A Pulseira de Ferro/VII

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Um domingo estava o padre na sacristia a paramentar-se para a missa, quando lhe vieram dizer que o sacristão adoecera. Procurou alguém que o acolitasse, e sem demora se lhe apresentou o professor Camacho, na sua sobrecasaca esverdinhada, amarelo e hirto como um defunto que não tivesse acabado de ressuscitar.

- Às suas ordens, sr. padre.

- Muito obrigado, sr. Camacho. Ainda uma vez é o senhor quem salva a situação.

Camacho sorriu, com o ar contrito que tinha na igreja e mesmo fora, salvo quando fazia brindes de mesa ou tocava requinta, e contritamente acabou de auxiliar a paramentação do sacerdote. Arranjou-lhe as pregas da alva muito engomada, sob o cordão da cintura; pôs-lhe a estola ao alcance da mão, endireitou-lhe a casula. O padre depôs o véu sobre o cálice, pegou neste de encontro ao peito, baixou ligeiramente a cabeça, e foi para o altar, seguido do acólito Camacho, e do Vito com o turíbulo.

Os devotos, cá no corpo da igreja, edificavam-se na contemplação da modéstia. da virtude e da polimórfica sapiência de Camacho, professor de primeiras letras, advogado criminal, tocador de requinta, jornalista e, por fim, perfeito ajudante de missa. Era com supersticioso respeito que punham os olhos no seu dorso esquinado e no posterior da sua cabeça grisalha e piriforme, ladeada pelas conchas largas das orelhas como por duas alças.

Acabada a missa, Camacho auxiliou o padre a despir as vestes de celebrante e a guardá-las nos gavetões da sacristia, foi-lhe buscar o chapéu e o guarda-chuva ao cabide, foi com o Vito fechar as portas, e saíram juntos o padre e o professor para o adro, a conversar. Camacho, visto de longe a conversar com pessoas de respeito, dava a idéia de um pombo: falava grosso e baixo, todo grave e suave, balançando a cabeça junto do interlocutor.

Padre Guilherme, muito tranqüilo e bem disposto (quase como uma senhora na doçura e na paz da maternidade recente) parou sobre as lájeas do adro, a contemplar com satisfação, através dos óculos grossos, o céu muito claro, os morros muitos azuis, as aves que aos chilreios se banhavam na frescura luminosa da manhã, e os últimos fiéis que se dispersavam por entre os compridos coqueiros da praça, respirando honesta alegria sob o bom sol do Senhor. E o padre, naquele jeito ligeiramente oratório, de que o seu sorriso manso e natural era o corretivo imediato, exclamou:

- Eis aí, eis aí, sr. Camacho: paz e beleza na terra e no céu!...

Camacho não apanhou logo todo o valor da frase proferida pelo padre, porque, enquanto este passeava o olhar sereno por perto e por longe, ele Camacho conservava o seu pelo chão. Entendeu-lhe, porém, o sentido lógico e, também sorrindo, com o gesto despreocupado:

- É exato, senhor padre, é exato.

Deu uns passos nas pernas magras e, plantando-se diante do vigário, a abanar a cabeça:

- O pior é que esta paz na terra é ilusória! Os rostos sorriem, os corações rugem.

O padre julgou que Camacho pairava na esfera das generalidades e, quase em tom de gracejo:

- Ó sr. Camacho, não faça injustiça às minhas ovelhas.

Mas o professor insiste:

- Não é injustiça, sr. padre, é a verdade.

O padre olhou Camacho com uma contração de sobrolhos, ainda a sorrir, contudo, como a dizer: "Ora, esta! que é lá isso?"

- É a pura verdade, sr. padre! As suas ovelhas, não todas, mas em boa parte, são mas é uns lobos!

E como o vigário se conservasse calado, a fixar-lhe os olhos nos olhos fugidios:

- Pois então é brinquedo isso que dizem de vossa reverendíssima!

- De mim!... Que é que dizem de mim, sr. Camacho? Aquilo que já me contou, outro dia, não é verdade? Uns que sou pouco zeloso das tradições festeiras da paróquia, onde no tempo de padre Jesuíno, de padre Antônio, havia a cada passo festividades de truz, com bandas de música, com fogos de São Paulo, ou de Sorocaba... Outros, que sou mais amigo da irmandade do Santíssimo do que da irmandade de São Benedito... e coisas! Não é isso?

Camacho abanou a cabeça e esboçou um sorrisinho indeciso. Depois, levantando as sobrancelhas e apertando os beiços numa caramunha de contrariedade, arrulhou:

- Eu julgava que vossa reverendíssima estava ao fato de tudo, e foi por isso que me atrevi a falar.

- Desembuche.

- Referia-me ao pequeno, ao enjeitadinho, que as línguas perversas deram agora para assoalhar que é filho do sr. vigário...

Padre Guilherme baixou as sobrancelhas híspidas sobre o olhar coruscante, enquanto ouvia o professor, e assim se conservou por um tempo.

- Então dizem isso de mim?

Camacho fungou um suspiro.

- Por toda a parte, sr. padre.

- Mas dá-se credito a semelhante infâmia? Que caráter tem isso? De notícia certa? De boato vago? De pilhéria? E quem é que o diz, sr. Camacho? a quem é que o senhor já ouviu dizer isso, sr. Camacho?...

O mestre-escola gaguejou umas evasivas. E o padre, pegando-lhe na manga e dando-lhe pequenos repelões:

- Dessas "minudências" o senhor não sabe, hem! sr. Camacho... O senhor sabe que me caluniam, que me arrastam o nome por essas sarjetas, mas não sabe mais nada, não viu, não percebeu... não quis perceber mais nada!

E o olhos do padre fuzilavam por trás dos óculos sobre a cara parda de Camacho, que sorria amarelo, mastigando frases. Por fim, o padre largou-lhe a manga, deu-lhe costas e partiu, entre os coqueiros altos da praça, que balouçavam lá no alto os seus leques verdes e ciciosos, a velar o sono sereno da igrejola fechada.