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A mão e a luva/XVIII

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Mrs. Oswald tinha falado demais. A baronesa não a incumbira de dizer à afilhada a razão por que a mandava chamar. Aconteceu, porém, que aquela indiscrição não foi a única. Mrs. Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e a baronesa fosse tratado o assunto que as ia reunir, cedeu à curiosidade, e acompanhou a moça.

A baronesa estava sentada, entre duas janelas, com a carta aberta nas mãos, tão atenta em relê-la, que não ouviu o rumor dos pés de Guiomar e de Mrs. Oswald.

— Madrinha chamou-me? perguntou Guiomar parando em frente dela.

A baronesa ergueu a cabeça.

— Ah! É verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.

Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais próxima e sentou-se ao pé da baronesa. Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no chão, como a procurar por onde começaria. Quando os levantou deu com a inglesa. Ia já falar, mas estacou. A afeição que lhe tinha não impediu que achasse demasiada familiaridade a presença de Mrs. Oswald em semelhante ocasião. Esperou alguns instantes; mas como a inglesa parecesse inteiramente distraída:

— Mrs. Oswald disse a baronesa, vá ver se já deram de comer aos passarinhos.

A inglesa percebeu que estes passarinhos, naquele caso, eram uma pura metáfora, e que a baronesa nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que se fosse embora. Todavia, não se deu por achada.

— Parece-me que não, disse ela; vou já saber disso.

— Olhe, disse a baronesa quando ela já ia a meio caminho; encoste-me essas portas, e dê ordem para que ninguém nos interrompa.

A inglesa obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguém lha pôde ver, e não se perdeu nada.

As duas ficaram sós.

— Senta-te aqui, Guiomar, disse a baronesa indicando um banquinho que lhe ficava aos pés.

Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente os braços nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabeça com as mãos, e assim esteve longo tempo sem falar, mas eloqüente naquela mudez, em que a palavra pertencia ao coração. Ambas estavam comovidas; e Guiomar, de envolta com um suspiro, murmurou este único e doce nome:

— Mamãe!

Era a primeira vez que ela lhe dava este nome, e tão fundo lhe calou na alma à baronesa que a resposta foi cobri-la de beijos.

— Sim, tua mãe, disse a madrinha; a que te deu o ser não te amaria mais do que eu. Tens a alma e a ternura da filha que o Céu me levou, e se todas as mães que perdem filhos pudessem substituí-los do mesmo modo, desapareceria do mundo a maior e mais cruel dor que há nele...

A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar-lhas. Seguiu-se uma pausa, em que a comoção a pouco e pouco desapareceu, e a baronesa olhou para a carta de Luís Alves, amarrotada pelo gesto de Guiomar.

— Guiomar, disse ela enfim, já refletiste no pedido de ontem à noite?

A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luís Alves; a pergunta da baronesa desnorteou-a um pouco. Sua inteligência, porém, era clara e sagaz; a resposta foi outra pergunta:

— Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida? disse ela sorrindo.

— Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um excelente caráter?

— Excelente, respondeu a moça.

— Uma boa alma, continuou a baronesa, e um moço distinto. Parece gostar muito de ti, segundo disse ontem, não? É natural; só me admira que não te amem muitos mais.

A baronesa parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar os olhos.

— Deves saber, continuou a baronesa, — que eu estimaria ver que este casamento se efetuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a ele também, pelo menos tanto quanto é possível julgar das coisas presentes... Que diz o teu coração?

E como Guiomar não respondesse logo:

— Ah! esquecia-me do que me disseste há pouco. Uma noite não é o bastante para decidir de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-ás mais duas coisas. A primeira é que... Lê tu mesma esta carta.

A baronesa deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luís Alves fazia de sua mão. Enquanto ela percorria com os olhos as poucas linhas escritas, a madrinha parecia observá-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impressão que o pedido lhe fazia, se espanto, se satisfação. Não houve espanto nem satisfação aparente; Guiomar leu a carta e entregou-a à madrinha.

— Leste? É a primeira coisa que eu queria dizer-te. O Dr. Luís Alves pede-te em casamento; tens de escolher entre ele e Jorge. A segunda coisa é que dos dois pretendentes Jorge é o que meu coração prefere; mas não sou eu que me caso, és tu; escolhe com plena liberdade aquele que te falar ao coração.

Guiomar erigiu o busto e olhou diretamente para a madrinha, com tais sinas de espanto no rosto, que esta não pôde deixar de lhe perguntar:

— Que tens?

A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os lábios; travou-lhe da mão e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ela como a refletir. A expressão de seu rosto passara do espanto à satisfação e desta a uma coisa que parecia a um tempo indignação e asco.

— Oh! madrinha! exclamou Guiomar, por que se não entenderam logo os nossos corações? Não havia mister pôr de permeio um espírito importuno e desconsolador. Se eu adivinhara essas palavras que acabou de dizer, não teria padecido metade do que me fazem padecer há longos dias...

— Padecer?

— Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu que ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a afligir.

Não precisava dizer mais nada; a escolha que ela ia fazer estava já indicada pelo menos. Entendeu-o a baronesa, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu a tristeza súbita; arrependeu-se de ter ido tão longe.

— Percebo, respondeu a baronesa, queres dizer que dos dois pretendentes escolhes o Dr. Luís Alves?

A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ela com uma expressão de ansiedade que a afligiu.

— Fala, repetiu a baronesa.

— Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.

A baronesa estremeceu.

— Falas sério? Não creio; não é esse o sentimento do teu coração. Vê-se que não é. Queres iludir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste nunca. Mas amas ao outro, não é? Que tem isso? Não me dá o prazer que eu teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade está acima das minhas preferências. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o que pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o coração, — um coração, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele.

Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu atento o que precede verá que era isso mesmo o que ela desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A moça não queria iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração, para que a madrinha conferisse, por si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um pouco de meio indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se não tomassem à má parte o vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhe dirá que esta Guiomar, sem perder as excelências de seu coração, era do barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dirá também que, apesar de seus verdes anos, ela compreendia já que as aparências de um sacrifício valem mais, muita vez, do que o próprio sacrifício.

A baronesa acabara de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua primeira impressão, e se a escolha era contrária ao que ela desejava, a satisfação da afilhada pagou-lhe tudo quanto ela ia perder. Era assim aquela alma de mãe; boa, dedicada e generosa.

— Oh! madrinha! obrigada! exclamou a moça. Não me fica odiando?

— Oh! exclamou a baronesa com um tom de repreensão.

E puxou-a para si, e abraçou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento, e as duas confundiram as suas alegrias íntimas e afeições sinceras.

Mrs. Oswald viu-as daí a pouco, risonhas e entendidas. Era fácil concluir qual dos dois pretendentes vencera; Guiomar não receberia de tão boa cara o sobrinho da baronesa. Tudo estava acabado; e talvez que a sua própria pessoa padecera naquele lance último. A baronesa pedira a Guiomar que lhe explicasse a que padecimentos aludira, mas a moça preferiu não dizer nada, não só por afligir a madrinha, como por não dar um aspecto de rivalidade à situação entre ela e Mrs. Oswald.

A escolha estava feita, o consentimento dado. A baronesa respondeu nessa mesma tarde ao pretendente feliz. Estevão teria manifestado ruidosamente toda a alegria que semelhante resposta lhe causara; sua alma apaixonada e exuberante contaria a Deus e aos homens aquela imensa fortuna; Luís Alves encerrou o prazer, aliás grande, dentro de si; pensou na moça e no futuro alguns instantes, mas não falou deles a ninguém.

A baronesa escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, comunicando-lhe a resposta de Guiomar. Os leitores não terão dificuldade de admitir que o coração de Jorge não sentiu o golpe profundamente, mas sentiu alguma coisa. Não foi nessa noite à casa da tia; não foi também na segunda; na terceira chegou a descer as escadas; na quarta embicou para Botafogo.

— Tudo está acabado, disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.

— Acabado! suspirou Jorge.

— Agora, é preciso ânimo; espero que serás homem.

— Oh! serei homem! suspirou outra vez Jorge.

E dois suspiros, arrancados do peito de um homem tão grave, deviam ser por força dois suspiros gravíssimos, como facilmente acredita o leitor.

Efetivamente a fisionomia do moço não tinha abatimento nem aflição; não a amarrotava o menor vestígio de noite mal dormida, menos ainda de lágrimas enxutas. Alegre não era, mas grave e austera, como ele a trazia sempre, a contrastar com o retesado do bigode.

A baronesa imaginou contudo que a dor do sobrinho devia tê-lo mortificado muito; apertou-lhe as mãos com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de animação.

Imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar. A moça estava serena, talvez risonha e até compassiva. Se tivesse de casar com ele odiara-o decerto; agora já lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte não deixou de ficar um tanto abalado, em parte comoção, em parte constrangimento, sendo porém o constrangimento maior do que a comoção. Nos lábios pairou-lhe um desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua imaginação pinturesca descobriu a cor amarela. Se outro fosse o aspecto, é provável que ela lhe conservasse, ao menos, o respeito. Mas aquele sorriso perdeu-o de todo no ânimo de Guiomar.

Na primeira ocasião que se lhe ofereceu, expandiu-se Jorge com Mrs. Oswald.

— Perdeu-se tudo... murmurou ele.

A inglesa não respondeu.

Jorge continuou ainda a falar, e a inglesa a ouvir, mas a ouvir só, e a querer diverti-lo daquele assunto.

— Tudo se perdeu, disse enfim o sobrinho da baronesa, talvez por culpa sua.

— Minha? perguntou Mrs. Oswald.

— Sua.

— Mas...

Jorge hesitou um instante.

— Não mostrou calor suficiente, disse ele enfim.

— Que quer? disse Mrs. Oswald. O coração não se pode dominar, nem há meio de impor-lhe um sentimento. D. Guiomar é uma santa criatura, ama deveras ao seu rival; há nada mais justo do que casá-los?

— De maneira que...

— De maneira que tudo era lícito fazer na suposição de que ela não amava a outro, mas uma vez que ama ...

Luís Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi à casa da baronesa, que o recebeu com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a completamente feliz; nem iras, nem ressentimentos, como anunciara Mrs. Oswald. Todo o castelo de cartas caíra por terra, desde que a sinceridade da baronesa interveio.