A mão e a luva/XVII
Não era preciso reler o papel para entendê-lo; mas olhos amantes deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra única: — Peça-me, — escrita no centro da folha, com uma letra fina, elegante, feminina. Luís Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples observador. A letra não era trêmula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de comoção.
Desta observação passou Luís Alves a uma reflexão muito natural. Aquele bilhete, pouco conveniente em quaisquer outras circunstâncias, estava justificado pela declaração que ele próprio fizera à moça alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, ele a ouviria e acompanharia. Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação à hora. Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janela, à meia-noite, aquele papel decisivo, eloqüente na mesma sobriedade com que o escrevera?
Luís Alves concluiu que havia alguma razão urgente, e portanto, que era preciso acudir à situação com os meios da situação. Quanto à razão em si, não a pôde descobrir. Ocorreu-lhe o fato, aliás patente, da corte que o sobrinho da baronesa fazia a Guiomar, mas ignorava as circunstâncias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.
Não direi que Luís Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjeturas vagas. Não era homem que perdesse tempo em coisas inúteis; e nada mais inútil naquela ocasião do que tentar explicar o que nenhuma explicação podia ter para ele. O que resolveu foi obedecer ao recado da moça; pedi-la sem hesitação nem preâmbulo. Mas se o caso lhe não produziu insônia, não deixou de lhe estender a vigília, além da hora usual, como era de jeito naquela ocasião solene, sobretudo, tratando-se de criatura que por aqueles tempos era a inveja e a cobiça de muitos olhos. Luís Alves não era, como Estevão, um adorável cismador, não se nutria de imaginações e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas cismou algum tempo, embebeu-se uma hora na contemplação ideal da mulher que ele soubera escolher. O sono chegou, e o devaneio confundiu-se com o sonho.
Guiomar dormiria tão repousadamente como ele? Dormia; a noite, porém, fora-lhe muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declaração de Jorge e das insinuações da madrinha.
A moça recolhera-se ao quarto, logo depois da declaração. As pessoas da casa nada puderam ler-lhe no rosto, salvo a palidez repentina e o rubor que se lhe seguiu; mas logo que ela se achou só, deu toda a expansão aos sentimentos que até ali pudera conter.
O primeiro deles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquela declaração, assim feita, de emboscada e sobressalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o coração e a índole repeliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorização prévia; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição própria, destinado a satisfazer caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta suposição; mas, a notícia que ela tinha da resolução da baronesa, neste negócio, diminuía muito o valor de tais palavras. Se era uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangê-la com aparências de moderação, e o tempo que lhe deixavam para refletir era-o realmente para considerar, sozinha consigo, na necessidade de pagar os benefícios que recebera.
Não a acusem de ter feito estas reflexões, logo que entrou no quarto, com os olhos cintilantes e os lábios frios de cólera. Eram naturais; primeiramente porque supunha que o seu casamento com Jorge estava deliberado e se realizaria, quaisquer que fossem as circunstâncias; depois, porque a alma dela era melindrosa; não esquecia os benefícios recebidos, mas quisera que lhos não lembrassem por meio de uma violência: fazê-lo, era o mesmo que lançar-lhos em rosto.
— Não! murmurava enfim a moça, forçar-me, reduzir-me à condição de simples serva, nunca.
Mas esta cólera apaziguou-se, e o coração venceu o coração. Guiomar recordou a constante ternura da baronesa para com ela, a solicitude com que lhe satisfazia os seus menores desejos, que eram ali ordens, e não combinava tamanho amor com a suposta violência que lhe queria fazer. Não tardou em arrepender-se das palavras incoerentes que lhe haviam fugido, e dos sentimentos maus que atribuíra ao coração da baronesa. Cruzou as mãos no peito e ergueu o pensamento ao Céu, como a pedir-lhe perdão. Guiomar, em meio das seduções da vida, que tantas eram para ela e de todo lhe levavam os olhos, não perdera o sentimento religioso, nem esquecera o que lhe havia ensinado a fé ingênua e pura de sua mãe.
A cólera acabara, mas veio depois a luta entre a gratidão e o amor, — entre o noivo que lhe propunha a afeição da madrinha e o que o seu próprio coração escolhera. Ela nem ousava tirar as esperanças à baronesa, nem imolar as suas próprias, — e uma de duas coisas era preciso que fizesse naquela solene ocasião. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas se tal duelo podia travar-se-lhe na alma, não era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes. Guiomar tinha de decidir por um dos dois homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao coração.
A resposta, porém, não podia a moça demorá-la nem esquivá-la, não convinha, talvez, prolongar a luta e a dúvida. Quando isto pensou, veio-lhe ao espírito uma idéia decisiva, a de confessar tudo à madrinha. Hesitou, porém, entre fazê-lo ela própria ou por boca de Luís Alves, cujas palavras, apontadas acima trazia escritas na memória. Preferia este meio; mas não lhe bastava preferi-lo, era mister realizá-lo, e para isso só dois modos tinha: escrever-lhe ou falar-lhe. O segundo podia não ser tão pronto, e talvez falhasse ocasião apropriada; adotou o primeiro, e recuou logo. A carta seria mandada por um fâmulo, mas o espírito de Guiomar era a tal ponto sobre si que repeliu semelhante intervenção. A janela estava aberta; dali viu luz na sala de Luís Alves e a sombra do moço, que passeava de um lado para outro. Ocorreu-lhe então a idéia que pôs por obra, conforme ficou dito no capítulo anterior.
Tal é a história daquela palavra escrita rapidamente numa folha de papel. Apesar da declaração de Luís Alves e das circunstâncias em que a moça se achou, o leitor facilmente compreenderá que ela não a escreveu sem pelejar consigo mesma, sem vacilar muito entre a repugnância e a necessidade. Afinal foram vencidos os escrúpulos, que é tanta vez o seu destino deles, e força é dizer que não os vencem nunca de graça, porque eles falam, arrazoam, obstam o mais que podem, mas é vulgar passarem-lhes por cima. A moça entretanto, apenas lançara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a consciência quase a acusava de uma ação vil. Era tarde; a carta chegara a seu destino.
Na manhã seguinte, a baronesa acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em Guiomar, na noite anterior, alguma coisa que só lhe pareceu enleio natural da situação. Guiomar erguera-se tarde; a manhã estava chuvosa e a madrinha não deu o seu passeio. A moça foi beijar-lhe a mão e a face, como costumava, e receber dela o ósculo materno. O rosto parecia cansado, mas um véu de afetada alegria disfarçava-lhe a expressão natural, à semelhança das posturas de toucador, de maneira que a baronesa, pouco ledora de fisionomias, não discerniu naquela a verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que é honesta e reta, porque a intenção da moça não era mais do que não amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer aflição antecipada.
— Dormiu bem a minha rainha da Inglaterra? perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos ombros.
— A sua rainha da Inglaterra não tem coroa, respondeu Guiomar com um sorriso contrafeito.
Pela volta do meio-dia, recebeu a baronesa uma carta de Luís Alves. Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a mão de Guiomar. Poucas linhas, corteses, simples, naturais, feitas por quem parecia senhor da situação.
— Mrs. Oswald, disse a baronesa à sua dama de companhia que se achava na mesma sala, leia isto.
A inglesa obedeceu.
— Isto não quer dizer nada, observou ela depois de alguns instantes. É um pretendente mais; devemos crer, porém, que são muitos, e que se os outros não lhe escrevem cartas destas, é porque são menos afoitos. A Sra. baronesa pensa que os olhos de sua afilhada são inocentes? continuou a inglesa sorrindo. Eu cuido que devem estar carregados de crimes, e que há mortos...
— Mas não vê, Mrs. Oswald, interrompeu a baronesa, que esse homem parece estar autorizado?
Mrs. Oswald calou-se como quem refletia. Logo depois expôs uma série de argumentos e considerações, se não graves em substância, pelo menos nas roupas com que ela os vestia, umas roupas seriamente britânicas, como as não talharia melhor a melhor tesoura da câmara dos comuns. Toda ela dava ares de um argumento vivo e sem réplica. Havia em seus cabelos, entre louro e branco, toda a rigidez de um silogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilema. A conclusão de tudo é que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era coisa não só possível, mas até provável, uma vez que a baronesa mostrasse, — era o essencial, — certa resolução de ânimo muito útil e até indispensável naquela ocasião. Mrs. Oswald oferecia-se para ir chamar a moça imediatamente.
— Pois vá, vá, disse a baronesa.
A inglesa saiu dali e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compôs um sorriso, e Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.
— Venho buscá-la, disse Mrs. Oswald, para uma coisa que a senhora está longe de imaginar.
Guiomar interrogou-a com os olhos.
— Para casar!
— Casar! exclamou Guiomar sem compreender a intenção da mensageira.
— Nada menos, respondeu ela. Admira-se, não? Também eu; e sua madrinha igualmente. Mas há quem tenha o mau gosto de aproximar-se por seus belos olhos, e a afronta de a vir pedir, como se pedissem estrelas do céu...
Guiomar compreendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a inglesa, e disse em tom seco e breve:
— Mas, conclua, Mrs. Oswald.
— A senhora baronesa manda chamá-la.
Guiomar dispôs-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fê-la parar um instante, e com a mais melíflua voz que possuía na escala da garganta, disse:
— Toda a felicidade desta casa está em suas mãos.