A Revista/Ano 1/Número 1/Duas Figuras
ALBERTO CAMPOS
Tertuliano foi educado n'um meio severo e quasi monacal, que era o de sua familia. O pae praticava integralmente a religião catholica, o que, a principio, inquietou Tertuliano, pois seu pae, homem de rara intelligencia e que vivia entre livros, temia a Deus. Tertuliano pensava que Deus fosse uma creatura analoga ao personagem de um livro, que elle, attrahido primeiro pelas illustrações, depois pelas aventuras, lia na bibliotheca, aproveitando-se da distracção do pae. O livro era de Cervantes e o personagem era D. Quixote. Dahi o elle inquietar-se—seria possivel que seu pae temesse aquelle homem pobre e bom, que marchava sobre moinhos de vento e vivia em companhia de Sancho Pança ?
Estas ideas vinham á cabeça de Tertuliano quando elle se deliciava com as aventuras infantis de D. Quixote. Como elle só contava nove annos, as idéas vinham e fugiam immediatamente.
Passaram-se os tempos e, com elles, estas idéas de Tertuliano. Aos quinze annos elle acreditava fervorosamente em Deus, apezar de não fazer d'Elle nenhuma idéa, ou talvez, por isso mesmo. Aos nove annos, julgando-o analogo a D. Quixote, divertia-se com Elle; aos quinze não O comprehendia e, portanto, temia-O.
Neste tempo, Tertuliano, apprendendo latim, lia Virgilio. A sua attenção nunca foi despertada para o seu nome, o que prova sua innocencia e candura. Como elle era intelligente e tinha quinze annos, edade em que os mysterios dos sentidos começam a ser percebidos confusamente, os senhores não se surprehenderão de saber que uma tarde, ouvindo Chopin, a sua imaginação entreviu o braço da filha de um seu vizinho, o braço e talvez o rosto. Tertuliano preoccupou-se com isto, pois, pensava elle, a imagem devia ter surgido, não fragmentaria, mas integralmente, corpo inteiro. Esta analyse interior foi rapida, coma era natural em uma creança. Tambem rapido foi o esquecimento de Chopin, do braço e da filha do vizinho.
Nesta edade em que para Tertuliano tudo era mysterio, sua familia entrou em delirio mystico com um presente que seu pae recebera de um arcebispo, vindo de Roma. O presente era um milagroso barrete de S. Cornelio que, além das virtudes inherentes ás cousas de Santos, curava dores de cabeça. Tertuliano tinha uma crença inabalavel no barrete. Ficava, ás vezes, em extase, contemplando aquelle pedaço de velludo esgarçado e sujo, sem que viesse á sua intelligencia a menor duvida a respeito de milagres.
O barrete foi applicado, com maravilhosos resultados, a toda a familia. Como Tertuliano, soffria de enxaquecas, não tardou em experimentar o infallivel remedio. A familia reunida constatou mais uma vez o poder de Deus e dos Santos. Tertuliano, que estava excitadissimo, declarou, logo depois que lhe foi collocado o barrete, ter desapparecido a dôr. Mas o certo é que a dôr não havia desapparecido; elle dissera que sim, por acreditar mais em milagres do que em si.
Passados uns dias, nova applicação. Reune-se a familia. Apezar de já estar durante dez minutos com o barrete na cabeça (tempo bastante para despertar vaidade ao proprio Deus), a dôr não se ia embora. Tertuliano começou a achar ridiculo aquelle quadro, em que elle, sentado em uma cadeira alta e de barrete vermelho na cabeça, tinha toda a familia ajoelhada deante de si. Decorrida meia hora, Tertuliano disse ao pae que a dôr continuava. O pae e toda familia indignaram-se, chegando a chamal-o de mentiroso. Desde então passaram a tratal-o com o maximo rigor, castigando-o com frequencia. A fé costuma cegar mesmo os paes. Tertuliano, do mesmo modo que não o acreditavam, passou a não acreditar em milagres. Não podemos penetrar os seus pensamentos, mas a verdade é que Tertuliano perdeu a fé. Elle costumava dizer que o symbolo mais sombrio era o de um homem, orando de joelhos.
Como o destino é ironico e confuso, fel-o medico. Hoje, Tertuliano acredita nas drogas.
Eramos companheiros nas aulas de mathematica, não sò nas aulas, mas em tudo, pois a nossa amizade nos unia desde pequenos. Simão, tendo começado os estudos commigo, e tambem por sermos da mesma terra, nutria por mim um sentimento de amizade eu, somente, de camaradagem.
Não digo que era amizade, porque Simão tinha, de mim, uma certa desconfiança. Isto não o soube por elle. que certo se acanharia em m'o dizer, mas por um seu amigo, o João, que fazia maus versos e só fallava nelles. João não era pouco intelligente pelo facto de fazer maus versos, o que é uma crise commum na sua idade, mas sim por sò fallar nelles, sendo mais do que indiscreção, pois João jà era maduro. Mas, reatando, Simão dizia que esta desconfiança vinha do meu genio um tanto alegre e ironico, ficando elle receioso de se expandir em minha presença. Havia muito, tendo notado o seu afastamento, que procurava captar, de novo, a sua amizade, porque Simão era um rapaz intelligente e de bons sentimentos, e tambem por serem amigas as nossas familias. Sendo elle bom e intelligente, não me foi difficil conseguir, pela segunda vez, a sua amizade. Mas o que nunca consegui foi saber porque o haviam appellidado «o mathematico». Simão não tinha grande queda para a sciencia dos numeros, mas isto não quer dizer que elle fosse incapaz de comprehender. Fosse por não estudar, ou por não se interessar em comprehendel-as, o certo é que Simão não sabia nada de mathematicas.
Ultimamente, havia mudado muito, De folgazão que era, passou a contemplativo e melancholico. Se mudar de genio equivale a mudar de habitos, Simão havia mudado inteiramente de habitos. De amante de festas passou a amante da natureza, que, segundo elle, «não deixa de ser uma eterna festa para os que a sabem comprehender e emprestar, a ella, um pouco de sua vida, o que equivale a um pouco de movimento.» Podemos dizer que Simão não se contentava com este pouco, emprestando á natureza toda sua vida, dahi o andar elle melancholico, e mesmo, se quizerem, com vontade de abandonar os homens. Não preciso dizer que Simão era desattento nas conversas, as poucas que consentia aos amigos, pois elle não se entregava mais a este prazer, que segundo dizia, «obriga o homem a sahir de si mesmo e viajar pelos outros, trazendo comsigo, quasi sempre, uma desillusão.
Para conciliar o seu amor da natureza com o seu desamor dos homens, pois elle vivia na cidade, Simão sahia todas as tardes e manhans, em demorados passeios pelos parques. Por fim elle não se contentava mais em sahir duas vezes ao dia, vivendo, mesmo, num delirio ambulatorio. Quando não o era pelos parques, era pela rua. Diziam uns que elle era um homem desilludido da vida, sendo ou não verdade, o que não resta duvida é que elle vivia em convivio com a natureza, mesmo dormindo. Pois, saibam os senhores, não aconteceu só uma vez, Simão fallar, altas horas e de olhos fechados, que estava em colloquio com os regatos e, muitas vezes mesmo, ouvindo fallar as seivas das arvores. Alguem achava que era amor, mas o que penso ser certo é que era loucura.
Simão sahia de casa muito cedo a perambular pelas ruas, com os olhos muito abertos e muitos brandos; olhar de louco, como num encantamento, em que tudo lhe parecesse alegre e sentindo um extase de belleza não so deante das cousas bellas, mas tambem das feias, porque dizia elle «não existem cousas bellas nem feias, a belleza está em nós». Simão entrava no parque e depois de ficar tempos esquecidos sob as sombras das arvores, começava a andar desesperadamente por todos os recantos. Se parava, era para ficar contemplando os beijos voluptuosos com que as ondas de um grande lago beijavam a terra. Um dia que encontrei Simão à beira do lago, elle me disse com uma voz quasi extincta: o repuxo é um desejo do lago para o ceu. Arregalando mais os seus olhos azues, porque Simão tinha os olhos azues foi andando muito serio no seu terno já russo.
Passei muito tempo sem vel-o. A ultima vez que o encontrei foi em uma praia de banhos. Simão sempre alheio a si mesmo. Mas agora maltrapilho, com as botas rasgadas e as unhas de luto. Por entre a barba, via-se-lhe o rosto magro e pallido. Apezar dos seus vinte e um annos a barba era grisalha. Perguntei-lhe o que fazia alli. A resposta foi que estava alli «para ver o mar para sentir o mar, mas não dalli da praia, que não se via nada, e sim em logar que sò fosse mar e céu, e por isso me pédia que lhe emprestasse vinte mil réis, para, alugando um barco, satisfazer este desejo. Simão teve o dinheiro, e com o dinheiro o barco. Remou para fóra da barra, e como com elle não havia mais ninguem, foi remando sem pensar na distancia que percorria, tornando difficil a volta. Não, pensava na distancia e tanto asism que, quando voltou os olhos para os lados e para traz, os olhos não vendo mais que céu e mar, brllharam de alegria, da alegria que pode brilhar nos olhos de um louco. Tomou de uma machadinha que trazia comsigo e collocou-a no fundo do barco. Inclinando o corpo para o mar, molhou as mãos e a barba e, ficando de joelhos, começou um ritual, que uão sendo de nenhuma religião, devia ser da loucura. Depois disto sentou-se. As suas mãos tremulas pegaram na machadinha e, com ella, furaram o fundo do barco. A agua entrava em borbotões, emquanto Simão, extatico, olhava não para a agua que rompia pelo buraco, mas sim para o limite das aguas com o ceu.
Quando o barco ia se afundando, e com elle Simão, seus olhos brilharam com um brilho de arrependimento, ou, provavelmente, de beatitude.
Foi desta morte singular que morreu Simão, o mathematico.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
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