A alma do outro mundo/I
Estamos no Jordão. O Jordão dista do Recife, capital de Pernambuco, quatro léguas, pouco mais ou menos meia hora de vagão... que não desencarrilhe antes de lá chegar; está visto.
É um lugarejo pobre e formoso como as feiticeiras matutas do norte, que fazem brilhar, através do tosco lenço, a alvura de um seio adorável, e metem em brutais tamancos um par de pés, dignos de herdar o sapatinho da Borralheira.
O nome não é propriamente do lugar: é do pequeno rio que o atravessa em parte, um rio cheio de sombras, quietação e aromas selvagens, como aquele de que o louro S. João tirou as gotas santas com que batizou o Divino Cordeiro.
As casas do Jordão são quase todas humildes, raquíticas, esboroadas; mas em todas elas a doce miséria espalha um sereno ar de meiguice e pureza, através do qual a indigência parece resplandecer melhor que o luxo nos salões da cidade opulenta.
Durante a tarde, as poucas famílias do lugar dirigem-se em graciosas turmas à beira do rio, e aí esperam os primeiros clarões da estrela, rindo, conversando, e, nas noites de lua, acordando o sonolento eco ao ruído dos pandeiros, das guitarras e das vozes felizes que se entrelaçam na pálida e cheirosa atmosfera!
Nada perturba o proverbial sossego daquelas abençoadas terras. De vez em quando ronca pelas estradas solitárias o monstro do trem de ferro; o penacho flutuante do vapor enrosca-se no ar; mas, momentos depois, tudo volta ao primitivo silêncio.
Os habitantes do Jordão assemelham-se aos antigos apóstolos de Jesus. No meio da sua pobreza, boa e venturosa gente! no meio da sua imensa pobreza eles conseguem revelar ao mundo, que por acaso os surpreende, o meio de ser feliz nos mais amargos transes da vida.
Como são formosas aquelas alvas noites à margem do rio, em cuja água, de uma limpidez fenomenal, cintila o manto erradio das estrelas e a piedosa face da lua, coroada de névoas e de raios!
As cantigas em desafio amiúdam-se com a rapidez das contas do rosário em mãos devotas, e, por vezes, o sabiá da mata, escondido na penumbra das árvores, exala um choroso trilo cuidando que é dia e que o som agudo da guitarra é a voz penetrante do condiz que saúda a vinda da madrugada!
Belas, belas noites inocentes e puras! Vós sois o consolo, oh, doces amigas! O consolo dos pobres e a riqueza dos infelizes!
Nas fímbrias de vossos mantos ideais enxugam-se as mais acerbas lágrimas da existência, e a alma atribulada esquece as mágoas que a torturam, embebendo-se como um mergulhador invisível, nas ondas estreladas do firmamento!
Oh! Doces amigas! Vós sois a revelação sublime da meiga e imponente majestade do Senhor!
O dia é cruel, é ardente, é real como o tormento e como a voluptuosidade! Vós, não! Vós sois a poesia! Sois a cisma, sois a saudade, sois a serenata, sois o luar sois a tranqüilidade; vós sois a ternura, e o amor!
No Jordão os amores correm com a placidez e a castidade dos santos amores da égloga... Há por lá raparigas lindas, feições artísticas e portes corretos, que recordam o perfil grego, as grandes figuras — modelos da formosura e das vitórias da arte suprema!
O meu conto é simples como a narração pastoril das aventuras do bom tempo, em que a virtude valia mais do que o dinheiro, e a beleza não era ainda monopólio dos ricos!
Passou-se no Jordão esta história e começa em uma noite de imenso luar, noite em que, contra o costume da povoação, as margens do rio ficaram desertas, sombrias, fúnebres até romper o dia.
As casas fechadas e escuras figuravam túmulos.
Apenas em uma, um pouco afastada, um vulto de mulher, destacando-se da janela meio aberta, parecia interrogar alguma coisa na escuridão da mata.
Soavam nesse momento as 12 pancadas da meia-noite no longínquo campanário da capelinha de S. Gonçalo.