A bandeira da Republica de 1817

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A Bandeira da Republica
DE
1817


A revolução pernambucana de 1817 não foi sómente o primeiro movimento franco, definido e vigoroso em prol da Independencia, como, apesar da sua vida ephemera, apresentou quasi todos os caracteristicos de uma completa organização politica.

Abolindo de golpe a realeza, os republicanos cuidaram tambem logo na substituição dos seus emblemas. O pavilhão nacional era então a bandeira conferida ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarres, pelo decreto de 13 de Maio de 1816 — branca, tendo no centro as armas da União, isto, o escudu das armas de Portugal e Algarves sobreposto as armas do Reino do Brasil e por timbre a coroa real.[1]

Os officiaes e soldados rebeldes, arrancando das barretinas as armas reaes, retiraram-nas igualmente da bandeira que, nos primeiros dias da revolução, foi arvorada toda branca, a lembrar o estandarte dos Bourbons. Segundo Tollenare não foi o accazo que determinou a adopção desta insignia provisoria: tinha por fim tornar menos brusca a transição e apresentavam-na como symbolo de intenções pacificas; aliás, accrescentou, ora a bandeira com que os fortes do Recife annunciavam, havia muito tempo, o apparecimento de navios na costa e as embarcações vindas de fúru, vendo sempre o signal acostumado, entravam sem desconfiança; ora isto o que justamente se queria, porquanto havia falta de viveres na cidade e se receiava que o aspecto de uma nova bandeira assustasse os que os traziam.[2]

A cròr no citado contemporaneo os membros do Governo Provisorio cogitaram de principio em adoptar a tricolor franceza; inquirindo porém da sua interpretação e informados de que exprimia a reunião dos tres estados, regeitaram-na.[3]

Assentaram então na organização de uma bandeira propria a concretizar de modo assas expressivo as aspirações da nascente nacionalidade.

Não é desarrazoado suppor que o P. João Ribeiro Pessoa tenha sido quem presidisse á escolha e á disposição das cores e dos symbolos da nova insignia e — habil professor de desendo como era — até mesmo houvésse fornecido algum esboço ao artista incumbido do sua elaboração.

Esta foi confiada ao pintor Antonio Alvares, pardo fluminense de notavel talento, que na occasião se achava 10 Recife e executou a oleo os retratos dos chefes republicanos, telas a cujo numero talvez pertença o retrato de Domingos José Martins, ou, mais provavelmente, o de José Luiz de Mendonça, conservados ambos na galeria do Instituto Archeologico.

O original do desenho da bandeira, então traçado a aquarella por Antonio Alvares, ainda existe actualmente: subtraido dos autos da devassa, figurou na Exposição de Historia do Brasil, de 1881 n.º 20075) e deve parar hoje na Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro.

É perfeitamente identico á estampa que acompanha este artigo e conforme a seguinte descripção de Varnhagen: «A bandeira era bicolor, azul escura e branco, sondo as cores partidas horizontalmente, a primeira em cima e esta por baixo, e tendo, no rectangulo superior azul, arco iris com uma estrella em cima e o sol por baixo, dentro do semicirculo; e no inferior, branco, uma cruz vermelha.» [4]

Approvado o desenho foram as bandeiras mandadas fazer pelo alfaiate José de O’ Barbosa, capitão de milicias pardas e mestre peritissimo, que, auxiliado por seu irmão Francisco Dornellas Pessoa[5] as executou primorosamente, todas de seda e compostas de pequenos retalhos d’estu fazenda para representar não só o colorido como o desenho dos emblemas.[6]

Assim, «apromptadas as bandeiras necessarias, diz Muniz Tavares, foi determinado o dia para a benção, e consignação aos respectivos regimentos. Era o dia 21 de Marco, e foi o campo do Erario o lugar escolhido para a solemnidade deste acto religioso e politico. Alli ás 8 horas da manhã achava-se já desfilada toda a tropa de primeira linha, e milicias, com a musica em frente, que por intervallos fazia-se ouvir; no centro do campo tinha sido erecto hum decoroso altar, sobre o qual collocarão-se as bandeiras. O altar estava voltado para o Oriente; o Sol reflectindo sobre elle os seus luminosos raios, parecia ensinar aos circumstantes a recorrer ao verdadeiro Sol de Justiça, d’onde provem o unico seguro auxilio. Ao pé do altar com devota compostura estava a Deão da Cathedral revestido dos paramentos sagrados, e assistido pelo Clero da Parochia de S. Antonio em sobrepeliz: do lado do Evangelho comparecião os cinco membros do Govorno Provisorio com a Camara do Recife; a multidão do povo occupava o resto da superficie.

«Recitadas a preces que o ritual Ronano prescreve para aquella cerimonia, o Deão alçou uma das bandeiras, e dirigindo-se aos soldados fallou-lhes deste nodo: «In hoc signo vinces. O nosso pai que está nos Céos, creou livres todos os homens; o espirito das trevas introduzio gaz inferal na alma dos malvados: estes ligarão os braços dos seus irmãos, armaram-se de azorrague, e clamarão-se Principes absolutos. Desde então a creatura não pôde mais erguer as mãos ao firmamento para supplicar ao Creador, a sua face contristada abaixou-se a terra, chorou. O scelerado manifestou desde o principio a reprovada sua origem, e abertamente mostrou que era filho de Satanaz: reunindo a hypocrisia á iniquidade occultou de baixo de uma Corôa á marca de Caim impressa sobre sua fronte, ungio com o santo Chrisma os seus cabellos, e disse: Eu tenho da parte de Deus. Blasphemia! O Senhor fallou a Samuel: Esta será a razão do Rei: se apoderará dos vossos filhos, e filhas, dos nossos campos, das nossas lavoiras, e accrescentou: hum dia vós gritareis por causa do vosso rei, e eu não ouvirei porque o tendes eleito. Os escravos voluntarios pesão ao mundo e a Dens. Nós não elegemos Principes, nós o combateremos, o perseguiremos até que entre no Inferno, donde o antigo inimigo do genero humano o extrahio. Se as Provincias deste vasto continente vos abandonarem, o que o Omnipotente não pernmitta) será inteira a vossa gloria, inteira a infamia dos cobardes, que vos abandonárão, e quando nos inexcrutaveis arcanos da Providencia fôsse decretado que succumbissenos, será esplendido o vosso sepulchro, por que ultimos cedenos, por que sós ousamos resistir.

«In hoc signo vinces! Do alto gritou a voz a Constantino Imperador, e lhe foi mostrada a Cruz resplandecente nos Céos como documento de victoria: in hoc signo vinces! Exclamo eit tambem apresentando-vos este sacro-santo Estandarte, e confiando-o nas vossas mãos: seguí-o; elles vos conduzirá ao caminho da honra, da independencia, e da liberdade.

«Vão vos excitarei a ser valorosos, vós já o sois, o mundo vos conhece; duas coisas somente vos recommendo, disciplina e união: a disciplina he a origem dos grandes feitos; a união he a fonte de todos os bens, e o vehiculo exclusivo da força dos Estados.»[7]

Terminada esta allocução, em meio de estrepitosas ovações, o Deão, D. Bernardo Luiz Ferreira Portugal, desceu do altar e entregou as bandeiras ao Governador das Armas Domingos Theotonio Jorge, o qual «conjunctamente com os outros membros do Governo, por entre festivos vivas da multidão foi consignar huma a cada hum dos Chefes dos regimentos, que ahi se achavam; e estes, com os Officiaes, e soldados jurarão não as abandonar jamais» Este espectaculo da benção e entrega das novas bandeiras deve ter sido realmente tão pittoresco quão emocionante, e a sua perpetuação, em uma grande téla historica, é assumpto dos mais dignos de tentar o pincel de um artista nacional, sobretudo considerada a abundancia da documentação necessaria: além do desenho authentico da bandeira e da precedente descripção da cerimonia, por Muniz Tavares, existem excellentes elementos de composição na gravura quasi contemporanea do Campo do Erario, do livro de Henderson, nos numerosos retratos dos principaes assistentes, e nos grupos de militares e de populares das estampas de Bradford, Chamberlain, Martius, Debret e Rugendas.

O sello da republica foi constituido com os mesmos symbolos da bandeira tendo em derredor a inscripção SALUS POPULI ∗ PERNAMBUCO.[8]

Frequentemente descripta e mais de uma vez representada em gravura, e notavel a discrepancia que entre si apresentam estas differentes descripções e desenhos da bandeira da republica de 1817.

Entre os contemporaneos, que certamente a viram, Tollenare delineou fielmente os seus esmaltes e figuras[9] e a sua descripção, divulgada por Ferdinand Denis[10], foi judiciosamente adoptada por Varnhagen[11] e por Mello Moraes[12].

Não só combina perfeitamente com a aquarella de Antonio Alvares, como só discrepa, em trazer uma estrella em vez de tres, do desenho que, para os Estados Unidos, levou o enviado republicano Antonio Gonçalves da Cruz Cabugá.

Este facto aclara-se, porém, se attendermos a que o augmento das estrellas symbolizava as adhesões das capitanias vizinhas ao movimento pernambucano.

Ao desenho levado por Cabugá, e ainda hoje conservado no archivo da Secretaria dos Negocios Estrangeiros de Washington, acompanham as seguintes explicações em inglez:

«As tres estrellas representam os estados de Pernambuco, Parahiba e Rio Grande do Norte que, segundo as ultimas noticias (5 de Abril) compunham a confederação para a liberdade e independencia. Quando as restantes provincias do reino do Brasil houvérem adherido á confederação, outras estrellas seram collocadas em volta do arco-iris,

O arco-íris tem tres côres, denotando paz, amizade e união, que a confederação offerece aos Portuguezes Europeus e aos povos de todas as nações que viérem pacificamente aos seus portos ou porventura residam nella.

O sol significa que os habitantes de Pernambuco são filhos do sol e vivem sob elle.

A cruz allude ao nome de Santa Cruz dado ao Brasil na épocha do seu descobrimento.»[13]

Muniz Tavares diz: «Erão azul e branco as cores tanto do laço quanto da bandeira; esta dividida horizontalmente em duas partes iguaes, continha no meio da parte branca luma Cruz vermelha indicando ser o Brasil consagrado a aquelle precioso stigma da humana redempção: na outra parte apparecia recamado o Sol em todo o seu esplendor, como constantemente mostra-se na região Equatorial, e rodeado de tres estrellas, simbolo das Provincias insurgidas»[14]. Não falla no arco-íris.

O autor dos Martyres Pernambucanos, outro contemporaneo, registrou, em 1 de Abril de 1817; «Bando solemnissimo, convidando todas as classes do povo, para no dia seguinte assistirem á benção das novas bandeiras no Campo da Honra: constarão ellas do arco-iris, tendo sobreposto o sol, o sotaposta a cruz, occupando a parte interior do campo branco; e por baixo da cruz as iniciaes: — S. P. S. L. E.»[15]. Não allude ás estrellas.

Mello Moraes, além do desenho sem texto da bandeira e do sello, reproduzidos no Vol. II, pag. 41, do Brasil Historico, consignou ainda, no Vol. I, pag. 174, da Historia do Brasil Reino e Brasil Imperio, uma carta, escripita de Pernambuco para o Rio de Janeiro, por um Portuguez a outro seu amigo e compatriota, resumindo os factos da revolução, como testemunha presencial dos acontecimentos.

Nesta carta encontra-se o seguinte trecho: «Raspárão as corôas, tirárão os quadros de Suas Magestades, e formárão bandeira chamada republicana. Era um quadro dividido horizontalmente; a parte de cima, em campo azul escuro, uma estrella em cima, e um arco-iris: por baixo o sol, não sei se, pondo-se ou se nascendo.» Esta descripção é accorde com a de Tollenare.

Dos modernos, Pereira da Silva, com a negligencia habitual, affirmou ser a bandeira «de côres brancas e azues com uma grande cruz vermelha no centro»[16]

Em compensação são fieis os desenhos reproduzidos no periodico fluminense A Luz, de 1872 (Vol. I, pag. 305), e na Revista Diabo a Quatro, do Recife, de 9 de Março de 1879.

Alfredo de Carvalho.

Notas[editar]

  1. Eduardo Prado. — A Bandeira Nacional. São Paulo, 1903, pag. 17.
  2. L. F. de Tollenare. — Notas Dominicaes. — Recife. 1905, pag. 188, — He a bandeira francesa, disse ao Autor um soldado rebelde, pags. 203.
  3. Loc. cit., pag. 205.
  4. — Historia Geral do Brasil, 2. ed. — Rio de Janeiro, 1878, pp. 1133-1134.
  5. — P. Dias Martins. — Os Martires Pernambucanos. — Pernambucanos, 1853, pp. 74 e 314.
  6. – Pereira da Costa. — Diccionario Biographico. — Recife, 1882, pag. 599.
  7. F. Muniz Tarares. — Historia da Revolução de Pernambuco em 1817.2. ed. — Recife, 1884, pp. 99-101.
  8. Varnhagen, loc. cit.
  9. Lọc, cit.
  10. Le Brésil, Paris, 1839, pag. 283.
  11. Loc. cit.
  12. Brasil Historico, Vol. II, pag. 41.
  13. — Desenho e explicações communicadas ao Instituto Historico Brasileiro pelo Dr. J. A. Ferreira da Costa e reproduzidos no Tomo LVI. pag. 122, dit respectiva Revista.
  14. Loc. cit., pag. 99 (2.ª edição).
  15. Loc. cit., pag. 55.
  16. Historia da Fundação do Imperio Brasileiro, Vol. IV. pag. 162

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.