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A Pulseira de Ferro/I

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A verídica história que ides ler (lê-a-eis?) poderia resumir-se em cinco paginas, ou ainda menos. Acredito, porém, que a todas as histórias, sucedidas ou inventadas, o mesmo acontece. Acresce que, se uns as preferem breves, outros as preferem longas, bem longa.... É que uns amam nas histórias as próprias histórias, e não querem delas senão o que pedem à música um pouco de esquecimento e de embriaguez.

De seu lado, o oleiro nem sempre pode ter mão à roda (como lá diz padre Lucena) para que o vaso não saia maior de seu direito. E que importa, afinal, que a bilha seja grande ou pequena, se, de qualquer modo, é sempre enorme quando não se precisa dela, e sempre minúscula para matar mais que a sede de um dia?

Os casos narrados passam-se numa localidade da roça, e por isso a narrativa leva uns espórulos e uns espinhos nos vestidos e um pouco de barro nos sapatos. Não houve, entretanto, intenção regionalista. Nem houve outra qualquer intenção, a não ser a que move todos os contadores desinteressados de histórias, desde as boas negras velhas, que as contam à beira dos berços, até aqueles que piedosamente as contam à beira dos leitos mortuários.

Sobre o vocabulário e conexas particularidades de técnica, convém observar que, em geral, se empregam aqui os termos na sua corrente acepção brasileira, ou antes, paulista, assim como se arranjam e dispõem segundo a consonância e uso da terra onde o autor conheceu a língua e a vida.

Agora, adiante.



... Era uma vez um vigário da vila de Candeias, chamado Guilherme de Meneses, - boa pessoa, coitado! mas pouco esperto e bastante sentimental..

Padre Guilherme estava, num dia de 1880, ou 1875, almoçando, sossegadamente, diante da janela que dava para o quintal, toda enramada de madressilvas, na sua varanda caiada e casta, quando o vieram chamar para um batizado.

- Já vou, respondeu, sem levantar a cabeça ao sacristão que o aguardava à porta da sala com o seu ar de velho animal de sela.

- "Seu" vigário, eles "tenham" muita pressa, porque a criança está passando mal.

Padre Guilherme ergueu a cabeça, a olhar por cima dos óculos de aro de prata; e com a sua voz cantada, meio fanhosa:

- Mal? Doentinha, não é?...

- Diz que.

O vigário vinha cortando ao meio um oloroso assado, que a Rosa, momentos antes, pusera sobre a mesa na própria caçarola, ainda a chiar e a borbulhar. Largou, com resignação tranqüila, a faca e o garfo em cima da carne, foi à "estaqueira" cravada na parede entre o guarda-louças e o relógio de armário, tirou de lá o chapéu e o guarda-sol, e seguiu o chouto encolhido e bamboleante do sacristão.

Descendo a escada para a rua, dizia o vigário, com um sorriso meio jovial, meio triste, para o sacrista que ia na frente:

- E a coitada da Rosa, que entendeu de festejar a sua volta à minha casa depois da doença e estava preparando, com tanto gosto, para o meu almoço, umas coisinhas diferentes... Esta coincidência!

A cabeça grossa do Chicão, meio sumida nos ombros, sob a tampa do chapéu de abas largas, fez uma ameaça de rotação para o padre, enquanto o homem rosnava, numa risada mole:

- Não faz mal, seu vigário. Aminhá ela arrepete os guizados.

- Julga você então (tornou o padre com uma leve censura na voz), julga você então que eu lamento perder o almoço? Não, Chico, o que eu lamento é que a pobre da Rosa perca o trabalho que teve para me ser amável, compreendeu?

- Ahn!... grunhiu Chicão, já na rua, esperando o padre com um sorriso podre no carão amarelo.

Padre Guilherme sabia que era inútil querer trocar idéias, corriqueiras que fossem, com o seu sacristão. Bom homem, coitado! mas (como costumava explicar o sacerdote na sua linguagem polida e cândida) "baldo de intelecto". Entretanto, gostava de lhe falar. Tinha uma infinita paciência para com as suas incompreensões monstruosas. Insistia, repetia-se, explicava-se, embora os "ahn!" e os "uhn"! do Chicão lhe estivessem a mostrar que tudo isso era baldado. O que o padre queria era falar. Obedecia a um impulso profundo da sua natureza comunicativa e doce. Gostava de anotar em alta voz, para si e mais alguém, o que lhe passava por dentro; e, na falta de interlocutor, não raro o surpreendiam a falar só consigo.

- Entendeu deveras, Chico?

O sacrista, já mergulhado de novo a mioleira na sua pesada sonolência habitual, ao chouto molengo e balançado do corpanzil, teve um vago sobressalto e gaguejou, na sua risadinha de papo:

- Eh, eh... Como é, seu padre?

- Pergunto se entendeu o que eu lhe disse sobre a Rosa.

- Eu? Eu entendi, sim, senhor.

- Você já estava pensando que eu sentia ter perdido o almoço. É para se ver como a justiça é estranha a este mundo! Você, que me conhece, que vive comigo há seis anos, ainda não tinha reparado que eu nunca fiz questão de comida - tendo você oportunidade, quase todos os dias, de ver isso com os seus olhos. Bastou uma palavra minha, mal compreendida, para imediatamente me atribuir você um ato que ia de encontro a todos os hábitos do meu espírito e do meu corpo...

Chicão nada entendia do que estava a dizer o padre, mas já se acostumara a essas tiradas, e limitava-se a sorrir, aregaçando os beiços grossos sobre as gengivas roxas, de onde emergiam lascas rochosas de dentes. Para o vigário, conversas com ele era apenas uma certa maneira de monologar; e se às vezes insistia assim com o sacrista, não fazia senão empregar um recurso enérgico para se obrigar a uma reflexão. Entre os dois estava tacitamente convencionado que o padre falaria sempre e o sacristão entraria para o diálogo unicamente com uns guinchos, uns acenos de cabeça e uns esgares de inteligência, aliás bem pouco inteligentes.

Quando se avizinhavam da igreja, padre Guilherme recomendou ao sacristão que fizesse entrar a gente na sacristia. Chicão deixou o vigário junto à porta lateral e dirigiu-se, por fora, no seu trotezinho torto e mole, para a parte fronteira do templo.

O padre entrou para a sacristia enxugando a testa. De caminho, deu a mão a beijar ao Vito, molecote que era seu afilhado, posto de guarda à igreja na ausência do Chicão. Puxou uma gaveta, extraiu dela o livro dos assentamentos, abriu-o em cima de uma mesinha de pinho coberta com um pano de ramagens, e pôs-se a examinar lentamente a ponta da pena contra a unha do polegar. Depois, embebeu-a no tinteiro, deixou-a lá espetada e, voltando-se para o Vito, já sentado sobre a larga borda de uma das janelas, uma perna encolhida e a outra pendente ao longo da parede:

- Então, Vituca, você já criou juízo?

O rapazinho também estava afeito às brincadeiras do padre, e limitou-se a uma risada nos dentes muito brancos, franzindo a testa como um macaco.

- Você não acha que eu levo uma vida muito divertida aqui em Candeias?

O negrinho, voltando para o largo, entretinha-se até o esquecimento de si mesmo a seguir com a vista, pela copa de uma figueira próxima, muito redonda e muito verde, o vultozinho inquieto de um sanhaço.

Padre Guilherme sorriu de leve, e suspirou depois, com uma melancolia tão suave que era quase uma volúpia. Aplicou por um momento o ouvido, para receber os sons que chegassem do interior da igreja, e em seguida:

- Ora esta! E essa gente que não aparece!..

De longe, lá dos lados da frente, vinha rolando pela nave deserta, mergulhada em sombra e em silêncio, um vagidozinho apagado. Padre Guilherme levantou-se, foi até o arco da nave, a mão em concha sobre os olhos:

- Olá! Oh Chico!

- Já vai.

- Então?

- Já vai. Não vê que...

- Que é dessa gente?

- Foram-se embora.

- Embora!...

E Chicão aproximou-se do padre atônito com uma criancinha nos braços - um cafusete de cinco dias, envolto em trapos de algodão e de chita, com uma chupeta de pano na boca.

Explicou que achara o pequerrucho largado atrás da porta. Olhara em redor, espiara por todos os cantos, por dentro e por fora, chegara mesmo até a venda do Anastácio, ali ao lado, e nada! Os "tais" eram dois, um homem magro e uma rapariga fula, que o Chicão não conhecia, que nunca vira, e desconfiava que não moravam na terra.

Padre Guilherme ficou a esperar, sem saber o que pensasse daquilo. Afinal, decidiu-se: levava a criança e entregava à Rosa, que a alimentasse com mamadeira. O dono do recém-nascido, se tivesse de aparecer, procuraria o vigário, ou o sacristão. E se não aparecesse, depois se veria.

E assim fez. Chicão entregou o pequeno fardo ao Vito, consignado à cozinheira, e lá foram os quatro pelas ruas de Candeias, o moleque à frente, o padre logo atrás, com o seu grande guarda-sol aberto sobre o recém-nascido, e por último o sacristão, chutando no seu passo mole e torto, como alheio a tudo.

Os raros transeuntes com que cruzavam faziam reverência ao padre e ficavam olhando de esguelha, intrigados. Ao passarem pela botica do Felisberto, este, lá de dentro, enfiou um olhar fureteante sobre o grupo, franzindo o focinho, e veio para a porta contemplar a caravana, até que ela se engolfasse atrás da esquina. Afinal o grupo chegou à casa do padre, perdeu-se lá dentro o choro da criancinha, dois ou três basbaques parados nas imediações resolveram fechar a boca e dar de pernas - e tudo recaiu numa paz alagartada sob o dilúvio do sol causticante.