, sem querer aspirar o perfume, estender o braço, envolver uma cintura. Mas, a ilustre dama que um momento, pendera, recusou, sempre a sorrir, sem demonstrar perceber até onde tinham ido as cousas. Só o seu semblante resplandecia como se tivesse cheirado uma essência de vida. Jacques pôs-se de pé.

— Então o que é?

— É a sua carreira.

— A minha?...

— Sim, meu querido. Arranjamos as coisas. A Alice trabalhou muito junto ao general, o presidente prometeu a seu pai, e fez o possível junto do meu velho amigo o chanceler.

— Então é?

— A diplomacia - fez a ilustre dama erguendo-se. - Preciso ir ver a minha casa lá de cima. Estarei pois em Petrópolis. Tudo depende de tino, da maneira por que te hás de apresentar ao grande ministro. Ele é muito pela mocidade - hélas! - no que eu acho que faz bem. Mas é também muito das primeiras impressões. Tens uma bela figura e sabes ser amável.

— Oh! D. Argemira.

— Com oito dias de trabalho estás nomeado.

Depois, séria:

— Precisas sair daqui, por várias razões e principalmente porque a boa educação não se pode completar num meio tão estreito. Depois que profissão melhor para um rapaz fino, não achas?

— Nunca pensara.

— O que quero, é que venhas a dar um grande diplomata.

Almoçaram finamente, como só na casa de D. Argemira era possível almoçar. Jacques beijou-lhe a mão agradecidíssimo, e de lá saiu depois das duas horas.

Ainda na dúvida, porém, viu que precisava consultar alguém, além das mulheres. Godofredo era um inimigo ainda. Jorge estava fora. Só o barão, aquele curioso tipo que assistia a vida e que decerto devia ter sofrido muito para estar assim sempre só. Jacques consultou o relógio e tomou um automóvel. O barão devia estar na sua partida no CIub da Avenida. Foi lá buscá-lo. E, o encontrou à porta na ocasião em que entrava. O barão teve uma larga exclamação e fê-lo subir.

— Então, que há?

— Venho pedir-lhe um conselho.

— Coisa terrível. Os conselhos servem apenas para não serem seguidos.

— Trata-se da minha carreira.

O barão deixou a sala de jogo e levou-o para uma outra sala escura em que ao fundo se via um bilhar deserto. Era nesse apropriadíssimo local que o club fazia as suas anuais exposições, de pintura. Os raros visitantes que se atrevessem poderiam levar uma opinião preconcebida. Era possível ver o bilhar e talvez algumas poltronas. Quadros é que não. Precisamente havia uma exposição. Os dois homens em atmosfera tão superior, não se aperceberam disso. O barão sentou-se.

— Então? Reaparece...

— Ao contrário.

— É paixão então.

— É enfado, barão, estou farto de mulheres...

O barão estirou as pernas, sorriu com melancolia.

— Não digas mais tais coisas, meu pequeno Jacques. As mulheres são ainda o que conservamos de melhor. Já viste alguém que não fosse feito por uma mulher? Já não digo fisicamente. Falo da formação moral, social. Já viste um homem que não devesse o que é a uma ou a várias mulheres?... Ingênua criança! Mas também todos esses enfados vão-te bem. És belo e és jovem. As que primeiro te perderão serão as próprias mulheres. E assim tal qual és, feito para o amor das mulheres, quando tiveres a minha idade e estas barbas brancas, serás tão feito de amor das mulheres, de tantas lágrimas, de tantos desgostos, de tantos enganos que serás um aborto de felicidade.

— Mas barão...

— Exagero? É para que não tenhas dúvidas.

— E eu tenho, barão. A mãe e D. Argemira parece que me fazem diplomata.

— Só?

— Como só?

— É que podiam fazer-te logo embaixador.

— Então devo aceitar?

— Mas claro. A apostar que não são apenas as duas a interessarem-se? Parte quanto antes. É uma profissão, é a única profissão que te serve. Teu pai começava a estar seriamente incomodado. Depois um homem não é homem senão depois de conhecer a civilização.

Jacques ficou contentíssimo quando via um empenho unânime pela sua felicidade. Deixou o caro barão só à tarde, e ao chegar a casa comunicou a D. Malvina, com alvoroço.

— Sigo para Petrópolis, amanhã, de manhã.

— Então aceitas?

— Era o que eu queria, mãezinha.

Como a partida era no dia seguinte pela manhã, D. Malvina deixou de ir à recepção da Muripinim, encardida relíquia da monarquia, para presidir a arrumação das malas. No outro dia cedo levou-o até a Estação da Gamboa. Jacques subia para Petrópolis como se nunca lá tivesse estado. D. Malvina abraçou-o.

— Pedi por ti, a Nossa Senhora.

E agitou o lenço quando o comboio partiu. Jacques estava comovido. No wagon, apenas ia o viajado marido de Luísa Frias, que tinha casa no alto da Serra. O homem cumprimentara Mme. Gomes Pedreira com respeito. Teve a delicadeza de não perguntar por que Jacques subia ainda no inverno. Era uma conversa fascinadora. Palrava de viagem, de sport, contava anedotas.

Quantas vezes tinha estado em Paris? Viajara toda a Europa, estivera em Carlsbad com Eduardo VII, viajara com algumas senhoras do tom, falara com a Princesa Clementina da Bélgica, conhecia os vícios das duquesas, fora a uma reunião literária da Princesa de Rohan, apertara a mão de Orville Wright, freqüentara o appartment de Santos Dumont, esbanjara dinheiro nas estações da Riviera onde, as paisagens são quase tão bonitas como os cromos que as reproduzem; Lord Asquith interrogara-o em pessoa sobre o país do café, e a Cleo de Merode conversara com ele sobre as pérolas da falecida Wanda de Boneza. Era um homem internacional.

— Linda paisagem!

— A Suíça, já viajou à Suíça?

— Não.

— E nunca atravessou os países balcânicos?

— Francamente...

— Pois tem perdido.

Apesar dessa superioridade de viajante, a sua conversa encantava. Oh! as anedotas sobre a Réjane, o Anatole e de Max, os vícios do de Max.

— Cousas! Cousas civilizadas!...

— E quando volta?

— Pois não sabe? Tenho uma comissão, devo ir, estou até de passagem comprada.

— E por que não parte?

— Ora por quê! A senhora minha mãe que adoeceu gravemente.

— Ah! sim... meus sentimentos.

— Está desenganada.

— Oh!

— Não há mesmo esperança alguma, de salvá-la. Na derradeira conferência, tive que à última hora pedir à companhia o favor de me adiar a passagem. Eu ia no Araguaia...

Deu um profundo suspiro entre raivoso e triste. Depois, desabafando:

— Está para morrer. Morre mesmo. Mas a agonia não acaba, e eu afinal perco, não acha? Porque é impossível embarcar com uma pessoa da família assim. Que diria a boca do mundo?

Jacques sorria admirado desse homem. E saltou em Petrópolis com uma infinita vontade de partir, de também seguir para a Europa.